Paraíso Infernal, de Howard Hawks
Only Angels Have Wings, EUA, 1939.

Cary Grant e Jean Arthur em Paraíso
Infernal de Howard Hawks
Desde que os alunos informais de Henri Langlois tomaram
de assalto a crítica francesa com os Cahiers du Cinéma e
proclamaram uma nova maneira de se ver o cinema que os nomes Alfred Hitchcock
e Howard Hawks ressoam junto nos corações de Truffaut, Godard
e Chabrol. Dos dois, apenas Hitchcock ficou, hoje sendo considerado como
um dos maiores de todos os tempos. Hawks, infelizmente, teve uma trajetória
mais modesta: apenas dois ou três filmes, Scarface (1932),
À Beira do Abismo (1946) ou Rio Bravo (1959) são
hoje conhecidos do público cinéfilo. Não poderia
haver injustiça maior. Hawks é um dos grandes nomes do cinema
americano, e possivelmente o máximo que o cinema americano já
conseguiu ser da fluidez narrativa e do amável desespero de Hemingway
e Fitzgerald. De Hawks, poderíamos igualmente escolher Ceiling
Zero, Hatari!, Levada da Breca, Bola de Fogo,
Uma Aventura na Martinica ou Sargento York. Preferimos,
entretanto, um filme que mostra tanto o veio cômico de Hawks quanto
o existencial: Paraíso Infernal.
"Só os anjos têm asas", nos diz o
título original do filme. Pois é justamente essa dimensão
de tragédia que transparece no filme: trata-se de uma pequena companhia
de aviação trabalhando em climas hostis e com aparelhos
defasados ou deteriorados. Neles, o filme evolui para mostrar que o homem,
ao se fazer de anjo, de imortal, de ser onipotente, pode ter um destino
infeliz. O argumento do filme é do próprio Hawks, e o roteiro
de um grande colaborador seu, Jules Furthman. Juntos, eles preparam a
história de um herói bogartiano com retoques de humor: a
chance perfeita para Cary Grant de fazer-se de herói dramático
inúmeras situações em que ele tem que conviver
com a morte e manter-se na chefia do cargo , mas mantendo sempre
o seu costumeiro pé no burlesco.
Uma primeira jogada magnífica do filme é nos
instaurar no meio daquele ambiente. Um ambiente todo dominado pela idéia
de morte não nos pode ser dado em sua impessoalidade, ou sem um
olhar estranho a ele como nosso intermédiario. E esse intermediário
é a chorus girl Bonnie Lee (aliás Jean Arthur, misturando
momentos de comicidade com outros de uma candura comovente), que chega
na cidade porque deve esperar seu navio por algumas horas. Ela acaba conhecendo
dois pilotos, que a convidam para um belo bife no restaurante de Dutchie,
o holandês que é dono igualmente do serviço de aviação
ao lado do restaurante. Lá ela conhece Geoffrey Carter (Cary Grant),
exímio piloto que agora apenas monitora e controla a entrada e
saída dos aviões (ele só voa, dizem, quando acha
que é difícil demais para os outros). Chega uma encomenda
e um dos pilotos amigos de Bonnie é convocado para levar o avião,
minutos antes do bife sair. Ele morre devido a problemas de visibilidade
e Cary Grant é quem come seu bife. Pouco antes, Bonnie pergunta
a Carter se acha que ela tem culpa na morte dele: "Você tem
culpa? Claro! Você iria jantar com ele. O Dutchie o contratou, eu
o mandei, a neblina chegou, havia uma árvore no meio. Tudo culpa
sua. Agora volte para a mesa e esqueça-se do que aconteceu".
Paraíso Infernal é esse constante contato
com a morte, essa experiência quase absurda de chegar inesperadamente
em um local temível, em que todos brincam de deuses lá em
cima, esperando lentamente sua morte chegar para o desespero dos amigos
que ficam embaixo, sem poder fazer nada. Os vivos carregam a morte como
seu segredo mais íntimo. Nisso, Paraíso Infernal
se assemelha muito a Hana-Bi. Mas ao mesmo tempo, ao contrário
da longa espera pela morte no filme de Takeshi Kitano, Howard Hawks nos
mostra uma vida breve, mas com sentido explícito: arriscar-se o
quanto mais, fazer a sua própria vida valer a pena ser vivida.
É esse o tipo de amor que transparece na relação
de Carter com seu trabalho, mas também na dos coadjuvantes Kid
(o melhor amigo de Carter) e do piloto recém-chegado McPherson
(que tem o passado marcado por ter pulado do avião e deixado seu
co-piloto morrer).
As mulheres, entretanto, exercem um papel à parte.
Se os jogos dos homens são um tanto aquela fúria adolescente
em direção ao desconhecido, à moral mais que estóica
de Geoff Carter: "Não carrego comigo nada que eu não
tenha certeza que vá usar", as mulheres desempenham uma função
mais adulta: tentar deixar viver sem que seja preciso que se coloque uma
rede embaixo do trapezista, sem que os planos atrapalhem a urgência
da vida. "As coisas acontecem rápido demais por aqui",
diz Bonnie.
A história de amor é conhecida: espantada
pelo súbito falecimento, Bonnie conversa no fim do dia com Carter.
Ao comportamento muito duro dele, ela logo redargüe: "alguém
deve ter batido muito em você". Ela está certa
houve, num passado longínquo, uma mulher que imaginou poder viver
com Geoff, mas isso não foi possível. Mesmo vendo a profunda
mácula sentimental do piloto, Bonnie não consegue deixar
de se apaixonar por ele e pelo seu temperamento escorregadio. Pois o assunto
do filme é justamente esse: a paixão pelo perigo como o
único elemento que faz com que a vida a morte realmente possam
valer a pena. E ela, em diferentes ritmos, está presente tanto
nos homens como nas mulheres.
A filmagem de Hawks não pdoeria ser mais certeira.
Ele baseia toda a força dramática do filme nos personagens
e a câmara torna-se então um adorável seguidor, acompanhando
os personagens apenas em sua maneira básica. Howard Hawks era um
diretor eminentemente de ação, de montagem se considerarmos
ela em sentido lato. Mesmo porque era como Hawks entendia a expressão:
quando perguntado se ele acompanhava a montagem de seus filmes, ele dizia
que não precisava, porque ele não filmava um fotograma mais
do que o necessário a montagem já se fazia toda em
sua cabeça, uma verdadeira cabeça-cinema. Em Paraíso
Infernal, a lógica de piloto de avião se aplica tal
qual luva à direção cinematográfica: é
o puro lugar da necessidade, nada é feito por veleidade, por insipração,
mas por pura necessidade de expressão. O filme flui assim, com
uma simplicidade que esconde uma complexidade para poucos. Assim como
na estação Barranca, as coisas em Paraíso Infernal
acontecem também rápido demais. Rápido demais quando,
para citar Hölderlin a propósito da tragédia grega,
"no furor, a força da natureza e a interioridade humana se
tornam uma só".
Ruy Gardnier