Entrevista com Gilberto Santeiro
Diretor da cinemateca do MAM


 

As pessoas que trabalham nas cinematecas parece que se dividem em dois tipos: os que preservam e os que exibem. Os que dão preferência à preservação, que é um trabalho subterrâneo, porque é um trabalho que não aparece; e os que trabalham com exibição, que é um trabalho, digamos, mais "gostável", que envolve público...

Animação de cinemas...

Animação de cinemas, formação de platéia. Então, essa é a parte mais visível, é a parte mais "gostável", entre aspas, de uma cinemateca. A Cinemateca do MAM sempre foi famosa pela exibição, desde a década de 60. Eu freqüento a Cinemateca desde 1963, e eu me lembro, de 63 ao incêndio, em setenta e...

78.

De 63 a 78, quando teve o incêndio, a Cinemateca sempre se caracterizou pela exibição farta do seu acervo, que é um acervo construído ao longo desses anos todos com cópias de diversas origens. Nós temos acervos particulares, de produtoras, acervos de distribuidoras que acabaram ou perderam o direito de exibição dos filmes. Porque quando havia censura, o certificado de censura valia por cinco anos, e essa era a validade comercial do filme. Depois disso você podia renovar o certificado de censura, mas como você pagava por isso, se eu não me engano pagava uma taxa pelo metro linear, você é claro ia gastar esse dinheiro com um filme novo, você não ia gastar com renovação a menos que fosse um filme como ...E o Vento Levou, Casablanca, esses filmes que têm sempre um certo mercado – ou pelo menos tinham nessa época. Na década de 80, no final da década de 80, o MAM começou a receber o acervo dos filmes que estavam... Quer dizer, já havia um acervo original nacional. Porque também tem isso: nós além de termos matrizes de filmes brasileiros, nós temos também algumas matrizes de filmes estrangeiros que vieram para o Brasil para serem comercializados. Alguns filmes, eu me lembro que, sujeito à confirmação ainda, a gente tem algum material da Tabajara. Ela distribuía os filmes russos, os filmes soviéticos aqui no Brasil. Então parte desse acervo está aqui, com a extinção da Tabajara. Mas [como eu esta dizendo], no final da década de 80 o laboratório Líder, na época, hoje em dia Labo Cine, reformulou os seus depósitos e tirou, disponibilizou, os negativos dos filmes que já estavam montados e as sobras dos negativos de alguns desses filmes. Então parte dos produtores tiraram os filmes da Líder e colocaram aqui, e parte a própria Líder, depois de um prazo que ela deu aos produtores, também colocou os filmes aqui na Cinemateca. E aí começou a se formar um acervo de filmes brasileiros. Com a extinção da Embrafilme aconteceu a mesma coisa, 80% das cópias da Embrafilme vieram para cá. Isso no início dos anos 90, com a extinção da Embrafilme no governo Collor. Basicamente, o material que a gente tem aqui é o material do Rio de Janeiro, assim como o material que São Paulo tem é o material paulista. O resto a gente mais ou menos divide. As produtoras paulistas guardam os filmes na Cinemateca Brasileira de São Paulo e as produtoras do Rio basicamente na Cinemateca do MAM.

Criou-se uma situação de fato que hoje em dia você não pode menosprezar. Porque o filme, desde que é revelado, ele entra num processo de degeneração. Uma coisa inevitável, porque tem gasolina, um tipo de material que evapora, que se degrada simplesmente por existir, não tem como você evitar isso. Agora, para que isso não aconteça com danos, você teria que fazer periodicamente um outro negativo, o internegativo e o interpositivo. O interpositivo é também chamado de master e o internegativo é também chamado de contratipo, que é um outro negativo que você faz a partir do negativo original do filme. Existe o negativo original do som e o negativo original da imagem, que juntos compõem a cópia final de um filme. O som é separado da imagem, ele não é junto. Então isso também traz problemas: como ele é separado, a degenerescência não é evidentemente igual à da imagem, apesar de eles serem supostamente a mesma coisa. Eles são copiados juntos, mas eles não se degeneram juntos, uma vez que eles estão separados no negativo. É esse trabalho de duplicação que deveria ser feito preventivamente pelas cinematecas, e é esse trabalho de preservação, não mais preventivamente porque agora o tempo não é mais de prevenção, que a gente pretende fazer agora na Cinemateca, um trabalho de duplicar esse material. Nos dias atuais, um material desse custa por volta de quinze mil dólares, para você duplicar a imagem e o som de um filme. Quinze mil dólares ou trinta mil reais, mais ou menos, isso é uma estimativa porque cada caso é um caso. Esse é um custo médio de um trabalho desse, que é você fazer o interpositivo, que é o master, e desse interpositivo tirar um negativo. Porque de um negativo você não consegue tirar um outro negativo, você tem que passar por um positivo e desse positivo você faz um outro contratipo, um outro negativo. Esse material é muito caro porque é um material de grão fino, justamente para poder tirar uma cópia boa, para tirar um negativo bom desse material. Esse master também é usado hoje em dia para fazer cópias em vídeo. Antigamente a cópia dos vídeos brasileiros era tirada de uma cópia em 16 milímetros que nunca era muito boa, inclusive o som ficava muito prejudicado. Mas hoje está se tirando cópias do negativo, tanto do som quanto de imagem, ou do master, de som e de imagem também. Mas parece que o primeiro filme a fazer isso foi O Quatrilho, uma produção recente.

Mas o ideal não é você ter o negativo original guardado, não sendo utilizado para fazer cópias, para ser preservado, e você fazer as novas cópias a partir do positivo?

Do positivo você não pode tirar cópia. Pelos padrões normais de segurança, um filme deveria tirar do negativo original no máximo de oito a dez cópias. Fora isso, é arriscado você tirar cópia do negativo original. Porque o negativo original tem as emendas, cada plano tem uma emenda, e às vezes o plano é um plano pequeno, tem uma emenda aqui e outra logo ali. Essas emendas, quando passam nas engrenagens da copiadora, é que geram problemas, podem se desfazer, enfim. E isso, num processo de copiagem pode danificar o negativo, pode arranhar o negativo. Mas se você for ver os filmes brasileiros...

Dificilmente o filme ultrapassa o número de oito cópias.

É isso. Mas é claro que têm alguns que ultrapassam e muito essa quantia. A gente tem uma história que eu posso contar aqui, porque é uma história que já se sabe, não tem novidade nenhuma, que é a história do Pixote. Parece que o Pixote, quando foi feito, não se previa o sucesso que o filme ia ter, e eu só sei que se tirou mais cópias do que se podia do negativo. Isso deixou o negativo do Pixote em frangalhos. Mas o filme já foi restaurado, foram tiradas as cópias de preservação.

É o mesmo caso de O Ébrio, da Cinédia: porque o filme ficou muito tempo em cartaz, então eles acabaram fazendo cópias e mais cópias em cima do negativo. E o filme só conseguiu ser restaurado agora há pouco tempo.

Eu conversando com as pessoas sobre isso e elas me diziam que não se tirava cópia [do negativo] também porque era muito ruim. Eu me lembro também, como eu sou montador desde sessenta e... o primeiro que eu montei foi de 69, então eu acompanho essa questão, que realmente era uma coisa que ninguém queria muito ver. Mas também isso é uma coisa que hoje em dia... Outro dia eu fui ver aquele filme A Praia, eu achei a cópia, a imagem, muito ruim, entendeu? Porque era o master da Líder, a cópia da Líder, coisa que antigamente não tinha muito. A obrigatoriedade de copiar no Brasil é uma coisa mais ou menos recente, é da década de 80. Antigamente as cópias não eram necessariamente feitas no Brasil, então a qualidade das cópias era um pouco melhor dos que as de hoje em dia. Eu não estou falando mal da Líder, mas enfim... Mais ou menos que equiparou [a cópia do filme brasileiro e do estrangeiro]. Eu me lembro também que nessa época, eu como montador, eu nem queria ver um filme que eu tinha montado, com uma cópia ruim. Do Isto É Pelé, que é um filme que eu montei, foram tiradas, sei lá, cento e vinte cópias, uma coisa assim. E é claro que foram tirados os contratipos e os masters respectivos, não se tirou do negativo original. Mas eu me lembro que eu nem queria ver, eu queria ver a cópia um, a cópia dois, a três, a cópia do negativo original. A cópia tirada do master, do contratipo, eu me lembro que a gente não queria nem ver, entendeu? Porque era ruim mesmo. Mas essas cópias, hoje em dia, são as que a gente vê. Eu me lembro de ter visto filmes em cópias originais, ou quase, e ver os filmes hoje em dia, a diferença é muito grande em termos de fotografia. Eu até vi aqui outro dia aquele À Propos de Nice, que eu tinha visto uma cópia não foi nem aqui no Brasil, foi na Argentina, com a fotografia do Boris Kauffman, famoso fotógrafo de origem russa, e era uma fotografia maravilhosa. Os próprios filmes do Tissé, fotógrafo do Eisenstein: eu não sei como seria a cópia original do Outubro ou do Potemkim, apesar de eu ter visto cópias tanto de um quanto de outro na década de 60. Em 64, Potemkim passava no falecido Cine Ópera por ocasião do golpe. Eram filmes que tiveram exibição nessa época. Hoje em dia você vê o filme e não sabe o que seria o negativo. Você vê isso em todos os filmes, praticamente: os filmes alemães, os filmes do Murnau, a gente intui que a fotografia é muito bonita, mas hoje em dia você não consegue muito bem ver isso, uma fotografia nas cópias do jeito que elas estão.

[pausa na entrevista]

O problema da Cinemateca é exibir. Porque se você só restaura os filmes, fica um trabalho um pouco esquizofrênico, você não exibe os filmes que você restaurou. E é bom até para você avaliar, avaliar o estado da cópia e a própria história do filme, promovendo um reencontro com um filme. E a Cinemateca tem muitos filmes que não são exibidos, filmes que são desconhecidos, filmes que as gerações posteriores não assistiram. E também tem essa coisa de tela grande, apesar de eu, pessoalmente, assistir muita cópia em vídeo. Porque eu não só trabalho com cinema como eu sou um espectador razoável de cinema, eu assisto uns quarenta filmes por mês, então eu me mantenho mais ou menos a par. Apesar de terem feito cinema, muitas pessoas não freqüentam cinema, não vêem filmes. Eu gosto de vê-los e os assisto com uma freqüência razoável. Agora, a Cinemateca está querendo fazer isso, está voltando a sua programação com mostras, até o final do ano nós ainda vamos ter mais ou menos umas oito mostras: Faces do Brasil; o Buñuel da fase mexicana, com seis filmes da década de 50; O René Clair parlant, que é uma mostra dos filmes da fase sonora dele...

A Belair...

Vai ter a Belair, com os filmes do Julio [Bressane] e do Rogério [Sganzerla] – eu até cheguei a trabalhar uma época na Belair, eu fui um dos integrados da Belair. Depois vai ter o Buñuel francês, com os últimos filmes do cineasta; e, fechando o ano, uma mostra que ainda estamos estudando sobre Freud e a psicanálise, porque tanto o cinema quanto a psicanálise tem cento e poucos anos, eles nasceram juntos, e vai ter uma exposição aqui no MAM sobre o Freud, com alguns objetos dele, particulares, e obras que ele colecionava, obras de arte, porque ele também era um colecionador de arte parece que bem atento. É isso, deve encerrar o ano com essa mostra do Freud.

E como é que está a busca da Cinemateca por parceiros na restauração de filmes? Qual é a política de restauração que você estão querendo privilegiar? Porque tem filmes que estão à beira da desaparição, como A Sombra da Outra, do Watson Macedo...

Sangue na Madrugada também. Essa é uma questão muito delicada, porque na verdade é uma escolha de Sofia, eu não sei ainda muito bem como vai ser... Nós seguiremos critérios técnicos e não critérios artísticos, porque nesse caso esse tipo de questão artística não conta muito, o rendimento artístico do filme mostra pouco.

E varia com o tempo.

É, e varia com o tempo. É claro que os casos mais citados são os das chanchadas. Mas podemos falar também das pornochanchadas, que começam a ter uma valorização. Está sendo objeto de estudos. Nós alugamos cópias para o curso de cinema da USP, para a Eca, de pornochanchadas. Quer dizer, existe uma reavaliação. E o cinema é muito passível a esse tipo de reavaliação, existem vários filmes que na sua época não tiveram muito sucesso, não repercutiram tanto assim, e que no entanto hoje em dia têm uma grande procura. E vice-versa também, filmes que eram famosíssimos, que ganharam Oscar, e que hoje em dia você não sabe muito que filmes são esses, você não conhece bem o contexto em que eles foram premiados, você acha aquela até uma premiação injusta, mas por conta disso também, você não consegue restabelecer o contexto do filme. Então essa questão de restauração passa um pouco por aí. A Cinemateca pretende restaurar até o final do ano... Quando eu digo restaurar quero dizer duplicar, porque tem um diferencial nesse processo: tem a duplicação mecânica, que é feita quando o filme aceita ainda ser passado mecanicamente...

Da película velha para uma nova.

Para uma nova. Agora, há películas que não permitam mais esse tipo de transporte de imagem puro e simples.

Porque ela encolhe, deforma...

Pelo tipo de danificação que um negativo sofre. E aí o processo é um processo quadro-a-quadro mesmo, é um processo lento. Se um filme tem 24 quadros por segundo, imaginem passar um longa-metragem que tem mais ou menos noventa minutos, um loga-metragem padrão, mas hoje em dia eles estão passando de uma hora e quarenta, uma hora e cinqüenta, filmes de ação como o Missão Impossível 2, que tem quase duas horas, o Pânico 3 também... Até os filmes de ação hoje em dia são maiores do que eram antigamente, na década de 50 e 60. E nesse processo, aí o preço pode custar uns 150 mil dólares, 300 mil reais. Há casos como o do Lawrence da Arábia, que custou 350 mil dólares para ser restaurado. Outro dia até me falaram de um filme que foi mais caro, não é o My Fair Lady... um dos filmes que restauraram recentemente...

Foi o do Hitchcock, então, Janela Indiscreta.

É justamente, foi do Hitchcock mas não o Janela Indiscreta.

Foi o Vertigo então, Um Corpo que Cai.

É, foi o Vertigo.

Porque o Janela Indiscreta foi restaurado agora, pelos mesmos mesmos dois restauradores que já tinham trabalhado no Vertigo.1

Eu acho até engraçado porque Um Corpo que Cai é um filme até modesto, do ponto de vista de feitura. Não é ...E o Vento Levou, não é Lawrence da Arábia, nem My Fair Lady. É um filme dentro dos padrões tradicionais de produção, e no entanto parece que a restauração custou 550 mil dólares.

Porque eles levaram dois anos restaurando o filme, pesquisaram várias cópias do filme, fizeram um estudo de cor no computador... com a parte de som também, daí esse custo.

A parte sonora, hoje em dia, para você restaurar tem que passar pelo computador. E está se tentando fazer também, mas eu não sei muito bem o resultado disso, é uma coisa nova, que é fazer uma coisa digital, de computação, mesmo do ponto de vista de imagem. Porque o de som é simples, você coloca no computador, faz as equalizações que tem que ser feitas...

Elimina o sinal do ruído.

Elimina também o sinal do ótico, porque ele tem uma baixa freqüência característica, você sabe quando sai de um ótico só de você ouvir, você sabe se a origem daquilo ali foi um ótico. Então você passa isso para o computador e tenta minimizar esse problema, e acrescenta coisas, se for o caso, uma faixa de ruído, alguma coisa assim... O Lawrence da Arábia, por exemplo, teve cenas que foram dubladas de novo, acrescentou-se algumas cenas, aproveitando que o Peter O’Toole e o Alec Guiness, os atores, estão vivos, então fizeram um trabalho com eles. Apesar de a voz ter mudado, mas aí dá para você eqüalizar. Agora, com a imagem também estão querendo fazer isso para fazer a kinescopagem final, você faz um trabalho desse e depois você kinescopa de novo, e o filme volta a ser película. Porque a kinescopagem é você transformar um vídeo, um magnético, em película de novo, em filme outra vez. Parece que estão querendo fazer isso também, mas eu não sei bem se existe algum filme feito dessa maneira. No Brasil ensaiou-se fazer também, mas desistiram por causa dos custos muito grandes.

Como é que o Brasil está de know how de restauração?

Pois é, eu acho que está mal. Quer dizer, existe um laboratório em São Paulo que faz um trabalho que vai desde a janela molhada, que é um trabalho quadro-a-quadro: a janela molhada – liquid gate que se chama em inglês – ela é para tirar as sujeiras e os arranhões que estão na emulsão. Você usa esse processo e minimiza muito essas impurezas, esses arranhões. Agora, como é um processo de quadro-a-quadro é um processo muito trabalhoso. Essa história que você me falou do Hitchcock, de dois anos, é só para você ver. Nos Estados Unidos, com recursos, eu acredito que para o cara fazer uma empreitada dessas chegou a um acordo com a Universal – eu não sei bem porque o Vertigo, mas se bem que é um dos filmes mais famosos do Hitchcock – e fizeram esse trabalho. É um trabalho muito dispendioso e eu não sei como é que no Brasil se poderia fazer isso, entendeu? A Líder, a Labo Cine, que eu sempre chamo de Líder, está criando um departamento para isso agora, e vamos ver o que acontece para ver como é que fica. Mas o Brasil está na década de 60 em relação a isso. O material que a gente tem é um material feito heroicamente de sucata, é um material remontado... eu estou falando no bom sentido, é um trabalho...

Não é no sentido pejorativo mas tem o seu grau de amadorismo?

Não é bem isso, amadorismo no sentido...

É uma abnegação.

É, uma abnegação pelo que você está fazendo. Na verdade, esse laboratório de São Paulo é o mesmo laboratório que eu vi no final da década de 70, eu fui à Cinemateca Brasileira e lá eles fizeram um laboratório com sucata. E era um laboratório muito interessante. Nessa época eu assisti a alguns filmes, como Exemplo Regenerador, o São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole, que eles restauraram, o Sol sobre a Lama, do Alex Viany, e eu achei o trabalho muito bom. Agora eles remontaram esse laboratório que tinha sido desmontado, e agora eles estão querendo retomar esse trabalho. Nós pretendemos fazer esse trabalho com eles, com a Cinemateca Brasileira. Nessa primeira etapa seriam quinze filmes nossos e quinze filmes deles. A gente está fazendo esse trabalho juntos para evitar a duplicação de trabalho, como acontecia anteriormente, quando as duas cinematecas faziam um trabalho meio que separado. A gente quer fazer o trabalho juntos justamente para unir os esforços. A busca de patrocinador, é o que está acontecendo agora...

Ainda está dependendo de patrocinador esse projeto?

Sim, está dependendo de patrocinador e a gente tem que sensibilizar esses patrocinadores, porque existe uma certo investimento nas produções novas mas as produções antigas estão esquecidas, e é isso que precisa ser relembrado.

E esse projeto com a Cinemateca Brasileira envolve patrocínio direto ou a idéia é investir por alguma lei de incentivo cultural?

Seria ou dotação governamental ou entrando na Lei do Audiovisual, ou mesmo na Lei Rouanet. A gente pensa em criar um selo da Cinemateca para esse material restaurado. Seria uma coisa ideal porque veicularia o filme. Existe também a TV a cabo, que realmente criou uma demanda. Existe um interesse muito grande por filmes, tem muita grade para preencher com material brasileiro agora nas televisões a cabo, e basicamente no Canal Brasil, que só tem filmes brasileiros. Eu vim agora desse Congresso de Cinema em Porto Alegre e você via que a grande questão lá em relação à televisão era justamente essa, do acesso ao filme brasileiro na televisão a cabo, coisa que não existe, com a honrosa exceção do Canal Brasil. Mas você criar também um selo de vídeo para os filmes restaurados pela Cinemateca era uma idéia interessante e faria essa divulgação. Porque a questão é delicada também até em relação à quota de tela, porque eu não sei como é que seria, qual seria a reação dos produtores em ter os fantasmas desses filmes do passado disputando também a quota de tela que já é tão pequena para o cinema brasileiro. Sobre essas coisas a gente teria ainda que fazer um estudo, para saber qual seria a reação do mercado a esses filmes brasileiros. Isso pode parecer bobagem, mas, hoje em dia, em relação ao filme em preto-e-banco existe uma rejeição ao filme. A gente sabe disso porque a colorização do filme, que é um processo caríssimo, começou justamente se fazendo um estudo dos filmes do Gordo e do Magro, que passavam na televisão americana em preto-e-branco, e a televisão já era colorida, e as pessoas rejeitavam esse material. Até que a Turner, que era detentora dos direitos desse filmes, por ter comprado os estúdios nos quais eles foram produzidos, resolveu fazer uma colorização dos filmes do Gordo e do Magro e a receptividade foi muito grande. Então esse tipo de questão a gente também teria que ver. Eu não digo em colorizar os filmes, absolutamente, porque não só é um processo esteticamente discutível como é caríssimo.

Na televisão você ainda pode tirar a cor se quiser, mas no cinema isso fica meio complicado.

Até porque a cinemateca tem que preservar é o modelo original.

É, o modelo original. Esse é também um dos critérios da Cinemateca, que é você ter no seu acervo, na medida do possível, filmes na sua versão original. Quer dizer, filmes com tela panorâmica, cinemascope, copiados em tela quadrada, ou filmes coloridos em cópias em preto-e-branco, como antigamente se fazia muito na televisão. A gente tem, por exemplo, uma cópia de O Leopardo do Visconti, que é um filme em cinemascope, colorido, e a gente tem uma cópia em 16 milímetros, tela quadrada e preto-e-branco. Nesse tipo de deformação a gente tem que ficar atento. A gente também tem que saber em que formato esses filmes foram feitos, porque tem que ter esse conhecimento. O Marcos Magalhães até contou uma história outro dia, lá no Anima Mundi, que ele assistiu nos Estados Unidos: uma colecionadora de desenhos animados, a mulher tem uma coleção fantástica, uma coleção particular, ela é professora lá na UCLA, e ela passou um filme francês chamado Joie de Vivre, um desenho animado. E ele disse que viu o filme no Brasil, colorido, ele viu aqui na Cinemateca, a gente tem uma cópia desse filme aqui. E a mulher dizendo que o filme era em preto-e-branco, quer dizer, ela não sabia que era colorido, apesar de ser uma expert no assunto. Então tem um pouco desse negócio, de você saber de que maneira o filme foi feito. Essas cópias da Cinemateca às vezes são cópias de televisão, porque teve muitos filmes dublados e essas cópias de trabalho, de dublagem, foram remendadas e estão aqui na Cinemateca. Às vezes até dublados, como aquele filme d’A Mulher Vespa, do Roger Corman, eu não sei se você se lembra do filme, que é ótimo, e a gente tem uma cópia dublada do filme. Mas uma Cinemateca tem que estar atenta ao formato original do material.

A Cinemateca, a gente sabe, acabou de atravessar uma crise bem grave, talvez a pior desde que ela foi fundada. E pelo que se pode ler nos jornais, essa crise foi colocada como financeira. Não seria melhor colocar essa crise sim como financeira, mas porque as pessoas não querem dar verbas à Cinemateca, já que elas acham a Cinemateca desimportante? Não seria melhor colocar as coisas nesse termos e como é que você acha que a Cinemateca pode voltar a ter força e ser um centro de agregação e debate cultural, como ela foi em outros tempos?

Aí eu acho que volta de novo a história da divulgação, da exibição dos filmes. Porque, realmente é como eu já falei, o trabalho de restauração é um trabalho muito subterrâneo, muito...

De pouca visibilidade.

É, de pouca visibilidade. Se ele não for muito difundido, ele tem pouca visibilidade e tende a acabar, porque ele não consegue se tornar conhecido. E a Cinemateca faz essa divulgação justamente para poder... E tem uma coisa curiosa: todo mundo achava que a Cinemateca tinha acabado porque parou de exibir, o que não é verdade. Porque uma cinemateca não tem só esse trabalho de armazenamento de material, como também existe uma biblioteca que é a maior do Brasil no gênero e que tem, sei lá, umas 40 a 50 consultas por mês. É difícil você fazer algum trabalho sobre cinema, em qualquer nível, sem passar pela Cinemateca. Então existe também esse trabalho. Agora, sobre o problema financeiro: o trabalho de restauração é um trabalho muito caro, como eu já falei, a atividade cinematográfica é uma atividade dispendiosa, sempre foi dispendiosa e eu acredito que sempre será. Porque você pode fazer um filme barato, mas o problema do cinema não é só você fazer o filme, é também você exibir o filme. A gente teve agora o caso de A Bruxa de Blair, um filme que custou 45 mil dólares, você vê o filme e quem conhece cinema... Eu vi o filme e acho que ele realmente custou 45 mil dólares. Não é que nem o El Mariachi do Robert Rodiguez que custou 5 mil dólares: isso aí não existe, isso é impossível. Agora, A Bruxa de Blair custar 45 mil dólares é perfeitamente viável. O problema é você exibir o filme. Vencida essa barreira, foi gasto um milhão e meio no lançamento e o filme rendeu 128 milhões de dólares só nos Estados Unidos. Quer dizer, é o maios custo/benefício da história do cinema. Agora, isso aconteceu ano passado, o cinema tem essas surpresas, e quem trabalha nisso mais ou menos que vive em função, na espera, desses acontecimentos surpreendentes, como A Bruxa de Blair ou o sucesso de uma mostra que a gente faça aqui, que às vezes surpreende. Claro que numa escala totalmente diferente, mas que de qualquer maneira, às vezes é surpreendente a resposta que a gente tem para alguns filmes que a gente exibe aqui, para alguma mostra que a gente faça.

E como é que a Prefeitura e o governo do Estado estão se colocando diante da Cinemateca? Eles estão apoiando de alguma forma, eles têm alguma relação com a Cinemateca?

Não. A prefeitura dá uma dotação para o Museu, que é repassada em parte para os funcionários da Cinemateca.

Não existe uma política específica?

Nós estamos necessitados de uma política do governo em relação à preservação de filmes, estamos contando com isso, e para esse projeto com a Cinemateca Brasileira a gente conta com o interesse da Secretaria do Audiovisual – que foi manifestada no 3o Congresso de Porto Alegre. Agora, de concreto ainda não temos nada.

Então a fórmula para a Cinemateca voltar a ser um forte vetor na política cinematográfica e cultural, tanto a do Rio quanto em São Paulo, é ter uma mistura de incrementos do governo e de grupos privados?

E acho que isso se torna mais fácil na mediada que você faça uma maior divulgação

Dê maior visibilidade à cinemateca.

É isso que nós pretendemos fazer.

E como é que a imprensa tem se mostrado em relação à Cinemateca e à volta das exibições?

Eu acho que a imprensa, a televisão também, está fazendo uma divulgação disso, a internet também. Nessa nova fase da programação, que começou em fevereiro com a mostra do Joaquim Pedro, nós estamos fazendo uma pesquisa para saber a origem de como as pessoas tomavam conhecimento dessa programação, e a internet está sendo muito boa para divulgar isso. Várias pessoas fazem inclusive questão de deixar os seus endereços eletrônicos nas nossas pesquisas, justamente para receber essas informações via internet. Eu acho que a visibilidade da Cinemateca poderá se tornar outra vez bem significativa, eu já estou sentindo isso. As pessoas falam muito comigo também. Ontem eu encontrei o Paulinho, no metrô, o Paulinho da Filme B, e ele falou: "Você está todo na televisão agora!". Ë verdade, por causa dos 45 anos da Cinemateca. Que também é uma data bem razoável, 45 anos, no Brasil, nesse nível de cinemateca é uma data a ser comemorada, realmente.

O problema é que no Brasil a Cinemateca é uma instituição de 45 anos que todo ano tem que começar a trabalhar como se fosse o seu primeiro.

É, sem dúvida nenhuma. Mas é bom também, você trabalhar como se fosse o seu primeiro ano.

Entrevista realizada no dia 21 de julho de 2000 por Juliano Tosi e Ruy Gardnier


1 Jim Katz, produtor de uma das sucursais menores da Warner, e Bob Harris, responsável pelo arquivo da Universal. Este último, além dos filmes de Hitchcock, também foi o responsável pela restauração de Lawrence da Arábia.

2 Katz e Harris colocaram o problema em entrevista ao jornal Libération (18 de maio de 2000). Harris: "Não é tanto o uso do computador que se deve discutir, mas a boa maneira de usá-lo". Katz: "As pessoas dizem as maiores bobagens sobre esse assunto. Falam que não há perda geral no processo. Besteira! Você não perde nada entre digital e digital. Mas entre filme e digital, depois de volta ao filme, há uma perda. Cada vez que nós podemos encontrar uma solução química para o problema, nós o fazemos". Harris: "Em Janela Indiscreta, só há dois planos restaurados digitalmente, na famosa cena do beijo. 798 fotogramas, custo de 75 mil dólares. Essa seqüência já era um efeito especial em 1954, porque a lentidão não tinha sido conseguida pela câmera, mas na pós-produção. E fazendo a duplicata ótica, se acumularam muitas sujeiras. Neste caso, o uso do computados se justificava".

3 Após a entrevista, com o gravador desligado, Gilberto acrescentou que esse projeto de um selo de vídeo seria em conjunto não apenas com a Cinemateca Brasileira, como possivelmente com os demais arquivos de filmes do resto do país.