Sérgio
Bianchi:
um diretor e seu tempo;
um diretor e seu país

Uma oportunidade
rara, e infelizmente aproveitada por poucos, nos foi dada aos cariocas
no início deste julho: assistir a obra completa de Sérgio
Bianchi em cinema. Refestelando-se no interessante fenômeno de mídia
que se transformou seu último filme, Cronicamente Inviável,
foi montada uma retrospectiva de todos os seus filmes anteriores. Sintomaticamente,
eles foram exibidos sempre às 14hs. Num Rio de Janeiro invernal
com sol de verão, a opção entre Bianchi e a praia,
entre Bianchi e o trabalho (nos dias de semana) não deixa de ser
simbólica de algo, embora de quê exatamente, talvez a melhor
pessoa a falar fosse o próprio.
Sim, porque a marca
principal que pulsa nos filmes de Bianchi é sua vontade de falar,
de se mostrar, em todos os sentidos que o verbo possui. No caso deste
texto, analisamos especificamente os longas por ele realizados. E desde
o primeiro sua voz estava presente, forte, soando por sobre seus próprios
personagens. Como obrigatoriamente acontece com todos os diretores de
cinema, e artistas em geral, os personagens de Bianchi são todos
ele mesmo. Mas, ainda assim, isso não basta, e ele precisa se colocar
diretamente em contato com o espectador. Esta, e algumas outras idéias
que permeiam os 4 longas de Bianchi, constituirão o rumo deste
texto. Um texto que mais do que simplesmente analisar uma obra, tentará
colocá-la em conflito com o país, sem o qual ela jamais
poderia existir. Pois se há uma musa, por mais deformada e patética
que pareça, nos filmes de Bianchi, esta musa tem nome: Brasil.
O aspecto mais impressionante
dos trabalhos vistos assim, em bloco, é sua coerência. Mais
do que isso, impressiona a forma como os filmes e suas ideologias vão
se moldando qual luvas aos dedos que são a história do país.
Bianchi não é estático. Seus filmes falam muito de
seu tempo, cada um especificamente. No entanto, por trás de cada
momento histórico, imutável como se diz que é imutável
a própria estrutura do país está uma concepção.
Mais do que um pessimismo, o olhar de Bianchi representa um cinismo gritante.
Como diz o personagem de Cecil Thiré em Cronicamente Inviável:
"Melhor o cinismo do que o Movimento pela Cidadania contra a Fome."
Esta frase podia ser o lema de Bianchi como artista. Este cinismo coloca
a obra numa posição paradoxal: representa um retrato do
Brasil que, geralmente, numa cinematografia como a nossa, não encontra
paralelos. Por outro lado, é um retrato distorcido por uma bílis
de tal forma ácida que começa a desbotar na hora em que
é tirado.
Encontrar os pontos
de contato que perpassam todos os longas de Bianchi talvez seja a tarefa
mais fácil de um texto como este. A presença da voz de um
narrador (escrita ou falada), que em linguagem quase acadêmico-teórica,
apresenta uma visão de Brasil. A presença do sexo, sempre
homossexual masculino, como pulsão inevitável, mas vazia
de satisfação, paixão ou completude de qualquer forma
e espécie. A estrutura em cenas independentes, quase esquetes,
que formam um painel, ou mesmo estruturam uma narrativa, mas sempre sem
uma relação direta de causalidade entre si. A estruturação
do perfil dos personagens como figuras simbólicas, cada uma delas
"espelhos" de uma espécie de comportamento em relação
ao Brasil (o "esquerdinha", a burguesa, o artista, o sociólogo,
a proletária-que-subiu-na-vida-e-oprime). A repetição
obsessiva de imagens que simbolizam a contradição sócio-cultural
do país, em especial a figura do pedinte, momento maior de confronto
diário da elite com a realidade de um outro lado. O estabelecimento
de um personagem como a voz "positiva", que sempre termina derrotado,
mas que existe quase como necessidade de ser testemunha. O viés
documental, a crença na imagem real, como catarse contra uma imagem
construída (a utilização do real na construção
da arte é, afinal, o tema principal de um dos filmes). A utilização
não naturalista de recursos de montagem e edição
de som, que servem como comentário extra-campo. O discurso ecológico,
como se a apropriação da natureza pelo homem fosse a única
vertente realmente propositiva em sua obra. A obsessão com a questão
da culpa, e acima de tudo, da ausência de admissão desta.
Em ordem cronológica,
seu primeiro longa é de 1981, Maldita Coincidência.
Ele não tem história, e sim uma situação:
uma ruína abandonada no centro de São Paulo, ocupada pelos
tipos mais estranhos. A partir daí, em esquetes, Bianchi retrata
várias cenas de cada um dos ocupantes do local, às vezes
interagindo, na maioria das vezes não. Cada um deles representa
uma fatia da sociedade brasileira: o riponga, os naturebas, o militante,
o gay, a doidona, além de outras figuras menos pontuais. As cenas
se sucedem sem necessariamente uma ordem, onde cada uma delas parece registrar
a confusão, o ócio, e acima de tudo a desmobilização
completa reinante. No início e quase no final, uma situação
coletiva ligam as partes. É fácil ler-se este espaço
de convivência como uma metáfora em microcosmo do país,
mas não basta fazer isso. Há de se perceber os momentos
em separado que possuem seu significado. E acima de tudo, a presença
organizadora de um discurso sim: o do diretor, que neste caso se apresenta
através de legendas logo no início do filme, por sobre as
cenas. Mas não só, como aconteceria em seus outros filmes,
Bianchi espalha sua voz crítica por vários personagens e
paira por sobre eles como onipresente.
Em seguida, em 1987,
Bianchi filma Romance. Estruturado um pouco como Cidadão
Kane, o filme é a busca de um personagem através do
depoimento daqueles que com ele conviveram. Só que ao contrário
do filme de Welles, onde a conclusão possível é que
o homem é em si mesmo tantos homens que seria impossível
unificá-lo, no filme de Bianchi a conclusão é que
o homem são tantos que é impossível ter heróis.
No início é Antônio César, o personagem morto,
que parece dominar o discurso de Bianchi, e ser de fato um alter ego.
No entanto, a medida que o filme avança e a figura dele é
mais esmiuçada, perde a força. E Bianchi vem assumir por
si mesmo o discurso como na estranha e estupenda sequência documental
que irrompe no meio do filme. Ou ainda como aparece como diretor num destrate
com a atriz que tenta mostrar o jogo de poder no filme. O morto deixa
dois "herdeiros": um deles sofre a pulsão fisiológica
por sexo, o sexo cada vez mais masturbatório e distante, sempre
não completo. A outra mergulha na loucura de tentar se tornar um
ser social, de se incluir no país.
A Causa Secreta
(1992) talvez seja o filme mais centrado num tema de todos os de Bianchi.
Nele se opõe o ato da criação artística ao
sofrimento da vida real. Se tematiza como o artista (e portanto, o humano)
pode se tornar alheio a dor, ao ponto de teatralizá-la e finalmente
provocá-la. É um filme especialmente duro, pois não
se permite muitas concessões ao seu centro de atenção.
É efetivamente um filme temático, mas interessante notar
que não menos episódico. Mais uma vez, a trupe de atores
representa os papéis simbólicos da divisão de classes.
No final, quando parece que desta vez o discurso direto de Bianchi ficará
de fora do filme, ele aparece na mais radical das intervenções.
Ao fim das imagens, antes do crédito, sobre uma tela preta como
uma voz divina. E num texto conciso e direto, explicita todo o seu pensamento
sobre o tema mostrado no filme. Mais uma vez ele não resiste à
quebra do discurso.
E, finalmente, chega
Cronicamente Inviável, talvez seu filme mais ambicioso.
Pois, ao contrário da confusão do primeiro, da estrutura
narrativa do segundo e da concisão temática do terceiro,
este claramente quer ser um tratado cínico sobre o Brasil como
um todo. Não por acaso cruza inúmeras regiões do
país (saindo da São Paulo que havia sido seu único
ambiente até então), não por acaso tenta exibir (e
ao exibir, destruir) o discurso de todos os tipos de classes e movimentos
atuantes na sociedade brasileira (o Viva Rio, o MST, as elites, os acadêmicos).
Com este filme, Bianchi tenta resumir todo o seu pensamento do país,
numa seqüência de cenas onde ele explicita várias vezes
seu domínio, e desta vez não só pelo discurso falado,
mas pelas idas e vindas da narrativa, onde a presença do diretor
está explícita ("Poderia não ter sido assim...").
Ele fala do índio, do negro, do branco. De fato, Bianchi tenta
ser Darcy Ribeiro às avessas. Fala da constituição
variada do povo brasileiro, mas não como positiva e miscigenada,
mas sim destrutiva e polarizada.
A reflexão
mais fascinante possível a partir dos filmes de Bianchi é
a que os relaciona com os diferentes momentos do país, e acima
de tudo, do cinema brasileiro. Em 81, o país passava pelo processo
da anistia, onde se assistia distanciado a uma idéia de retomada
ainda assustada. Retomada de quê? Era a época do desbunde,
mas num momento onde este já não era mais revolucionário
e sim passivo e deslocado. Assim são os personagens de Maldita
Coincidência. Assim é, especialmente, o discurso do filme:
confuso, mas acima de tudo, político. Não partidário,
mas político pois propõe a confusão como característica
primordial do brasileiro para viver no caos. E este caos interessa a quem?
Por outro lado, o udigrudi como marca e possibilidade ainda ressoava.
Em 1987, pós-Diretas Já, em Sarney, vive-se a perda das
ilusões. A esperança de que o fim da ditadura trouxesse
por si só a solução. Não há heróis,
e por isso mesmo, o Antônio César é uma figura quebrada,
múltipla. O discurso se quebra em três, e no fim, só
fica a descrença. Em 1992, era Collor, fim de Embrafilme, o discurso
é direto, pois há um inimigo mais claro. O governo e sua
política de cultura, a falsidade das secretarias (já vista
em Romance). O cinema brasileiro é morto, e só se
vê sua lenta agonia, como a do rato queimado. Tempos sombrios. Em
1999, o Brasil pós-real, o mundo globalizado, o cinema pós-retomada,
Lei do Audiovisual. O descrédito de todos e tudo, a falsidade reinante,
os discursos sociológicos vazios. Os filmes de Bianchi são
ainda mais representativos quando se pensa que eles não são
feitos em um ano. Portanto, são retratos legítimos de uma
época. Cronicamente Inviável começa a ser
feito em 1994, e vai até 1999. A Causa Secreta é
de 1990 a 1992 e Romance de 85 a 87. São filmes mais que
imediatistas, são filmes de processo. Que se transformam e reformatam
enquanto mesmo são feitos.
E, no entanto, algo
incomoda profundamente em Bianchi, que não é só o
tema de seus filmes. Afinal, qual o papel do artista para ele? Qual a
função social da arte? Ela existe? Quando pensamos num filme
como A Nuvem, de Solanas, e comparamos o seu protesto, a sua realização
de projeto artístico, como nos posicionar perante a obra de Bianchi?
O primeiro complicador
é justamente a postura de Bianchi. Ele não se inclui nunca
no que é mostrado. Nem mesmo quando se filma (como nos primeiros
dois filmes). Ele está distante, retirado, acima, olhando com seus
olhos cínicos um processo que acontece apesar e independente dele.
Ele parece ter as respostas todas. Nunca seu discurso possui a humildade
da inclusão, muito diferente de Solanas portanto. Não se
pode dizer por si se isso é uma característica positiva
ou não. Mas o que parece preocupante é a postura que o espectador
assume, claramente por conta desta mesma idéia. Pois o espectador
se identifica sempre com o dono do discurso. E, portanto, ele se localiza
também, de fora. Ri, se assusta, diz até um "Mas é
assim mesmo..." Porém, não se inclui nunca. É
como se o diretor se juntasse ao espectador num camarote muito alto, e
visse bem de longe o filme, o país. Lá de cima, é
fácil identificar os movimentos dos atores, do povo, e ver o que
os causa. Rir de sua inevitabilidade. E aí? Qual a real função
deste cinismo, que acaba muito semelhante a um Casseta e Planeta?
Ao longo dos filmes,
é verdade que a postura de Bianchi vai mudando um pouco, mas resta
saber em que direção. Em Maldita Coincidência,
pode-se dizer que ele assiste ao desbunde e ao ócio confuso como
um superego. Ele até possui distanciamento, mas está lá
dentro. Em Romance, sua empatia se fragmenta, divide-se entre 4
personagens, mas está lá. É verdade que um deles
se suicida, o outro é assassinado, e outro é cooptado pelo
sistema ao final. Mas, o suicídio é uma posição
política. Alguns diriam até que é o símbolo
máximo do livre arbítrio. Portanto, o cinismo passa pela
catarse e pelo posicionamento. Em A Causa Secreta, há o
sublime plano final do rosto de Renato Borghi, onde em meio aos aplausos
pela sua peça, o diretor adquire uma face de terror completo. O
medo do vazio de resultados, daquele aplauso estéril, da desimportância
do seu processo, do seu existir como artista. Este vazio é o mais
perto da empatia que Bianchi chega, mas em seguida seu distanciamento
reaparece no discurso em off. Finalmente, como que continuando
onde parou neste plano, o vazio que sente o artista-diretor de A Causa
Secreta se espalha por todo Cronicamente Inviável. Não
há empatia, só distanciamento. O público, como os
atores em A Causa, expia suas culpas e as expurga ao rir do filme.
Reconhece seu vizinho, mas não a si próprio. E fica a pergunta:
para quê?
Ainda assim, é
importante dizer que, escondidos em cada filme, há momentos de
verdadeira indignação. E a indignação é
a mãe da proposição e simplesmente da ação.
Seja no discurso sobre o trabalho e sua função em Maldita
Coincidência. Seja na seqüência documental, ou no
desespero da pesquisadora ao pegar o táxi, ou mesmo na cena do
suicídio em Romance. Seja na indignação de
Carla ao sair do ensaio, ou nas palavras do contra-regra, ou ainda nos
gritos do diretor na repartição em A Causa Secreta.
Ou talvez, principalmente, na seqüência da Amazônia,
e na sequência de irrupção de violência em Cronicamente
Inviável (a cena da empregada e o amante, da porrada na praia
e finalmente do garçom pregando o terrorismo para as massas). Ali,
nestes momentos, se pode ver o rosto de um artista que se levanta para
filmar e se expressar.
Pois, em última
instância, do que quer nos convencer Bianchi com seu cinismo? De
que nada adianta? De que somos assim mesmo? De que toda postura no Brasil
é inútil? Este é seu golpe final, sua enganação.
Se ele acreditasse mesmo nisso, e aí está o paradoxo que
é na verdade a alma de seu cinema cínico, ele não
filmaria. Porque filmar no Brasil é doloroso demais para se fazer
por esporte. O tiro na cabeça ou o hedonismo vazio seriam as soluções
verdadeiras de um cínico no Brasil, a primeira mais corajosa, a
segunda mais covarde. Ao se levantar para filmar, Bianchi nos oferece
ação, por menos que queira. E seus filmes são isso
mesmo, um importante momento de reflexão. Inútil, talvez.
Bem possível, aliás. Mas, se lá no fundo, ele puder
estar errado um pouquinho, que bom seria ter filmado.
Eduardo Valente
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