Sérgio
Bianchi,
o homem que eu devia
odiar

É impressionante
observar a relação que qualquer texto sobre um filme de
Bianchi desenvolve com a obra propriamente dita. Por mais que se tente
defendê-lo, a defesa tem sempre um pé atrás, ela não
consegue adesão total ao que foi visto, mas faz todo o esforço
para empenhar o leitor a ir ver o filme pois trata-se de um documento
importante acerca da realidade brasileira. É nessa fronteira ética
que o cinema de Sérgio Bianchi se faz, nessa tênue dimensão
em que para quem vê o filme nada permanece em pé, não
adianta muito fazer alguma coisa, mas resta ao espectador a função
que não é bianchiana de continuar. O filme
acaba, tudo acaba, não temos mais salvação, mas a
vida do espectador e a do crítico deve continuar.
E até para ser bianchiano defender o filme dele é
preciso ser antibianchiano defender ideais como o cinema brasileiro,
a realidade brasileira, etc.
É difícil
não ver hoje qualquer filme seu segundo a luz do sucesso e o bafafá
que se fez em cima de Cronicamente Inviável. Não
apenas pelo sucesso, mas igualmente pelo poder de fogo e realização
do filme, e de uma ética significando disposição
pessoal para com a vida de conformação com a realidade,
de que, mesmo sendo uma merda, nada vai melhorar e o jeito é fazer
filmes que se aproveitam disso. Aliás, rir da merda da sociedade
brasileira não é em matéria de ressentimento quase
a mesma coisa que apiedar-se dela? Há bianchismo possível?
Em todo caso, uma
retrospectiva dedicada à obra anterior de Bianchi sempre deve ser
encarada com vigor crítico e, já que é tão
rara a possibilidade de ter acesso à filmografia completa de qualquer
cineasta brasileiro com mais de dois longas, a reflexão acerca
da obra de Bianchi se faz necessária. Vai abaixo, então,
um itinerário que se pode fazer hoje como rato de cinemateca, como
escavador de negativos, para além do oba-oba dos elogios mercadológicos,
tentando aos poucos entender a figura de Sérgio Bianchi.
A Segunda Besta, 1977 feito à
semelhança do cinema marginal, onde a deficiência técnica
colabora esteticamente com o próprio filme, mostra claustrofobicamente
um jovem passando mal dentro de casa, que além dele tem vários
coelhos. As imagens, deliberadamente sujas, ajudam o filme a ter uma "cara"
bastante desagradável, e mexem com o espectador. No fim do filme,
o doente atira todos os coelhos pela janela.
Maldita Coincidência, 1979 Um
bando de gente está entupido numa casa. Quando o filme começa,
eles estão decididos a dar um fim à bagunça que está
na casa. Pouco depois, aparece na casa um pedinte procurando por madeira,
se ele podia pegar no lixo. Num momento alto do filme, o sujeito responde
que não, que no lixo não se toca, que ele podia pegar madeira
do jardim, de onde ele quisesse, mas que a única coisa "sagrada"
que havia na casa era o lixo. Mais tarde, a atriz porra-louca decide que
não toma mais drogas e passa a alimentar-se de comida macrobiótica
(a figura da pessoa que tinha um ideal e depois recusa-o para uma vida
mais "social" é recorrente em Bianchi). No final, o grupo
que mora na casa finalmente consegue realizar uma reunião. Só
que a reunião acaba mesmo nas preliminares: um sugere que todo
mundo aja; outra acha que para agir é preciso um sentido ideológico;
o outro acha que a ação já é o sentido. E
nada termina. Maldita Coincidência apresenta duas preocupações
principais: a cultura do lixo na sociedade contemporânea (que em
Romance se transformará em preocupação ecológica)
e na possibilidade de conexão entre trabalho e prazer, que aparece
na fala de Lélia Abramo, última do filme.
Mato Eles?, 1982 De longe o melhor
filme de Sérgio Bianchi. Ao contrário dos outros, em que
certas denúncias "abstratas" a respeito da sociedade
são feitas, em Mato Eles? é verdadeiramente o estudo
de um fato real, cuja pesquisa e divulgação realmente pode
trazer algo além da reafirmação do ressentimento
na sociedade. Pesquisando três comunidades indígenas, Bianchi
aos poucos desmonta todo o universo de aparentes bons trabalhos em torno
da questão do índio: a Funai é uma indústria
madeireira, as autoridades promovem um gradual massacre dos índios
e a lei observa tacitamente inúmeros procedimentos ilegais, assassinato
até, quando a questão diz respeito às terras dos
índios. No final, a crítica fatal à toda "boa
vontade" em cima da questão indígena através
de um off do próprio Bianchi: vai, vai lá, tão
dando dinheiro pra fazer filme sobre índio, todo mundo quer ver,
vai enquanto é tempo, monta um museu, faz uma exposição,
pede dinheiro aos gringos, os alemães dão muito dinheiro,
vai, cata as coisas dos índios e monta uma lojinha, tira fotografia,
você vai viajar a Europa inteira mostrando, todo mundo quer ver,
mas vai enquanto ainda tem índio, vai rápido. Não
resta pedra sobre pedra.
Divina Previdência, 1983 Um
curta baseado em uma idéia simples: um indigente precisa de carteira
de identidade para poder ser internado num hospital, e todo o aparato
burocrático, que deveria ser feito para organizar e facilitar a
vida do cidadão, se transforma no motivo pelo qual o pobre sujeito
vai morrer. Atenção especial para a repugnância do
machucado no rosto dele e para a cena final, quando o sangue do mendigo
é confundido com mijo: o cidadão comum jamais pensa no indigente
como um igual, mas sempre como um animal, como um bicho que mrlhor estaria
enjaulado longe dele.
Romance, 1988 Um importante pensador
brasileiro acaba de morrer em circunstâncias suspeitas. Ele preparava-se
para publicar um livro com denúncias sérias a serem feitas
a senadores e figuras importantes. Uma pesquisadora e admiradora corre
atrás desse livro e planeja fazer um livro sobre o pensador. Sofre
vários atentados, é ameaçada de morte e termina o
filme como diretora geral de um projeto de pesquisa governamental comandado
por um dos governantes que o livro originalmente denunciaria. As partes
documentárias do filme comovem pela denúncia, mas o cinismo
do filme em alguma medida esboça o hiperconformismo de Cronicamente
Inviável. Um grande mérito é a colocação
em discussão da AIDS numa época que tentava evitrar isso
de qualquer forma.
A Causa Secreta, 1994 É um
trabalho cuja dubiedade impressiona e talvez seja o filme que mais nos
explica sobre Bianchi. Até que ponto podemos identificar Bianchi
com o tal diretor do espetáculo teatral que conduz seus atores
para experiências de dor? Talvez essa seja a maneira mais produtiva
de encarar essa história de um grupo de atores envolvidos pelo
nojo da doença, pela tortura de animais, travestis com o HIV, etc.
A crítica de Bianchi à filantropia se esboça aqui
para aflorar em Cronicamente inviável. Há, entretanto,
nessa crítica uma dubiedade que incomoda: sim, o processo mental
que desencadeia a caridade é nojenta e cheia de culpa social, mas
criticando-a como um todo critica-se também os efeitos.
Ruy Gardnier.
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