A Idade do Ouro
de Luis Buñuel
Eu nada sei de seus precursores. Eu o vejo de pé, só sobre
um pico do Himalaia, girando nas nuvens. Eu o vejo, o raio nas duas mãos,
dançando à beira de um precipício .Lá embaixo, eu vejo a multidão ribombante,
vociferante, blasfemando primeiro e rogando após, eu ouço o ruído do dilúvio,
eu sei que tudo será destruído – os homens, suas criações, seus mitos,
seus deuses... tudo.
Ele estudou como um entomologista aquilo que nós chamamos
de amor, afim de mostrar sob a ideologia, a mitologia, as baixezas e as
fraseologias, a total e cruel maquinaria do sexo. Ele coloca em evidência
para nós os metabolismos cegos, os venenos secretos, os reflexos mecânicos,
as distilações glandulares, as estreitas imbricações de forças que, na
vida, unem o amor e a morte. Uma metempsicose bioquímica em que o indivíduo
perece para que sobreviva a espécie.
Que importância então que a República de França seja aniquilada,
que o capitalismo seja decapitado, que o cristianismo seja retalhado?
Violência, destruição, depreciação, blasfêmia, perversão, etc. Numa criação
de primeira ordem, numa marcha que não é menos épica do que as lendas
homéricas e a Saga dos Nibelungos, esses elementos são essenciais. Todo
o edifício da sociedade é feito em pedaços, camada por camada, fibra por
fibra. Nós podemos ver os nervos e os vasos sangüíneos, os órgãos internos,
a articulação da estrutura esquelética.
Isso é arte? Quem se importa? Os imbecis chamarão isso de
surrealismo e irão embora cuspindo definições. Tudo bem, isso não é arte.
Arte é uma senha. É uma divina orgia em face da mais divina orgia conhecida
do homem: o sexo. Começa com os escorpiões que lutam em meio a rochedos,
e se termina com uma cruz ornada de belos escalpos femininos. Temos um
certo conto de Blangis que é o diabo disfarçado de Jesus Cristo e temos
outros personagens, mais conhecidos dos astuciosos, que de notoriedade
pública não estão nem aqui nem acolá. Temos os personagens principais,
Lya Lys e Gaston Modot. Temos um cego que é maltratado, temos um cão que
recebe um chute no estômago, temos um jovem que é espancado por seu pai,
temos uma velha viúva de alta estirpe que é esbofeteada, temos um palhaço
com roupa sacerdotal que toca violão, temos...
É necessário dizer que temos nesse filme cenas que jamais
foram imaginadas antes? Temos uma cena, por exemplo, que por uma suprema
tour de force realiza o milagre de divina poesia. Eu extraio do programa:
É inútil acrescentar que um dos pontos culminantes da
pureza desse filme nos parece cristalizada na visão da heroína nos gabinetes,
onde a potência do espírito consegue sublimar uma situação geralmente
barroca em um elemento poético da mais pura nobreza e solidão.
Temos um paso doble que conduz o filme a um termo notavelmente
triunfante. Novo em sua simplicidade, seria inimaginável por um outro
que não o louco Lear. Participando dos orgasmos de Wagner, ele toca os
sinos da raça. O homem é condenado a perecer; ele traiu seus instintos,
ele sacrificou tudo à inteligência. Enquanto ele se observa a si mesmo
como o cume da criação, Buñuel o mostra como mineral, como vegetal, como
animal – como uma entidade orgânica composta de todos os elementos, como
uma entidade contraditória, como templo e como asilo, como flor e como
inseto, como besta e como palhaço.
A inteligência do homem ultrapassa imensamente seus órgãos;
ela os submerge; ela lhes pede a impossibilidade e o absurdo; daí, os
caminhos de ferro, o telégrafo, o microscópio, e tudo o que multiplica
a potência de órgãos tornados rudimentares diante das exigências do cérebro,
nosso mestre. Ele também pediu aos órgãos sexuais mais do que eles podiam
dar; e para satisfazê-los foram inventados esses gestos que colocam no
leito de amor tantas flores e tantos sonhos.
Que fez o homem de seus instintos? Ele os renegou. A soma
de todas as suas leis, de todos esses códigos, princípios, moralidades,
totens e tabus, o que ela produziu? Esterilidade. Morte. Nada. Há entre
as formas inferiores da vida seres que permanecem unidos pelo coito durante
semanas consecutivas; há criaturas que, aparentemente desprovidas do que
se pode chamar de órgãos sexuais, encontram todavia num simples contato
um êxtase que ultrapassa tudo o que a imaginação pode conceber; há, em
certas espécies, tais defeitos de conformação dos órgãos físicos de reprodução
que o ato do coito, quando é realizado, torna-se nada menos que um prodígio.
Mais baixa que o homem, a vida floresce com uma virulência plena de prodigalidade.
O objetivo é a reprodução, a perpetuação; a morte é um episódio. A multidão
segue seu caminho, o indivíduo perece.
À suprema etapa do drama, tão potente é por vezes o instinto
que o macho se oferece ele próprio, não somente como poder fecundante
mas como alimento.
Anatole France diz: "Eu teria feito os homens e as mulheres,
não à semelhança dos grandes macacos como eles de fato são, mas à imagem
dos insetos que, depois de terem vivido como larvas, se transformam em
borboletas e não têm, ao termo de sua vida, outro anseio senão o de amar
e de serem belos. Eu teria colocado a infância no fim da existência humana.
Certos insetos têm, em sua última metamorfose, asas e vivem sem estômago.
Eles só nascem sobe essa forma purificada para amar uma hora e morrer."
A condição de homem civilizado é uma condição ignóbil. Ele
canta seu canto de cisne sem ter a alegria de ser cisne. Ele foi esgotado
por sua inteligência. Acorrentado, estrangulado e mutilado por suas próprias
convenções. Atolado em sua arte, sufocado por sua religião, paralisado
pela sabedoria. O que ele exalta não é a vida, pois ele perdeu o ritmo
da vida, mas a morte. Aquilo a que ele devota um culto é podridão e putrefação.
Suas instituições estão em decadência, seu cérebro está doente. Todo o
organismo da sociedade está infectado. O próprio homem é uma doença. Em
cada grande cidade do mundo civilizado há sábios que conferenciam sobre:
A morte da lua. O homem antes de seu nascimento.
A ignorância.
A certeza da vida após a morte.
A cura pelos reflexos.
Os pesquisadores de juventude.
O rejuvenescimento pelas injeções de sangue jovem.
As descobertas e a multidão.
É possível prever o futuro.
A explicação dos sonhos.
Freud e a infância.
O homem depois de sua morte.
Eles chamam Buñuel de todos os nomes: traidor, anarquista,
perverso, difamador, iconoclasta. Mas eles não ousam chamá-lo de louco.
É verdade, é a loucura que ele descreve, mas não é sua própria loucura.
Esse caos fétido que por uma breve hora onde tudo como que se amalgama
sob sua baqueta, é a loucura da civilização, a constatação das realizações
do homem depois de dez mil anos de refinamento.
O país que assobia para esse filme é a própria flor da cultura,
a grande república da inteligência e da esterilidade. A França, que não
produz nada além de idéias, a França que elevou o amor ao nível de uma
arte, a França representa a humanidade; ao lado dela os italianos são
coelhos fecundos, mas de uma classe inferior; a Alemanha é o mundo inseto,
desorientadora em sua organização, incompreensível em sua crueldade, seu
amor; a América não é exatamente uma terra, mas um mar de neutros, uma
ninhada de onanistas – fecundando às cegas, sem prazer, sem emoção.
É uma coisa que dá pena, que nós tenhamos nos tornado tão
refinados. Nós deveríamos voltar ao canibalismo. Nós somos incapazes de
suportar um momento mais a visão de crânios fazendo caretas na calma torturada
da morte. Antes mesmo que ela se torne fria, nós pegamos a cabeça decapitada
de um porco ou de um cordeiro e nós a enchemos de ar comprimido. Nós exigimos
que quando as coisas são trazidas no prato elas faça, vir água à boca.
Átila, César, Napoleão, eles perguntaram a idade, o sexo,
a nacionalidade dos massacrados? Assim Buñuel, manejando os materiais
brutos, não se perturba, não hesita, em seu ardente apetite de criação,
em trespassar, em despedaçar, em rasgar, em dizimar. Ele é o primeiro
homem a ter tomado o meio da tela e a tê-lo utilizado o mais totalmente.
Ele mostra aquilo que nos foi até aqui recusado, não para chocar mas para
convencer.
Sua violência é uma catarse. Não existe uma migalha de depravação
nela. Suas imprecações são mais puras que os hinos da Igreja cristã. Se
ele utiliza a música de Wagner é somente porque suas orelhas concordam
com sua potente blasfêmia. Ele não é abusado à toa, nem mesmo pelos charmes
artificiais da arte.
Eles pegariam Buñuel e o crucificariam ou, pelo menos, o
queimariam na fogueira. Ele merece o maior reconhecimento que o homem
possa consagrar ao homem.
Henry Miller
(Publicado originalmente em "The New Review",
Éd. Putnam, Paris, 1931. Traduzido por Ruy Gardnier)