
Chow-Yun Fat em Alvo Duplo
(1986) de John Woo
A querela em torno da obra de John Woo não é
de hoje. Trata-se de um autor, no sentido que a análise fílmica
considera os realizadores com estilo e temática pessoais? Ou então
trata-se de um artesão talentoso, de inclinação espacial
para as cenas de ação e para a coreografia de tiroteios?
A questão bem que se poderia colocar de outra forma. Ao invés
de perguntar "se" Woo é um autor pergunta de uma
metodologia um bocado arrogante e sempre arbitrária demais
é interessante que se pergunte "que" tipo de autor é
John Woo.
Uma tentativa de resposta: certamente não aquele
tipo de artista a que o público dos cinemas de arte está
acostumado. Suas obras em Hong Kong, mesmo as mais perfeitamente realizadas,
contêm sempre uma gracinha fora de hora, uma rapidez especial em
contar as coisas que é sempre seguida por cenas de detalhe realizadas
em câmara lenta. Os momentos da história que deveriam ser
sérios, sentimentais ou lacrimejantes adquirem sempre uma dimensão
propriament lúdica, como se fosse preciso uma auto-ironia do próprio
filme para que a história pudesse ser levada adiante. John Woo
aproveita-se dessas cenas, que nos filmes de ação são
filmadas geralmente apenas para fazer a história seguir, sem um
tesão especial, John Woo as transforma em palco para uma segunda
leitura do filme, autoparódica, irreverente, virtuosística
e, no limite, distanciadora. Essa, entretanto, é uma tradição
do cinema oriental popular basta ver alguns dos filmes de gênero
de Seijun Suzuki e de Tsui Hark, essa espécie magnífica
de continuador , que Woo utiliza à perfeição,
mas que entretanto não é tão bem compreendida pelo
público "educado" ocidental.
Seu estilo tem um tanto a ver com sua criação.
John Woo nasceu em 1948, no Cantão (sudeste da China), mas logo
em 1950 sua família foi uma das muitas a se refugiarem na ilha
de Hong Kong a partir da fundação da República Popular
da China. De família pobre, viveu na pele o estranho ambiente de
marginalidade e ordem que povoa seus filmes. Woo (na verdade Ng Yu-sum)
fez seus estudos, patrocinados por uma família americana, numa
escola luterana (de onde certos críticos imaginam que retirou boa
parte das influências religiosas: pombos, igrejas, virgens-marias...),
e no tempo ocioso ia ao cinema assistir a comédias musicais americanas
(de onde se pode adaptar o gosto pelas coreografias de tiroteio). Woo
não tinha outra opção: pobre demais para pagar estudos
de cinema, fez da sala de projeção sua escola, e mais tarde
o próprio set, tendo sido "adotado" mais tarde
(1969) pelo realizador Zhang Che, de quem ele afirma ter extraído
uma grande parte de ensinamentos.
Em 1972, John Woo realiza seu primeiro filme, Farewell
Buddy, que entretanto foi censurado pelo governo por causa de sua
violência. Em 1975, assina com a companhia Golden Harvest, magecompanhia
de Hong Kong que já assinou nomes como Tsui Hark e Hou Hsiao-hsien.
A partir daí, a batalha de Woo se parece muito com a de seu herói
em The Killer: uma luta constante contra aqueles com quem ele faz
negócio. Em 1981, Tsui Hark o convida para a sua Cinema City, e
Woo aceita, imaginando que, como realizador, Tsui compreenderia os constrangimentos
de uma mão forte demais na produção. Triste esperança:
apesar de exímio realizador, como produtor ele quer que tudo num
filme passe por seu controle. Se até 1989 John Woo continuou vivendo
sob a mão forte de um produtor que o constrangia, conseguiu realizar
entretanto um de seus filmes mais importantes, Alvo Duplo (A
Better Tomorrow), o filme que levou ao estrelato não só
ele, mas também o então novato Leslie Cheung, mas principalmente
Chow Yun-fat, agora astro em Hollywood.
A partir de 1989, John Woo vive o ápice de sua forma.
Realiza The Killer, considerado até hoje como sua película
mais pessoal, e ainda antes de sair de Hong Kong para oe Estados Unidos,
em 1993, realiza Bala na Cabeça e Fervura Máxima
(Hard Boiled). Seus primeiros dois filmes americanos para película
(O Alvo e Broken Arrow), fazendo com que o público
ocidental ficasse receoso que Woo fosse mesmo um realizador de primeira
categoria. Entretanto, com A Outra Face (Face/Off) e M:I
2, conquistou devidamente seu posto como um dos mais criativos realizadores
da atualidade, com a depuração de um estilo cheio de efeitos
de ilusão, câmaras-lentas, montagem eisensteiniana (o mesmo
acontecimento visto por diversos ângulos) e uma construção
dramática pouco verossímil mas que entretanto é muito
lúdica com o espectador.
A coisa que mais surpreende no cinema de John Woo, mais
do que sua estética, é a recorrência dos temas. Rigorosamente,
cinco de seus filmes mais importantes apresentam exatamente a mesma história:
o herói, na luta com o vilão, acaba se identificando com
ele. Essa pode ser a sinopse tanto para Alvo Duplo, The Killer,
Fervura Máxima, Alvo Duplo ou M:I 2. Não
é à toa que nesse dois últimos filmes os mocinhos
usem os rostos dos bandidos ou vice-versa: a moral dos filmes de John
Woo é propriamente a moral da ambigüidade, aquela do maverick,
aquele sujeito que pouco importa o lugar em que ele está ou sua
posição moral (bem ou mal); o que importa é que ele
é diferente de todos os outros porque respeita apenas sua ética
e nada mais. É nesse ponto que os bandidos se identificam com os
mocinhos. Em M:I 2, Sean Ambrose passa para o lado malvado porque
não poderia se comparar como mocinho a Etahn Hunt; mas inversamente
Hunt também não deseja ser melhor que Ambrose, mesmo que
para isso tenha até que roubar-lhe a namorada? Tomemos então
os momentos finais de The Killer: Tony leung e Chow Yun-fat finalmente
reconhecem que estão juntos, que fatalmente lutam a mesma batalha
por lados opostos. São, de qualquer forma, amigos.
O melhor lugar cinematográfico para observar essa
estética da ambigüidade, esse elogio das grandes baleias brancas,
nascidas tarde demais num mundo que não as suporta, é no
filme em que pela primeira vez surgem esses heróis: Alvo Duplo.
Ho e Kit são irmãos. Ho, mais velho, sem o conhecimento
do irmão, é um dos mais eficientes trabalhadores numa máfia
de falsificação de dinheiro; Kit é um jovem policial
que tem altos ideais e deseja prender os criminosos. Quando o pai dos
dois morre, Kit fica sabendo de tudo e passa a odiar o irmão por
atribuir-lhe a morte do pai. Enquanto isso, Ho está preso em Taiwan
porque decide abandonar sua vida de crime (a pedido do pai, que não
queria "ver seus dois filhos brincando de polícia e ladrão
na vida real"). O fim do filme, entretanto, vê os dois irmãos
(com a ajuda de Chow Yun-fat, responsável mesmo como coadjuvante
pela cena mais sensacional do filme, em que ele vinga a prisão
do parceiro com um massacre esplendidamente filmado) lutando contra um
inimigo comum. Desesperançoso, incomum, e acima de tudo solitário,
John Woo é hoje o realizador por excelência do exímio
ermitão. Ele filma a saga do homem que, por ser bom demais (por
ser ético), encontra-se acima do bem e do mal.
Ruy Gardnier