Quem te viu, quem, TV?



Televisão, meu amigo imaginário

Quando será que Eric e Donna terão sua primeira noite de amor? Quando finalmente Rachel e Ross perceberão que são definitivamente apaixonados um pelo outro e têm que ficar juntos? Quando Helena descobrirá do amor de sua filha por Edu? Quando Elaine, George, Jerry e Kramer conseguirão finalmente encontrar alguma paz pessoal? São perguntas que a gente faz quando, por um motivo ou outro, a gente se deixa seduzir pelas séries televisivas. Um período pequeno de tempo, em que tive que ficar escrevendo, e foi o suficiente para que a televisão ficasse ligada e os personagens passassem a entrar na nossa vida cotidiana e dela fazer parte.

Isso diz respeito à lógica toda da televisão, em sua diferença radical do cinema. Mesmo quando vemos um filme que passa na tevê, com comerciais, se dá a mesma coisa. O regime é o mesmo, o audiovisual, mas o tratamento e nossa relação é algo de absurdamente diferente. O cinema te esmaga, você precisa ir até ele, pagar ao bilheteiro e passar duas horas ou mais numa sala escura, olhando personagens para os quais você delega o seu próprio destino, sem apelação, por duas horas que podem durar décadas ou uma vida inteira, no caso de O Intendente Sansho, Cidadão Kane ou E o Vento Levou.

Quando você vai ao cinema, você espera uma outra relação com o mundo, a entrada na sala escura significando uma suspensão relativa de todas as sensações comuns de tempo e espaço para a entrada num outro universo, um pouquinho parecido com o mundo que a gente já viu, entretanto fantasioso: o trem da estação La Ciutat jamais sairá da tela, você pode ver os mais sangrentos criminosos e não temer por sua segurança enquanto você olha para a tela e as vítimas não olham para onde aquele vulto cresce... Podemos estar na guerra e não morrer, na Lua sem ser astronauta, etc. Mas de qualquer forma, a imersão quando se está no cinema é total, todas as outras fontes de percepção devem ser esgotadas: não há outras coisas para perceber, as conversas são sempre mal-vindas, qualquer detalhe extra-fílmico deve ser evitado para que a imersão naquilo que a tela conta seja completa.

E com a tevê, esse eletrodoméstico que nos observa desde que éramos crianças, essa caixa que nos deu as primeiras imagens enquadradas que vimos? Minha geração nasceu com a televisão, a vivência sentimental de criança lembra muito de todos os heróis que povoaram seu imaginário – hoje um tanto desbotado pelo tempo. Que estatuto de percepção e de vivência é nosso convívio com a televisão, esse produtor de imagens que te informa do tempo, do resultado dos jogos, do aumento da gasolina e das denúncias de corrupção? Como é nossa relação com ela, que nos fantasia um mundo real (noticiário), que mostra fantasisticamente uma realidade de arco-íris no fundo (novelas), que tenta filmar o cotidiano de jovens amigos ou familiares (sitcoms) ou que nos coloca, pela emissão direta, com aquilo que acontece em outras partes do mundo (concertos, esportes, etc.)? E acima de tudo, quando ela assume uma função de cidadania (eleições, propaganda política, votações no senado transmitidas em tempo real, debates de candidatos?

Certamente é de outra natureza que a do cinema. Não tentaremos fazer aqui nenhuma defesa idealizada do cinema como bem e da tevê como mal, como elemento dispersor, pois não é disso que se trata, e mesmo porque esse tipo de preconceito – tão comum para quem vem do universo do cinema, como nós de Contracampo – realmente nos impede de ver o estatuto concreto, a real efetividade da televisão. Ela não é cinema, nem nunca quis ser, mesmo tendo-lhe tomado a forma griffithiana, sendo-lhe assim eterna devedora.

Quando ligamos a tevê, não esperamos que nosso mundo mude, que nos traga experiências. Estamos dentro de casa, e casa é sempre refúgio, um lugar em que nossas percepções de mundo não se modificam, um lugar cujas regras de percepção você já sabe de cor, o suficiente para locomover-se sem problemas sem qualquer luz. Um primeiro dado ontológico da televisão então é esse: ela deve ser a companheira, um pouco um anjinho da guarda à maneira das crianças, ou do amigo imaginário das crianças solitárias, que nascem filhas únicas e têm pouca atenção dos pais. Ela te dá companhia para acopanhar o fim do dia e esperar o seguinte.

A fruição da televisão é quase sempre em grupo, fragmentada menos comerciais do que pelas ocorrências da vida cotidiana – esquentar a comida, atender o telefone, ver o que passa nos outros canais –, orientada por uma lógica brutalmente diferente da do cinema: a da grande atenção em poucos momentos, a da grande dispersão no geral. Podemos ficar olhando para o pé da cama, para o teto, lembrar dos afazeres do dia seguinte, quando de repente uma palavra ou som te remete novamente à tela e ao desenrolar daquilo que aparece na televisão. Você então passa a acompanhar com a avidez de uns trinta segundos tudo que vê na tela, tenta engolir toda aquela emissão de raios catódicos que te mostra sempre muito mais do que você pode ver.

Às vezes saímos do cinema desfigurados: na saída, já não sabemos nos orientar muito bem, já não nos vemos sabendo exatamente o que fazer depois de uma experiência tão forte. É isso que está excluído da televisão, ou pelo menos do uso diário e comum que dela se faz. A fruição da televisão em relação ao cinema é muito parecida da diferença entre o cigarro e as outras drogas que mudam a percepção: uma você incorpora no seu dia-a-dia, sem precisar suspender nenhuma realidade, podendo executar qualquer função cotidiana com grande eficiência, sem perda; com a outra, nada disso: elas te exigem, tal como num casamento, fidelidade.

O jogo de fidelidades na tevê é mais sutil, mas existe igualmente. Funciona muito à maneira que um gato tem de mostrar que está abandonado. Da mesma maneira que o gato passa a te ignorar e você não entender muito bem a nova rotina do bichano, com as suas séries e novelas se dá o mesmo: aquela personagem que você conhecia já se comporta de forma diferente, o time que você viu jogando já não tem os mesmos jogadores, às vezes nem o programa está mesmo no horário habitual.

De qualquer forma, o importante a reter é sempre que nunca nada na tevê é realmente imprescindível, nada pretende te remeter a uma situação decisiva, de imersão absoluta. Daí a enorma dificuldade para passar filmes que te pedem muita coisa na televisão: poderíamos imaginar Straub, Oliveira, Hou Hsiao-hsien passando entrecortados por comerciais, antes da emissão do jogo de futebol? Improvável. A televisão está muito mais para George Cukor, para Billy Wilder ou para Carlos Manga – e não é à toa que há quase 50 anos Manga tenha se dedicado à tevê...

Se reclamamos da tevê uma produção em série, uma falta de poesia, um maior cuidado dramático, é porque não lhe entendemos a natureza: uma sonata não é uma ópera, um soneto não é uma epopéia, a televisão não é cinema. E se o cinema é aquele companheiro de rota, que vemos de vez em quando mas cuja simples visão nos faz viver e encher de vigor alguns momentos da nossa existência, o televisão é nosso amigo imaginário, que povoa nossa intimidade e que, mesmo sem trazer grandes emoções e suspensões de percepção, faz com que sobrevivamos o dia. A coexistência é possível, amigos, acreditem.

Ruy Gardnier