Orgia Divina,
por Henry Miller





A Idade do Ouro de Luis Buñuel

Eu nada sei de seus precursores. Eu o vejo de pé, só sobre um pico do Himalaia, girando nas nuvens. Eu o vejo, o raio nas duas mãos, dançando à beira de um precipício .Lá embaixo, eu vejo a multidão ribombante, vociferante, blasfemando primeiro e rogando após, eu ouço o ruído do dilúvio, eu sei que tudo será destruído – os homens, suas criações, seus mitos, seus deuses... tudo.

Ele estudou como um entomologista aquilo que nós chamamos de amor, afim de mostrar sob a ideologia, a mitologia, as baixezas e as fraseologias, a total e cruel maquinaria do sexo. Ele coloca em evidência para nós os metabolismos cegos, os venenos secretos, os reflexos mecânicos, as distilações glandulares, as estreitas imbricações de forças que, na vida, unem o amor e a morte. Uma metempsicose bioquímica em que o indivíduo perece para que sobreviva a espécie.

Que importância então que a República de França seja aniquilada, que o capitalismo seja decapitado, que o cristianismo seja retalhado? Violência, destruição, depreciação, blasfêmia, perversão, etc. Numa criação de primeira ordem, numa marcha que não é menos épica do que as lendas homéricas e a Saga dos Nibelungos, esses elementos são essenciais. Todo o edifício da sociedade é feito em pedaços, camada por camada, fibra por fibra. Nós podemos ver os nervos e os vasos sangüíneos, os órgãos internos, a articulação da estrutura esquelética.

Isso é arte? Quem se importa? Os imbecis chamarão isso de surrealismo e irão embora cuspindo definições. Tudo bem, isso não é arte. Arte é uma senha. É uma divina orgia em face da mais divina orgia conhecida do homem: o sexo. Começa com os escorpiões que lutam em meio a rochedos, e se termina com uma cruz ornada de belos escalpos femininos. Temos um certo conto de Blangis que é o diabo disfarçado de Jesus Cristo e temos outros personagens, mais conhecidos dos astuciosos, que de notoriedade pública não estão nem aqui nem acolá. Temos os personagens principais, Lya Lys e Gaston Modot. Temos um cego que é maltratado, temos um cão que recebe um chute no estômago, temos um jovem que é espancado por seu pai, temos uma velha viúva de alta estirpe que é esbofeteada, temos um palhaço com roupa sacerdotal que toca violão, temos...

É necessário dizer que temos nesse filme cenas que jamais foram imaginadas antes? Temos uma cena, por exemplo, que por uma suprema tour de force realiza o milagre de divina poesia. Eu extraio do programa:

É inútil acrescentar que um dos pontos culminantes da pureza desse filme nos parece cristalizada na visão da heroína nos gabinetes, onde a potência do espírito consegue sublimar uma situação geralmente barroca em um elemento poético da mais pura nobreza e solidão.

Temos um paso doble que conduz o filme a um termo notavelmente triunfante. Novo em sua simplicidade, seria inimaginável por um outro que não o louco Lear. Participando dos orgasmos de Wagner, ele toca os sinos da raça. O homem é condenado a perecer; ele traiu seus instintos, ele sacrificou tudo à inteligência. Enquanto ele se observa a si mesmo como o cume da criação, Buñuel o mostra como mineral, como vegetal, como animal – como uma entidade orgânica composta de todos os elementos, como uma entidade contraditória, como templo e como asilo, como flor e como inseto, como besta e como palhaço.

A inteligência do homem ultrapassa imensamente seus órgãos; ela os submerge; ela lhes pede a impossibilidade e o absurdo; daí, os caminhos de ferro, o telégrafo, o microscópio, e tudo o que multiplica a potência de órgãos tornados rudimentares diante das exigências do cérebro, nosso mestre. Ele também pediu aos órgãos sexuais mais do que eles podiam dar; e para satisfazê-los foram inventados esses gestos que colocam no leito de amor tantas flores e tantos sonhos.

Que fez o homem de seus instintos? Ele os renegou. A soma de todas as suas leis, de todos esses códigos, princípios, moralidades, totens e tabus, o que ela produziu? Esterilidade. Morte. Nada. Há entre as formas inferiores da vida seres que permanecem unidos pelo coito durante semanas consecutivas; há criaturas que, aparentemente desprovidas do que se pode chamar de órgãos sexuais, encontram todavia num simples contato um êxtase que ultrapassa tudo o que a imaginação pode conceber; há, em certas espécies, tais defeitos de conformação dos órgãos físicos de reprodução que o ato do coito, quando é realizado, torna-se nada menos que um prodígio. Mais baixa que o homem, a vida floresce com uma virulência plena de prodigalidade. O objetivo é a reprodução, a perpetuação; a morte é um episódio. A multidão segue seu caminho, o indivíduo perece.

À suprema etapa do drama, tão potente é por vezes o instinto que o macho se oferece ele próprio, não somente como poder fecundante mas como alimento.

Anatole France diz: "Eu teria feito os homens e as mulheres, não à semelhança dos grandes macacos como eles de fato são, mas à imagem dos insetos que, depois de terem vivido como larvas, se transformam em borboletas e não têm, ao termo de sua vida, outro anseio senão o de amar e de serem belos. Eu teria colocado a infância no fim da existência humana. Certos insetos têm, em sua última metamorfose, asas e vivem sem estômago. Eles só nascem sobe essa forma purificada para amar uma hora e morrer."

A condição de homem civilizado é uma condição ignóbil. Ele canta seu canto de cisne sem ter a alegria de ser cisne. Ele foi esgotado por sua inteligência. Acorrentado, estrangulado e mutilado por suas próprias convenções. Atolado em sua arte, sufocado por sua religião, paralisado pela sabedoria. O que ele exalta não é a vida, pois ele perdeu o ritmo da vida, mas a morte. Aquilo a que ele devota um culto é podridão e putrefação. Suas instituições estão em decadência, seu cérebro está doente. Todo o organismo da sociedade está infectado. O próprio homem é uma doença. Em cada grande cidade do mundo civilizado há sábios que conferenciam sobre:

A morte da lua. O homem antes de seu nascimento.
A ignorância.
A certeza da vida após a morte.
A cura pelos reflexos.
Os pesquisadores de juventude.
O rejuvenescimento pelas injeções de sangue jovem.
As descobertas e a multidão.
É possível prever o futuro.
A explicação dos sonhos.
Freud e a infância.
O homem depois de sua morte.

Eles chamam Buñuel de todos os nomes: traidor, anarquista, perverso, difamador, iconoclasta. Mas eles não ousam chamá-lo de louco. É verdade, é a loucura que ele descreve, mas não é sua própria loucura. Esse caos fétido que por uma breve hora onde tudo como que se amalgama sob sua baqueta, é a loucura da civilização, a constatação das realizações do homem depois de dez mil anos de refinamento.

O país que assobia para esse filme é a própria flor da cultura, a grande república da inteligência e da esterilidade. A França, que não produz nada além de idéias, a França que elevou o amor ao nível de uma arte, a França representa a humanidade; ao lado dela os italianos são coelhos fecundos, mas de uma classe inferior; a Alemanha é o mundo inseto, desorientadora em sua organização, incompreensível em sua crueldade, seu amor; a América não é exatamente uma terra, mas um mar de neutros, uma ninhada de onanistas – fecundando às cegas, sem prazer, sem emoção.

É uma coisa que dá pena, que nós tenhamos nos tornado tão refinados. Nós deveríamos voltar ao canibalismo. Nós somos incapazes de suportar um momento mais a visão de crânios fazendo caretas na calma torturada da morte. Antes mesmo que ela se torne fria, nós pegamos a cabeça decapitada de um porco ou de um cordeiro e nós a enchemos de ar comprimido. Nós exigimos que quando as coisas são trazidas no prato elas faça, vir água à boca.

Átila, César, Napoleão, eles perguntaram a idade, o sexo, a nacionalidade dos massacrados? Assim Buñuel, manejando os materiais brutos, não se perturba, não hesita, em seu ardente apetite de criação, em trespassar, em despedaçar, em rasgar, em dizimar. Ele é o primeiro homem a ter tomado o meio da tela e a tê-lo utilizado o mais totalmente. Ele mostra aquilo que nos foi até aqui recusado, não para chocar mas para convencer.

Sua violência é uma catarse. Não existe uma migalha de depravação nela. Suas imprecações são mais puras que os hinos da Igreja cristã. Se ele utiliza a música de Wagner é somente porque suas orelhas concordam com sua potente blasfêmia. Ele não é abusado à toa, nem mesmo pelos charmes artificiais da arte.

Eles pegariam Buñuel e o crucificariam ou, pelo menos, o queimariam na fogueira. Ele merece o maior reconhecimento que o homem possa consagrar ao homem.

Henry Miller

(Publicado originalmente em "The New Review", Éd. Putnam, Paris, 1931. Traduzido por Ruy Gardnier)