Tempo, mano velho/novo
1. Uma estranha mudança se desenvolve quando assistimos aos seriados.
Não é o tempo do filme, não é o tempo do noticiário:
os seriados (sitcoms) não parecem responder à menor lógica
temporal, ao menos o melhor deles disparado, Seinfeld. O tempo,
estritamente necessário para a dramaticidade e a construção
de qualquer narrativa, torna-se mero instrumento de manipulação
para os fins do roteiro. Desde o começo do cinema, você precisava
de informações diferentes para mostrar diferentes passagens
de tempo. Desde a fácil demais inserção de títulos
explicativos aos mais discretos usos diferenciados de montagem para significar
outras passagens de tempo (1 segundo de tela negra = alguns minutos, 5
segundos = dia seguinte), o cinema sempre tentou codificar o tempo para
poder criar a verossimilhança. Com Seinfeld, o mesmo não
acontece. Nem, às vezes, nós precisamos saber quanto tempo
se passou. O número limitado e sempre repetitivo de locações
de filmagem (a sala do apartamento de Jerry, o restaurante em que eles
se encontram, o gabinete do chefe de George), sempre filmados do mesmo
ângulo, dão ainda mais essa impressão de que não
sabemos em quanto tempo a história se passa. Mas que não
se pense que isso é um defeito: ao contrário, trata-se de
uma suprema virtude, porque essa confusão temporal é exatamente
o lugar necessário para que todas as situações engraçadas
se realizem. Desde as namoradas esquisitas de Jerry Seinfeld até
as confusões que Elaine tem com seus trabalhos, elas só
existem porque cindidas no tempo, porque nunca vemos nem o antes nem o
depois, nunca vemos como Jerry conhece uma mulher nem como termina: só
sabemos que já acabou pelas conversas a quatro. Um mesmo procedimento
técnico de edição serve para montar uma passagem
de um dia e outra de duas semanas. Armadilha encantadora: num corte de
sitcom sempre pensamos que estamos no dia seguinte, e é essa suposição
que, em diversas ocasiões, nos traz o efeito cômico.
2. E por falar em Seinfeld, pouco pode se comparar a esse seriado
em termos de roteiro. Sempre feitos de modo a privilegiar um tema por
episódio, os roteiros sabem intrincar cada pequeno aspecto do tema
principal na vida pessoal de cada um dos quatro protagonistas, o que rende
um sem número de situações cômicas (a própria
repetição dos temas por si só já aumenta a
graça da sucessão de situações). Por exemplo,
no dia anterior a esse texto, o tema era comunismo. Elaine arranjou um
namorado comunista, George leu o jornal do comunista e se interessou por
um classificado pessoal que dizia que beleza pessoal não era importante,
correspondeu-se com a mulher e marcou um encontro em seu escritório.
Seu chefe, por algum desencontro, ficou sabendo que George era comunista
e mandou-o para Cuba. Em outro momento, Cosmo Kramer tem um trabalho como
papai noel de shopping; numa conversa com o namorado de Elaine, começa
a ser doutrinado, ler literatura sobre o assunto e, numa cena hilária,
pregar contra o capitalismo, vestido de papai noel, para uma criança
sentada em seu colo. Em outra ocasião, Jerry conversa com sua namorada
e ela lhe diz que seu patrão deve despedi-la se Jerry não
assumir uma obrigação; ele pragueja contra o domínio
dos meios de produção. Essa infinidade de pequenas piadas
dá uma unidade incomum ao produto cômico em geral e só
é possível na sitcom (ou nas séries cinematográficas
à Gordo e Magro, avós das sitcoms): precisa de um
determinado número de episódios e na garantia de sua continuidade.
Seinfeld representa, todavia, uma exceção: trata-se de um
seriado anti-sentimentalista, onde todos os personagens são safos
o bastante para ficarem chorando pelos cantos e têm a dimensão
exata da sua ridicularidade natural (o que faz a beleza intrínseca
desse tipo de comédia). Seinfeld, assim, desenha a única
adaptação possível do humor de um Buster Keaton nos
dias de hoje: apenas uma sucessão de gags, sem uma história
muito firme para aguar a diversão e um aproveitamento magnífico
do pouco material com o que trabalham (em Keaton, o ambiente e os objetos
circundantes; em Seinfeld, um fato novo que ocorre).
3. Saindo do canal de seriados para o de música. Não é
surpreendente que os clips de música eletrônica tenham todos
apenas duas estéticas, aparentemente opostas? Nos grupos de uma
abstração maior e um maior uso do computador (Coldcut, Orb,
Orbital, Roni Size), os clipes ora apresentam uma tentativa de realismo
cotidiano ora um abstracionismo pictórico. Isso quando não
estamos em "Brown Paper Bag", onde o abstracionismo deriva dos
próprios movimentos cotidianos, e que já é um marco
por realizar essa façanha. Mas o que há em comum entre música
eletrônica, abstracionismo (geralmente minimalista) e realismo cotidiano?
Não é pouco. Entre abstracionismo e música eletrônica,
muito até: do mesmo jeito que os sons são sintetizados na
música eletrônica (eles também o são em qualquer
instrumento elétrico, como a guitarra, mas com fins de emulação),
as imagens são sintetizadas nos clips, e geralmente eles apelam
para um abstracionismo exatamente pelo mesmo motivo da música eletrônica:
fugir da emulação. Assim, eles encontraram Kandinsky e parecem
pouco dispostos a largá-lo: daí a profusão de linhas,
planos e retas, pontos e círculos e símbolos geométricos
em geral que adornam a tela de diversos clipes de música eletrônica.
E com o realismo cotidiano, o que a música eletrônica tem
a ver? Isso seria um motivo para questionarmos nosso próprio cotidiano,
descobriu como um certo uso da música veio se estabelecer e se
adequar a nossos momentos de ócio. Uma aposta: o walk-man.
Quando não em clubes noturnos, a música eletrônica
é muito forte nos walk-mans. A hipótese não
é boba: muitos dos videoclips de eletrônica se aproveitam
das imagens de metrôs, de calçadas de ruas, geralmente o
percurso entre um lugar e outro, onde se está povoado (várias
pessoas à sua volta) mas sozinho (você não conhece
ninguém), tendo como única companheira a música que
vai direto aos ouvidos. Daí a necessidade e a absoluta coerência
de levar o cotidiano ao clip eletrônico.
4. Extrapolemos: haveria alguma ligação entre essas estéticas
aparentemente concorrentes, o abstracionismo minimalista e o realismo
cotidiano? Questionemos a realidade mais uma vez: a sociedade dos anos
80-90 vive um momento novo e absolutamente radical no que diz respeito
à vivência em grupo. Um flanêur baudelairiano
poderia hoje se sentir dono da cidade? Talvez sim, mas com muito mais
dificuldade. Não só porque as cidades aumentaram, não
só porque hoje o mundo que nos rodeia é inteiramente habitado
por desconhecidos, mas sobretudo porque o uso que a sociedade e o capitalismo
moderno nos obriga fazer do tempo é diferente, diferenciado: vivemos
o mundo dos personagens de Wong Kar-wai em Anjos Caídos e
dos personagens de Tsai Ming-liang em Vive l'Amour. Não
temos mais o nosso próprio tempo, como o poeta cantava em meados
dos 80s: é o tempo que passa a nos ter radicalmente, e o nosso
único período de ócio criativo é o período
da passagem, da ida de um lugar a outro; o tempo do transporte, o tempo
em que podemos ler um livro por distração ou ouvir música.
Nossa vida, assim, torna-se, como a música se tornou, como uma
parte do cinema se tornou, minimalista. Devemos compreender esse termo
não como "tendo poucos recursos", mas sobretudo como
"escolha deliberada de um ou poucos motivos para exprimir um todo",
a definição musical do termo. Se musicalmente ou cinematograficamente
o minimalismo é vivido e adorado, é certamente porque a
nossa sociedade tem a sua experiência direta em sua vida cotidiana.
Nossa vida é metódica e minimalista, regrada e matematizada.
Sem vínculos com uma vida social maior do que a vida de uma pessoa
(ou dois, quando se é casado, ou mais, quando se tem filhos), o
indivíduo é atomizado. Se o indivíduo antes era uma
representação da sociedade, hoje seu papel mudou. Ele não
consegue achar mais esfera de representação, ele não
pode senão sintetizar comportamentos (como a música eletrônica
e a imagem de síntese). O próprio indivíduo é
um ser tornado abstrato da sociedade, e a vida cotidiana é transformada
em espaço abstracionista, ponto, reta e plano. As possibilidades
de experiência são imensas, como nos timbres da música
eletrônica e nas imagens de síntese. Mas a hora da reinserção
no social chama, e aí quem pode pode.
5. "Brown Paper Bag": o próprio indivíduo sintetizado
e agindo a partir de um programa de computador, com gestos de máquina.
"The Box": os delírios sintéticos de uma imagem
cotidiana. A máquina se liga ao homem mais fácil do que
se supunha, o abstracionismo é mais parecido com o cotidiano do
que imaginávamos. Mas isso não vai sem problemas.
Ruy Gardnier