Buñuel, o ateu exterminador

 

Existem poucos filmes no mundo como O Anjo Exterminador (de Luis Buñuel, México, 1962): ele prova como um argumento tão simples pode ser tão absurdo quanto genial e complexo, suscitando as mais variadas interpretações. A história, que é apenas a "prisão" de burgueses que não conseguem ultrapassar a porta escancarada de um salão, pode dar mais pano para a manga do que a saga de uma dinastia imperial.

No entender do próprio Buñuel, em sua biografia, ele avalia que o filme é um estudo sobre a vontade: o que faz alguém caminhar para alguma direção ou mover um braço, por exemplo? Os personagens querem passar pela porta, mas parecem que simplesmente se esqueceram como se faz para isto. Parecem galinhas presas sobre um círculo riscado por giz em torno delas. Aliás, o filme é uma grande análise do animal-humano, todos isolados em um laboratório numa situação limite que os faz manifestar os mais obscuros e selvagens instintos.

No entanto, a tese proposta por Buñuel pode ser apenas uma vertente das interpretações. Não podemos nos esquecer que toda a criadagem foge, ficando apenas os burgueses e o mordomo pelego. É sabido que Buñuel tinha grande simpatia por idéias de esquerda, o que pode fatalmente colaborar para interpretações marxistas; mas reduzir O Anjo Exterminador a um filme político é tão simplista quanto ridículo. Dentro do laboratório ao qual me referi, as melhores cobaias seriam os "seres mais civilizados" para que estes resgatassem o seu instinto mais animalesco de sobrevivência. Se num primeiro momento eles se vêm presos às próprias regras de etiqueta, não saindo do salão em prol de uma aventura, ou por consideração àqueles que não saem, depois devoram com fome até os papéis e os remédios que estão em sua frente. O detalhe de serem personagens burgueses não pode ser desprezado, já que o próprio Buñuel lamentou não ter feito o filme na Europa para dar um ar ainda mais aristocrático.

Parece que Buñuel poupou apenas três personagens da tragédia, justamente os matando: primeiro, o velho reclamão que não gosta de nada a sua volta (suas últimas palavras são: "contente... mas não pelo extermínio") e o casal, que se ama apesar de tudo (lembrando a obsessão dos surrealistas pelo famoso "amor louco" que eles criaram). No final, as palavras do velho soam proféticas: os convidados resolvem executar aquele que lhe chamou para tal "armadilha", ou seja, o anfitrião (logo este, coitado, é um dos melhores intencionados e, ainda por cima, corno). Assim, O Anjo Exterminador é tão apocalíptico quanto seu nome: Buñuel parece acreditar que a necessidade humana de culpar algo ou alguém por seus próprios defeitos (ou "burrices", seria melhor neste caso) é algo instintivo. Isto sem falar da última seqüência: burguesia e clero preso numa igreja, o povo apanhando da polícia por fora e o sino badalando chamando "as ovelhas de deus" para a sacristia.

O que é pouco lembrado por todos é o que se passa antes da "prisão" dos personagens. São seqüências extremamente ricas e que não servem necessariamente como explicação da psicologia de cada um. Há mulher que possui uma pata de galinha na bolsa; a dona da casa tem um urso de estimação; homens se comunicando por sinais secretos; a virgem jogando uma pedra na janela; etc. Em suma, nada aqui é óbvio e tudo é significativo. Há também toques quase rodriguianos para demonstrar que todos ali tem uma moral (no sentido da moral-instituída) duvidosa, como na cena em que a mulher beija na boca o médico que julgar ter curado seu câncer e, quando esta sai, ele revela aos amigos que sua paciente tem poucos meses de vida; ou quando todos riem (menos o velho) do mordomo que se estabaca no chão. A repetição é um dado presente várias vezes. Os convidados sobem duas vezes as escadas do casarão, por exemplo. Mas o melhor são os três encontros diferentes de dois homens de meia-idade: na primeira vez eles se cumprimentam de forma indiferente. Na segunda, os mesmo trocam abraços calorosos, como se não se vissem há muito tempo. Por último, eles quase se agridem. Ou seja, o cinema de Buñuel é tão rico que não vale nem aqui e em nenhum lugar interpretações à risca sobre todas as seqüências e até mesmo planos. E O Anjo Exterminador é uma de suas obras mais complexas, mas que também possui uma linha narrativa mais sólida e linear (diferente de O Discreto Charme da Burguesia, O Fantasma da Liberdade, e tantos outros baseados em seqüências independentes umas das outras).

E por que os personagens não passavam pela porta? Talvez, esta seja a pergunta menos importante de todas. Nisto, Buñuel se alia à tradição kafkiana de impor aos seus personagens situações limites dentro de destinos trágicos estabelecidos logo de início. Eles estão quase tão presos quanto Joseph K. por exemplo. No entanto, O Anjo Exterminador não é um filme "kafkiano": Buñuel continuou fiel ao seu estilo perturbador e ao mesmo tempo alegre. Mas ele consegue mexer com os nervos do espectador de tal maneira que não há quem não saia do cinema sem fazer a clássica piadinha na porta: "será que vou conseguir sair?". É possível que algumas pessoas tenham demorado horas na poltrona sem se levantar.

Christian Caselli.