Entrevista com Ruy Guerra
A propósito do lançamento de Estorvo


 

Que Ruy Guerra tenha seu lugar garantido no cinema nacional, ninguém tem dúvida. Resta agora saber se esta posição será mantida e a que custo. Com Estorvo, ele pelo menos provou que ainda tem a capacidade de pôr o dedo na ferida. (C.C.)

O sr. declarou que "Estorvo" é um filme contra corrente. O que significa isto?

Ele é declaradamente contra corrente na medida que eu não estou de acordo com esta linha de dramaturgia praticada quase exclusivamente no cinema atual. Mas não foi contra corrente numa atitude puramente de ser do contra, que só obedece a visões estéticas e pessoais minhas. Foi lucidamente contra a corrente. Eu sabia que eu ia exercer uma linguagem com toda a sua radicalidade e que evidentemente iria criar obstátulos de divulgação e de acesso ao público, que não está habituado a esta maneira de ver o cinema.

O que exatamente o sr. é contra no cinema atual está no cinema mundial ou brasileiro?

Não, no cinema mundial. Mas o que não quer dizer que existam muitos cineastas contra corrente. O que acontece é que estes não tem acesso a grandes mecanismos de distribuição e ficam com pouca visibilidade. Agora, Estorvo é contra corrente, porque possui todo um questionamento estético da própria linguagem cinematográfica, o que fica muito complicado de explicar aqui agora.

O sr. considera que desde que o seu começo de carreira o sr. foi do "contra"? O que era mais importante no Cinema Novo? Ser contra corrente no sentido estético ou político?

As duas coisas iam juntas. A postura estética era uma postura política. Uma das coisas que eram críticas no Cinema Novo era o fato de que os filmes buscavam uma identidade brasileira e essa identidade passava por trabalhar conceitos diferenciados e expostos de uma forma própria. Isto implicava numa atitude política e de renovação de linguagem. Nós não queríamos usar as formas dramatúrgicas existentes porque elas não expressavam o que queríamos expressar. E Estorvo tem um pouco esta mesma postura, não mudou muito. Simplesmente tem as suas características atuais da época e tem uma temática específica de um personagem que está perdido, o que acentua o lado da paranóia e da dificuldade de comunicação, tendo uma linguagem que traduzisse isto.

Na época do Cinema Novo era mais fácil a feitura e adivulgação deste tipo de filme?

Naquela época era difícil também fazer filmes, tanto que eles eram feitos em cooperativa. Havia pequenos mecanismos que iam surgindo, como o Banco de Minas Gerais, mas era mais difícil ainda de se fazer filmes do que hoje. E logo quando o Cinema Novo atingiu o seu apogeu, veio o golpe de 64 e depois o AI-5 de 1968, o que tornou ainda mias complicado. O problema de hoje é que é mais difícil fazer filmes como os do Cinema Novo. Quer dizer, há hoje, de uma forma velada, uma censura econômica. E Estorvo teve suas dificuldades, porque, mesmo não tendo uma conotação política, não tem a priori a possibilidade de um grande público.

Existiu uma certa polêmica entre a crítica brasileira sobre a ida de Estorvo ao Festival de Cannes no lugar de Eu Tu Eles (de Andrucha Waddington). O que o sr. tem a dizer sobre isto?

Primeiro gostaria de desfazer um mal entendido. No Festival de Fortaleza, o Eu Tu Eles fechou a competição no lugar do meu filme e eu não fui ao festival. Daí começaram a dizer que eu não fui porque foi o filme dele que fechou, mas não foi nada disto. Eu estava cansado porque havia acabado de chegar de viagem, por isto não apareci. Quer dizer, eu não estava nem contra o filme do Andrucha, não me interessava obrigatoriamente fechar o festival, isto são elucubrações que ficam fazendo. Agora, quanto à questão se o filme do Andrucha devia ou não ter representado o Brasil em Cannes, obre isto não adianta falar nada. São os donos do festival quem decidem. Eu não vou discutir o mérito se devia ou não devia, o que acontece é que isto não depende de nós. Eu não sei se o festival de Cannes viu a tempo o filme do Andrucha ou não, agora o que não adianta fazer é polêmica entre mim e o Andrucha porque a gente se deu muito bem. Eu vi o filme dele, ele viu o meu filme nós até jantamos juntos; se ganhar um ou outro, isto não me interessa. Agora, tentar criar uma cisania, aqui dentro com estas merdinhas é uma besteira. Os que não gostaram da indicação de Estorvo, que montem o seu próprio festival, e escolham os seus próprios filmes, porque isto não depende nem do Andrucha nem de mim.

Estorvo foi filmado em Cuba e no Brasil. Como surgiu a idéia de filmar em vários locais diferentes sem deixar isto explícito ao espectador?

Isto são decorrências do processo da produção, muitas vezes. O filme tinha uma proposta que já vinha do livro de não se passar em nenhum lugar do mundo e de os personagens não serem caracterizados. Durante o processo de montagem da produção, em que eu interceptei o Jorge Perugorría, surgiu a possibilidade de filmar em Cuba, país que eu conheço muito bem e onde já até filmei. Então isto acresentou mais ainda a esta mistura de locais. Ou seja, foi tudo um processo de opção estética e decorrência de produção. Eu até tentei filmar em Portugal para misturar mais ainda, mas por problemas de produção isto não foi possível.

Como foi trabalhar com Jorge Perugorría?

Foi maravilhoso, porque ele é muito técnico e muito sensível porque é um trabalho muito sensível, pelo trabalho sempre muito perto da câmera, com marcas muito difíceis, muito exatas, e ele é um ator muito bom para trabalhar.

Há no filme também um preocupação em misturar sotaques (há no filme vozes de brasileiros, de cubanos e, em off, do próprio Ruy Guerra, nascido em Moçambique)?

Foi tudo um afloramento de intenções. Quer dizer, eu tinha a intenção de fazer uma coisa assim. Tudo isto vai se conjugando no universo que você busca, por circunstâncias e por definições já apriorísticas. É um caminho em que se bate algo que pode ser uma dificuldade, você incorpora ou rejeita em função daquilo que quer obter. Eu podia ter dublado os atores, não era nada impossível, mas eu preferi acentuar a falta de caracterização dos personagens.

Possvelmente, Estorvo será considerado por muitos um filme kafkiano. O senhor concorda com este tipo de visão?

Concordo na certa medida que a novela já foi classificada de kafkiana. Eu acho muito honroso. Kafka é um dos mais paradigmáticos romancistas que representaram o século. Portanto, não recuso este rótulo, porque o acho extraordinário. Mas eu acho que o filme é muito mais marcado dentro de uma corrente existencialista, que é justamente de um personagem que não tem um projeto próprio, que tem uma angústia e que obrigado a se definir num processo que não tem como resolver esta angústia.

Desde Os Cafajestes há um existencialismo latente em sua obra. O sr. concorda?

É possível. Eu estava na França num momento em que o Existencialismo era muito forte. Eu conheço toda a obra teatral, filosófica e literária de Sartre e o existencialismo sartriano é uma corrente que surge fortemente depois das grandes crises (a I e II Grandes Guerras). Eu acho que nós estamos num "pré-pós-guerra", dentro da época da globalização. O que é isto? É a falta de perspectivas individuais e coletivas, é a crise das ideologias e das utopias, e o existencialismo abarca todo esse comportamento, onde o indíviduo é obrigado a se posicionar dentro de uma realidade onde não consegue encontrar o seu espaço, gerando uma angústia no seu projeto próprio de vida. Isto me parece estar interamente em sintonia com o momento em que o Chico escreveu o livro, mesmo que ele não tenha escrito sob esta égide do existencialismo.

O Sr. é amigo do Chico há muito tempo.

O Chico me autorizou dizer que gostou muito do filme.

O personagem principal de Estorvo chama-se "Eu" e tem a com "voz da consciência" a voz do próprio Ruy Guerra. É um filme de vários países, como o sr., que é moçambicano, estudou na França e mora no Brasil. Até que ponto você se vê como o personagem?

Não, eu não me vejo como o personagem. O "Eu" é "Ele", no caso. Eu sou, pelo contrário, uma pessoa profundamente estruturada. Eu tenho as minhas perspectivas e minhas ideologias; eu não estou perdido neste mundo. Eu não enquadro minhas teorias existencialistas numa prática, pelo contrário, analiso o existencialismo como uma atitude filosófica compatível com a realidade, mas eu sou demasiadamente estruturado e seguro para me espelhar num personagem como o "Eu". Estou muito longe disto. Eu aproveito o cinema para dizer aquilo que eu penso e o que eu sinto.

Para terminar, o que o sr. acha do cinema brasileiro atual?

A resposta numa parte está em Estorvo. Eu acho que o cinema brasileiro, na sua maioria, está completamente acomodado, na busca de um mercado. Ora, o mercado brasileiro não existe. A participação do cinema brasileiro deve ser na busca de uma identidade própria, não copiando os modelos externos. E é isso que o cinema brasileiro está fazendo: pegando a dramaturgia externa e copiando para ver se conquista um mercado que não é dele. Então o Estorvo faz tábua rasa disto e se insere numa postura individual usada como um projeto próprio dramatúrgico, embora também saiba que não é isto que conquistará o mercado. Mas é uma postura de resgate de resistência a todo este cinema que está se acomodando a utopia que é esse mercado, que inclusive não está conquistando desta maneira e nem será conquistando.

Entrevista realizada no dia 20 de julho de 2000 por Christian Caselli