É difícil ver Simão do Deserto


Claudio Brook em Simão do Deserto de Luis Buñuel

Alguns filmes merecem ser exibidos quotidianamente, assim como um clássico romance acaba virando livro de cabeceira. São eles do tipo de filme que sempre terá algo de pertinente para dizer, não importando a época em que sejam mostrados. A capacidade de se manterem atuais ultrapassa a simples alusão à problemas permanentes da sociedade humana. E para se tornar uma obra inesquecível o filme precisa ser visto como tal a partir do momento em que entrou em cartaz pela primeira vez. Ou seja, precisa ser cinematograficamente inconfundível.

Ganhando importância dessa maneira, a carreira de um filme já está garantida, entrando para um rol de obras obrigatórias que vai figurar na lista de cinéfilos pelo mundo afora. Mas é claro, esse sucesso e reconhecimento nem sempre asseguram um número elevado de exibições. Muito menos uma facilidade de acesso.

Não é raro um filme obrigatório ser quase que desconhecido para o mercado exibidor. Quando se trata de obras que pairam acima de uma imediatez de consumo, levantar interesse comercial não é muito o seu forte.

Para Simão do deserto o caminho para o grande estrelato e vendagem é mais duro ainda. Basta olhar para algumas de suas características.

Feito no México, em 1965, com fotografia preta e branca, quando a cor já se impunha como fator discriminatório primeiro. Atores desconhecidos para o mundo. Sem galãs latinos, sem mulheres calientes, sem trama de amor. Paisagem repetitiva, desértica. E para finalizar, uma duração esquisita que não pode ser classificada como longa metragem ou curta metragem. Correto mesmo seria chamá-lo simplesmente de média metragem, porém, a densidade temática e o seu peso estético não permitem um tratamento tão rebaixado.

Tudo isso complica o caminho de um filme para ocupar um espaço e se mostrar livremente. O apelo de mercado, conceito arbitrário e injusto, assim, de relance, é nulo, sendo talvez uma explicação para a quase que total inexistência do filme. Exibição em mostras, pelo pouco que sei e pesquisei, não acontece. Cópias em vídeo são sonho de consumo para "estudiosos".

O acesso restrito à essa obra acaba por contrastar com a sua vocação para filme de referência. Considerando os fatores que fazem dele um objeto averso à exibição, se nota também uma enorme importância para o cinema.

A sua pobreza de recursos para a produção já o insere em uma categoria de cinema que faz uso estético das privações materiais. É nesse grupo que encontram-se experiências muito bem sucedidas como o Cinema Novo, o Neo-realismo, e uma Nouvelle Vague. Um cinema terceiro mundista na essência que quer ser visto como tal para servir de exemplo no caminho para uma libertação dos esquemas banais de se filmar. A simplicidade salta aos olhos, chama a atenção e faz parte do primeiro traço marcante.

Mas, como já foi dito, a enumeração isolada dos elementos que fazem de Simão um filme antenado com um caminho para o cinema arte através do uso de poucos recursos não justifica por si só a sua aparição como uma obra a ser resgatada. A atualidade temática é marcante e o argumento elaborado para expô-la é o grande diferencial.

Esse é um filme de um cineasta que ficou conhecido como o pai do surrealismo no cinema. Já vale como curiosidade não ter o surrealismo como sua forma principal. A decupagem não é incômoda. Apesar de a situação mostrada, como um todo, ser absurda, a intenção não é que a vejamos dessa maneira. No fundo, uma referência direta a uma realidade social que pode ser verdadeira está presente. E no caso dessa situação não fazer muito sentido fora da tela, ali ela tem toda a razão de acontecer e os seus desdobramentos são perfeitamente justificados. Os elementos surrealistas ficam murchos abrindo espaço para uma conotação maior. É a crítica ferrenha ao valores pós modernos que se impõe. O filme é sobre isso.

Tratar de um tema delicado usando uma encenação tão sutil, que dá uma volta espaço temporal para se assumir no final, cria uma rede de analogias enriquecedoras. A sutileza é o que o filme tem de mais interessante. O asseptismo se contraposto às tentações, o eterno jogo contra o social banalizante, a força da vontade na luta para derrotar um mundo sem sentido. Tudo aparece depois de uma reflexão salutar.

Seria muito fácil fazer um filme que grita contra tudo o que a organização social tem de ruim. Mas disso já tem muito por aí. Ao invés de escolher esse caminho medíocre, Buñuel, como grande artista e homem que nos deixou heranças incalculáveis, preferiu fazer o que sempre fez, criando uma obra com muito para dizer colocando-nos para pensar.

Resgatar esse filme só é necessário por se tratar de uma "obra rara". O reconhecimento é eterno e exige um tratamento mais justo.

João Mors Cabral.