Filmes a descobrir, filmes a recuperar



Tudo Bem, de Arnaldo Jabor
Tudo Bem, Brasil, 1978

Tudo isso me faz lembrar de Tudo bem.

A nossa história colonial e de dependência européia gerou distorções em nossa formação cultural. Distorções essas que adquiriram o status de blocos definidores de nossa identidade nacional. Como se no decorrer de todos esses anos, desde o descobrimento, sempre tivéssemos que nos medir tendo em mente o padrão reconhecido em nossos colonizadores. Se éramos algo, éramos em relação a "eles". Se atualmente somos algo, somos porque já fomos em relação a "eles". É uma fórmula inevitável e tentar fugir dela significa ignorar um passado que existiu e não pode ser simplesmente esquecido, levando ao risco de inviabilizar uma definição consistente do que nos representa.

Mentalidade atrasada da elite. Características de subdesenvolvimento. Noções de incompletude em nossas possibilidades como nação. Tudo isso vem naturalmente e já faz parte de nosso ideário. Trata-se do ponto de partida para vários estudos de sociologia, história, antropologia que intelectuais gastaram bastante tempo elaborando para tentar mostrar e compreender as razões e as saídas dessa condição que nos parece incômoda.

Quando se trata de arte, foi também esse pensamento que nos vê em relação aos colonizadores, que gerou movimentos estéticos e temáticos que marcaram nosso trajeto na descoberta de uma linguagem própria. Trajeto este, vale lembrar, incompleto. Nossos regionalismos na literatura simbolizam a vontade de nos fazer representar, ainda que com uma estética importada. O modernismo é a afirmação da dependência como identidade e esta como incorporadora e modificadora de estrangeirismos. Assumimos assim o nosso papel no mundo como contribuidores diretos, à nossa maneira, para o desenrolar da história dos povos e da civilização ocidental.

O cinema nacional está cheio de exemplos que seguiram esse caminho da preocupação com o nosso próprio lugar. Seja adotando uma alternativa estética, como é o caso do cinema novo, ou apenas abrindo espaço para paisagens e tipos humanos tipicamente nacionais, nossos filmes deixam transparecer uma preocupação com nossos problemas ambicionando proporcionar uma visão reveladora e uma interpretação que nos liberte e melhore nossa realidade.

Parece que esse é um bom caminho para se construir uma cinematografia original. Pelo menos garante uma diferenciação em relação a outras cinematografias feitas em outras partes do mundo. Porém, essa vontade de se impor em um ambiente amplo pode acabar descambando para um projeto político e ideológico muito mais aparente que o arcabouço artístico que o filme possa ter.

O fenômeno recente que é Cronicamente inviável é bastante ilustrativo da ocorrência de um esquecimento das possibilidades estéticas e valorização excessiva de um componente ideológico como forma de conquistar espaço se fazendo crítico e diferente. Mas ao preferir esse plano de atuação, o filme acaba aceitando tudo o que sempre foi imposto para nosso patrimônio cultural e não define uma maneira de libertação. Culpa talvez do privilégio concedido às situações e não ao projeto estético em si. No entanto, é também graças a esse filme que nos vem imediatamente à cabeça, por intermédio de profundas semelhanças quanto às intenções, Tudo bem de Arnaldo Jabor.

É fácil identificar os pontos em comum. As duas obras tentam montar um painel que represente a mentalidade do nosso povo, desde a formação até as suas conseqüências para o estado em que se encontra a nossa sociedade. A estruturação do roteiro nos dois filmes também é bastante parecida, ambos usando quadros de situações que, apesar de independentes na cronologia imediata, possuem ligação temática com o todo e tentam traçar um esboço das classes sociais no momento em que foram feitos. Porém, é quando analisamos as diferenças entre esse filmes que notamos a superioridade e a importância de Tudo bem e agradecemos à Cronicamente inviável esse refresco de memória.

Jabor fez um filme interessantíssimo no qual fica claro uma recusa a distribuir culpas e determinar vítimas sem para isso adotar um discurso recheado de angústia inócua onde todos são incriminados. As situações ganham muito humor com diálogos muito bem bolados e uma interpretação primorosa dos atores. Quando estes falam não deixam transparecer uma visão pessoal de qualquer ordem.

A opção por uma construção de realidade pouco rígida e por vezes até ilusória, fazendo uma alusão à situações cotidianas sem tornar o filme uma distribuição de panfletos pode ser vista como o ponto crucial para a sua diferenciação ideológica. As bases da formação cultural e política de nossas elites está bem mostrada, mas de forma tão sutil que não enquadra o papel de nenhum dos elementos formadores como responsável pelos fatos. O discurso vazio e escapista da classe média, muito bem representada com uma formação familiar típica, permeia a totalidade a obra, mas em momento algum chega à conclusão definitiva sobre a situação nacional. Quando se trata da caracterização da classe social mais desfavorecida, o mesmo recurso é usado com bastante tato, não dando espaço para uma tomada unilateral de posição. Os "pobres" pedreiros e as "pobres" empregadas, elementos tão comuns em qualquer casa da dita elite financeira, sabem muito bem pelo que passam na vida, mas não expõe qualquer explicação parcial e equivocada. Não mostram que possuem a verdade para compreender os fatos.

Armando o filme sem se comprometer com a necessidade de ser visto como homem esclarecido e detentor das respostas, aparentemente tão fáceis de serem conseguidas, o diretor fez com que seu filme caminhasse para uma imparcialidade que o liberou da simples intenção política. Tudo bem é antes de tudo uma exposição de circunstâncias na forma de "pequenas historinhas". Não uma apresentação e constatação de problemas. Se eles aparecem, isso acontece porque fazem parte naturalmente da trama e por isso mesmo, conferindo uma liberdade para o espectador, o obrigam a associar o que vê na tela ao que vê no dia a dia. A correlação é imediata justamente por causa da escolha feita pelo filme de não interferir na conclusão alheia.

As caricaturas das classes sociais, usadas nesse filme, são então mero instrumento para que uma situação possa ser armada e filmada, ganhando significação secundária, mas ainda assim importante, de crítica social intensa.

Tudo bem é um filme do tempo em que ainda era possível imaginar um projeto para o nosso futuro social. Junto com esse futuro, era também razoável traçar um plano para o nosso cinema. Não simplesmente um cinema de revolta, pois isso significaria aceitação dos esquemas de compreensão da realidade sem crítica, mas um cinema com propostas para uma nova estruturação dessa realidade. Passando é claro, por uma revisão estética que discutisse essa situação real. Era o tempo do milagre econômico, da formação de uma burguesia com poder aquisitivo e pouca "cultura", dependente de valores importados. Conjuntura que tornava necessário uma nova forma de tratá-la para que a evolução social não estagnasse. Época carregada de ambição, muito diferente dos nossos anos 90, quando a falta de perspectivas quanto ao que criamos é tão grande que muitos acham que para enfrentar um mundo desagradável basta gritar.

João Mors Cabral.