O
sonho comunitário
e o processo do desejo


Archibaldo
de la Cruz (Ernesto Alonso)
carrega uma "vítima" em Ensaio
de um Crime
Um sonho em especial povoa a
obra de Luis Buñuel: o sonho da bela comunidade, da agregação
ideal de um grupo de pessoas afins, de modo a transformam o mundo em algo
mais belo. Obviamente, como sempre em Buñuel, esse sonho é
mostrado sempre pelo seu lado negativo: a doce e pura Viridiana, que faz
caridade aos pobres e dá de comer a todos em sua casa, é
traída pelos mendigos que ela mesma ajudou; o padre Nazario, mesmo
tendo construído atrás de si uma pequena comunidade, não
consegue vê-la funcionar sem mesquinharia e brigas; ou então,
em A Ilusão Viaja de Bonde, onde dois condutores tomam um
bonde que vai ser destruído e passam a rodar com ele pela cidade.
Nesse pequeno filme, aparentemente
pouco importante na obra de Luis Buñuel, se joga o problema da
comunidade (e tudo que envolve o radical comum, aí incluído
comunismo) e dos atos belos: um bonde, sem motivo aparente, vai ser colocado
à disposição da companhia. Saudosos e depois de terem
bebido um bom bocado numa festa popular, os dois homens levam o bonde
para uma última viagem pela cidade, sem cobrar pelo ingresso e
carregando toda sorte de gente que queira entrar no veículo. Oportunidade
então para observar um microcosmo muito particular do México,
um bonde literalmente transformado em açougue e disco-bar, onde
pode caber uma mesa de dissecção e uma máquina de
costura.
Mas apesar do tom surrealista
de tudo isso, é outra realidade que transparece: a da ilegalidade
de um gesto belo contra a mesquinharia dos atos legítimos. Em determinado
momento do filme, um senhor se recusa a entrar no bonde sem pagar. Os
condutores explicam sua situação e o senhor os acusa de
comunismo; em outra ocasião, o bonde é confundido com um
outro que deveria levar uma excursão de escola. O ato belo dos
dois condutores, saudosos de antemão de seu veículo preferido,
é considerado então como mero trabalho obrigatório
e qualquer problema que aconteça deve ser devidamente tratado de
forma impiedosa. A "ilusão" de que o título do
filme fala é justamente essa: a ilusão que é viver
em uma sociedade em que o ato belo deve ser necessariamente i-moral, a-moral,
porque a própria sociedade já não pode contar com
os atos belos e realizados por amor, e sim apenas como prestação
de algum serviço e visando imediatamente ao lucro. É a ilusão
do trabalho também: ele deixa de ser o lugar de uma entrega para
ser um lugar qualquer. A companhia pouco se importa com a importância
sentimental do bonde: ele está velho, nós temos bondes mais
novos, então coloquem-no à disposição. A comunidade
impossível num mundo em que o empedramento das relações
sociais transforma tudo em coisa, reifica: tal é um dos temas caros
a Buñuel.
Mas a reificação
talvez tenha mais a ver com a própria natureza do homem do que
com um estágio particular de sua evolução social
e econômica. Mais do que a pressão do capitalismo, é
por sua plena natureza que ele se comporta com o mundo com se estivesse
lidando com objetos feitos por ele. Assim se comporta o desejo masculino,
transformando seus objetos e re-significando o desejo em morte (Ensaio
de um Crime), incesto e blasfêmia (Viridiana) ou dominação
e idéia fixa (El). Não duvidemos, estamos no centro
do cinema mexicano nos anos 50, o cinema que de forma geral coloca em
cena o machismo do homem latino-americano e a submissão da mulher,
ao mesmo tempo casta e prostituta. É no meio desse cinema que Buñuel
vai fazer o mais forte diagnóstico do desejo de superioridade e
controle masculino nesses três filmes. Mais que isso, ele mostra
como é justamente do desejo de correção, de "cidadão
modelo" que a patologia social surge com mais força. Questão
de recalque: o Francisco de El é o proprietário perfeito
nos modos, homem de igreja que mantém-se virgem com mais de 30
anos. Um dia, numa igreja, ele observa uma mulher (universo até
então inimaginado por ele). Pateticamente, ele passa a segui-la
por todos os cantos até fazer dela sua esposa. Ainda assim, depis
do casamento, não deixa de persegui-la porque pensa que ela o trai.
Como sempre, o pecado reside mais na cabeça do puro do que nos
atos do suposto impuro.
Ensaio de um Crime, um
dos filmes mais criativos de Buñuel, encontra o jovem Archibaldo
de la Cruz, filho de uma poderosa família burguesa, com sua empregada.
Ela lhe conta uma história sobre um rei que pensou alguma coisa
e o desejo se realizou. Tentando descobrir se ele tinha também
esses poderes, Archibaldo fixa os olhos em sua caixinha de músicas
e a empregada morre imediatamente, baleada por um tiro que vem da janela
(o que, entretanto, Archibaldo não vê). A partir daí,
ele passa a atribuir à caixinha poderes mágicos, e até
adulto ele os usará para assassinar todas as mulheres que se recusarem
a ele. Igualmente na temática do recalque, Ensaio de um Crime
mostra como o sexo é psicologicamente tão pecaminoso quanto
o assassinato em nossa sociedade. No mundo moderno, em que podemos assistir
a Rambo matando 249 pessoas mas somos tarados se observarmos um mamilo,
Archibaldo passa a associar os dois: a cada resposta contrária,
a cada desejo contido, um desejo irrefreado de morte. Só que esse
desejo de morte é uma inevitável mostra de impotência
(tanto social quanto sexual): ele sempre deseja a morte das mulheres,
só que elas morrem antes que ele possa matá-las. O momento
alto do filme se faz quando Lavinia, uma moça que trabalha como
guia turístico, lhe dá um cartão de endereço.
O endereço, entretanto, não corresponde: trata-se de uma
loja de roupas, mas ela não trabalha lá. Archibaldo vê,
entretanto, um manequim desenhado que foi fatalmente usado como Lavinia
de modelo. Num fabuloso processo de desejo, Archibaldo compra da loja
o manequim e prepara-lhe o "assassinato", incinerando-o. Archibaldo
é impotente: seu desejo de morte (duplo de seu desejo sexual) sempre
se realiza através de um duplo fictício (assassinato falso
de uma mulher verdadeira, assassinato verdadeiro de uma mulher falsa).
Archibaldo não goza porque não adentra na instância
do proibido (o sexo, o assassinato). Ele será impotente até
que saia da obsessão infantil (a caixa de música) e consiga
entrar no mundo adulto (onde o sexo não é proibido). Entretanto,
ele só conseguirá fazê-lo depois de "ensaiar
um crime".
Em Viridiana, as freiras
pedem à noviça que dá nome ao filme para que visite
Dom Jaime, seu tio e homem que faz doações ao convento (observe-se
as ligações entre fé, poder e dinheiro). Dom Jaime,
entretanto, não é flor que se cheire. Atordoado pela semelhança
de Viridiana com sua ex-mulher, enlouquece de amores por ela e, utilizando
de remédios dormitivos, tenta estuprá-la, com o consentimento
da criada. Esse terceiro macho buñueliano, igualmente impotente
porque a sociedade o obriga a cumprir o papel de plena potência,
igualmente falha em seu intento, e morrerá dias depois, em conseqüência
dessa impotência. Viridiana, por sua vez, já "impura"
por se sentir desejada, decide fazer trabalhos de caridade, tentar recuperar
os filhos que a sociedade deixou para trás, igualmente de forma
impotente? Haveria em Buñuel, mesmo que sub-repticiamente, essa
ligação entre a impotência sexual da sociedade e a
impotência social da Igreja?
Nazarin responderia afirmativamente.
História de um padre que se revolta contra a Igreja pela absoluta
incapacidade da Igreja institucional de seguir o Evangelho, o Padre Nazario
decide largar tudo e seguir caminho. Ele é acompanhado por mulheres
que, embora o sigam, têm pouco de vida religiosa, e volta e meia
arranjarão problemas. O padre encara tudo isso como um fardo necessário,
e crê poder ser cristão de seu jeito. Contudo, toda a sua
fé parece responder a uma lógica não do amor, mas
do sofrimento como purificação. Nazarin é o impotente
inverso do macho chicano: ele estabelece sua relação
com Cristo através da dor, e acaba se tornando um fundamentalista
da penitência exagerada tanto quanto os homens patológicos
de Buñuel são fundamentalistas da macheza exacerbada. Isso
dá uma ambigüidade magnífica no personagem: ao contrário
dos homens do recalque, o Padre Nazario atende a uma lógica muito
estrita, e a segue sem contradições. Aliás, é
por querer segui-la sem contradições covardes é que
ele deixa a Igreja e passa a viver uma religião viva. Mas essa
ambigüidade parece nos querer dizer que é justamente essa
lógica, mesmo sem contradições, que está toda
errada. O sentimento de um mundo só bom não dá a
justa medida do mundo: o puro deve pecar, o inocente deve errar. Assim,
Viridiana deve realizar um ménage-à-trois com seu primo
e a criada, da mesma forma que Nazarin deve aceitar a fruta que lhe é
oferecida. Pois a lógica do cristianismo não é a
lógica da vida.
Padre Nazario também
tem seu desejo de comunidade. Ela, entretanto, é pura quimera,
mais até do que as outras. Porque sua comunidade se encontra em
outro lugar, não no terreno da terra mas dos céus. Ele deve
aceder aos céus por respeitar a sua lógica de sofrimento
mas ele vê que nem sempre no mundo uma decisão certa se faz
pelo amor. O uso da violência, numa das cenas finais de Nazarin,
o surpreende muito. Talvez essa comunidade possa ser reencontrada quando
se deixa de desejar o reino dos céus para povoar o reino da terra.
Talvez a mesquinharia mundana seja purgável por um assassinato
fake como o de Archibaldo de la Cruz. Talvez você seja mais
santa quando peca, como Viridiana. Talvez a sociedade possa ter um pouco
de hospitalidade se romperem-se os laços hipócritas de inocência
e poder: essa parece ser a grande lição de Buñuel
para o mundo em que ele viveu. Uma lição curta, grossa,
desestetizante (Dom Luis desprezava profundamente o estetismo e negava
terminantemente uma palheta Buñuel) e direta como o estilo
de seus filmes.
Ruy Gardnier.
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