Cinema, questão de música



1. Assim que "Folon" de Salif Keita começa a tocar em A Vida Sobre a Terra de Abderrahmane Sissako, ela já dá a dimensão inteira do filme, ela nos mostra a vida dolorosa daquela aldeia e dá o ritmo do filme, até que o filme se encerrará sobre essa mesma música, cujo título significa "o passado", e poderemos concluir que a música desempenha um papel decisivo na construção do filme. Cinema é música, ele toma dela o ritmo e todo o mundo de sons que ela pode criar. Ele não lhe é refratário, mas sabe utilizá-la, redimensioná-la, causar fusões e experimentações, testá-la nas mais diferentes ocasiões, criar paisagens só com os ouvidos – daí a fescinação cinematográfica de Brian Eno ao fazer de suas experiências de música ambiente justamente num disco chamado Music For Films. A voz perturbadora de Salif Keita, ao mesmo tempo vigorosa e melancólica, rascante e adocicada é uma das maneiras mais sutis para Abderrahmane Sissako mostrar ao espectador qe a luta é grande, que um povo com um "passado" – o título da música – tão sofrido tem que lutar mais ainda para construir um futuro – o sentido do filme.

2. Realizar uma trilha sonora de um filme é mais do que juntar fragmentos de uma época e colocá-los como índices de um período determinado. É por isso que trilhas como as de Boogie Nights, O Verão de Sam e Forrest Gump nos aparecem sempre fáceis demais, sem verdadeiro gosto pela música – embora Spike Lee já tenha sabido filmar a música magnificamente, como em Faça a Coisa Certa, com o rap do Public Enemy. Talvez o mais perfeito exemplo de tomar canções e recolocá-las em sentido com os personagens seja o estilo Robbie Robertson de trilha: trabalhando com Scorsese, sempre soube traduzir para a música o universo dos filmes mais violentos do realizador de Caminhos Perigosos. Em Scorsese, a música não quer te inserir numa determinada época: ela quer criar o ambiente dos lugares, às vezes com uma música absolutamente distanciada na época do filme. Um grande exemplo é a utilização de duas grandes músicas do Clash no final de Vivendo no Limite: "I'm So Bored With The USA" dá a perfeita dimensão da posição mental do personagem, mantendo entretanto toda a sutileza da narrativa.

3. Falando em Spke Lee, ele foi um dos poucos cineastas que conseguiram a façanha de transformar um estilo musical em filme. O que dizer de Faça a Coisa Certa e Clockers – Irmãos de Sangue? Não são filmes-rap? E o glorioso Year Of The Horse, de Jim Jarmusch: como não admirá-lo pela escolha exata da imagem suja do super-8 para filmar o som sujo de Neil Young And The Crazy Horse? Nessa medida, ainda muito pouco se pôde explorar na direção de fazer um filme-música-eletrônica. Não faltam experiências como Pi, de Daren Aronofsky, com a trilha toda de drum'n'bass e techno experimental, mas a conjugação não se realiza a não ser superficialmente. A música opera alguma mudança de percepção, mas não é orgânica no filme. Trainspotting, de Danny Boyle, que levou o grupo Underworld à fama com a música "Born Slippy", também não faz muita diferença entre música eletrônica e punk, rock antigo e novo. Mas é só uma trilha sonora, o filme não é em si eletrônico. Talvez o filme que mais tenha se aproximado disso seja o de Jean-Pierre Limosin, Os Olhares de Tóquio: ele consegue filmar toda a frivolidade da música house, do techno de pistas, coloca personagens sem passado e sem futuro, apenas presos no instante, assim como a febre que existe desde a acid house, no fim da década de 80. Sob esse aspecto, ficaríamos muito empolgados pensando: o que seria um filme-drum'n'bass? o que seria um filme-ambient-techno à The Orb? Se Shadows de John Cassavetes é um filme Charlie Parker, qual seria o equivalente cinematográfico de Aphex Twin?

4. Um dos momentos mais altos da entrevista que Johan van der Keuken deu a Contracampo falava exatamente do nexo entre música e imagem. Ele falava exatamente que a música, em seus filmes, deveria ser orgânica, harmônica com o resto. Se experimentamos uma música errada com uma determinada imagem, você começa a ter dúvidas sobre seu produto: será que essa música é ruim, será que essa imagem não é boa? Uma afeta definitivamente a outra, de modo que seria impossível pensar filmes como Estrada Perdida ou Pulp Fiction, por exemplo, sem a música. Assim como a escolha para uma cena em que o jovem cego Herman Slobbe anda em terreno acidentado em Criança Cega II tem seu equivalente musical no jazz free e desorientado de Archie Shepp.

5. Talvez a grande força da música de um filme reside no fato de ela estar orgânica, de ela sempre fazer parte não como um anexo (como, de forma geral, também são pensados cenografia e direção de arte) mas exercendo uma função importante dentro do filme. "In Dreams" de Roy Orbison é inesquecível por isso: em Veludo Azul vemos como ela serve perfeitamente como contraponto ao momento em que Kyle MacLachlan é brutalmente espancado. Ou ainda em Além da Linha Vermelha, em que a música impressionista cheia de leves contornos existe enquanto elemento atenuador, quase que uma prece, diante de toda a sordidez da guerra. A música é fraca, pouco pregnante quando ela serve sempre como um elemento psicológico grosseiro. Isso é óbvio nos principais filmes de Hollywood, como Gladiador ou Coração Valente: para mostrar ao espectador que os atos do personagem são de uma bravura sobre-humana, toca-se uma música estridente e grandiosa. Claro, ela é coadjuvante, ela mostra ao espectador grosseiramente o que o ator e a câmera poderiam fazer muito mais sutilmente, caso eles realmente sejam capacitados para tanto. A esse tipo tão ridículo de música de filme, é muito mais interessante que se faça a sutileza de um Robert Bresson quando escolhe uma frágil sonata de Schubert para acompanhar Anne Wiazemski em Au Hasard Balthazar ou, ao contrário, de Syberberg em seu Parsifal, onde a poderosa e grandiloqüente música de Wagner encontra um uso semelhante de encenação. Cinema, questão de música.

Ruy Gardnier