Filmes a descobrir, filmes a recuperar



As Amorosas, de Walter Hugo Khouri
As Amorosas, Brasil, 1967


Anecy Rocha e Paulo José em As Amorosas de Walter Hugo Khouri

As Amorosas é um filme de Walter Hugo Khouri, filmado em 1967, com fotografia de Pio Zamuner, música de Rogério Duprat e interpretação de Paulo José, Anecy Rocha, Lillian Lemmertz e Jacqueline Myrna, com participação especial do conjunto "Os Mutantes" (Há inclusive uma cena em que o protagonista troca olhares com a jovem Rita Lee).

O Khouri já era razoavelmente célebre desde Noite Vazia, de 64, ganhou o rótulo de alienado, se filiava à cinematografia européia menos politizada de Antonioni e Bergman, e graças ao relativo sucesso de Noite Vazia era um ‘autor’ discutido, sempre posto em contraponto aos cinemanovistas em atividade. Depois de um outro longa (O Corpo Ardente, 65) e um episódio no filme As Cariocas insistindo na estética do Noite Vazia, Khouri rodou As Amorosas, onde surge pela primeira vez seu alter-ego Marcelo, num filme no entanto de transição, único em sua carreira, principalmente por abordar temas recorrentes em outros filmes do período.

O que eu acho que grila é justamente isso, que esse filme dialoga com alguns filmes brasileiros da época, filmes que estavam querendo retratar os dilemas da juventude daquele momento. Esse olhar do autor para sua própria geração é uma característica comum do cinema novo urbano, era uma fase seguinte ao cinema que descobria o país, os filmes estavam se voltando para o universo dos criadores, são muitos os casos. Nos característicos O Desafio, de P. C. Saraceni, e O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, o protagonista está diretamente ligado ao autor, e seus dramas estão ligados às mazelas políticas e sociais do país, num tipo de enfoque que tem seu auge e crise em Terra em Transe. Em São Paulo S.A. Luís Sérgio Person foge da empatia com seu protagonista, seu interesse é retratar uma juventude arrivista, numa metrópole que não pára de crescer. A empatia com o personagem é total em Todas as mulheres do mundo e Edu coração de ouro, de Domingos de Oliveira, mas o enfoque se atém às questões amorosas.

Note-se que este olhar sobre a própria geração já aparecia em O Grande Momento, de Roberto Santos, e estaria presente no projeto abortado de Nelson Pereira dos Santos, Rio Zona Sul. Nelson terminou por fazer, em 67, El Justicero, rara e divertida incursão pela comédia, que resultou num de seus melhores filmes, nome certo para um texto futuro neste novo espaço da revista, até por ser uma obra injustamente esquecida.

O Khouri já vinha construindo uma carreira quando ganhou o respeito de todos com o clássico Noite Vazia. Mas ele não era da ‘turma’, era um cara que vinha de São Paulo, seus filmes eram filhos daquela tentativa de cinema industrial, da Vera Cruz, Maristela, Multifilmes, uma tentativa que não teve o devido apoio governamental e que até hoje não foi bem entendida pela nossa intelectualidade. Então, para quase todo mundo (exceção aberta aos que combatiam o cinema novo na imprensa), o Khouri era um alienado, um típico representante burguês niilista.

Aí ele fez uma piada melancólica e autocrítica com tudo isso, e é isso que o As Amorosas é. Assim como em alguns dos filmes citados, Khouri identificou-se com seu personagem, e dessa forma discutiu política com ironia e desinteresse, zombando dos cinemanovistas, e lapidou seu personagem egocêntrico e angustiado, imerso em seus problemas amorosos, sexuais e existenciais. No entanto, o que é preciso notar é o viés intensamente autocrítico, nesse filme a identificação entre autor e personagem é especialmente complexa, mais complicada que em quase todos os filmes citados, bem mais complicada também que nos demais filmes de Khouri. Isso porque o discurso de Marcelo é sedutor, mas gera uma crise que leva nosso amigo ao fundo do poço. A simpatia por Marcelo não é total, é perceptível um certo moralismo na história, de um rapaz que não consegue se afeiçoar a uma garota legal, e se ferra quando vai atrás de uma leviana que não quer nada com ele.

Enfim, eu acho que o Khouri, nesse filme, nos mostra um jovem com um pensamento culto e consistente, e no entanto doente, e até cada vez mais doente justamente por sua consistência, por ser tão difícil criticar objetivamente um niilista. Só se pode criticá-lo pelas conseqüências de sua postura, e é isso que acontece no fim do filme, ele se ferra.

O Noite Vazia é lindo visualmente, o Eros... é hiper-ousado, com aquela câmera sempre subjetiva, o Amor estranho amor tem uma história bem forte e subtramas incríveis, mas o Amorosas é o Khouri que mais se liga no seu tempo. O Marcelo é um cara mais ferrado de grana do que seria nos filmes seguintes, a Anecy é a típica estudante esquerdista da PUC, que se irrita e se encanta com a postura irônica do nosso amigo quando um grupo vai tomar o depoimento de Marcelo para um documentário que estão fazendo, o citado momento de ironia com o cinema novo.

É um filme especial por ter uma atuação excelente do protagonista. Khouri adora dirigir atrizes, e o faz muito bem. Quanto aos rapazes, eles que se virem. Como, no caso, o rapaz em questão se chama Paulo José, tudo corre muito bem. Além disso, Jacqueline Myrna e Anecy Rocha estão lindas.

Aliás, esse filme tem uma das mais belas seqüências de amor que eu já vi, um simples plano e contraplano de Paulo e Jacqueline, só que ele está entrelaçado às pernas dela, e o plano dela é um close lindo, é uma seqüência memorável. (Alguns anos depois de ver esse filme, assisti a Une femme mariée, do Godard, um Godard dos primeiros tempos, um filme raro na carreira do cara, porque se preocupa mais com a história e menos com a linguagem, e é muito bom. E não é que lá pelo meio tem uma seqüência de amor com uma decupagem parecidíssima com o trecho citado do Amorosas?)

No filme do Khouri, a violência não surge a partir de uma urgência social ou da truculência do estado, a violência surge da natureza humana, surge inesperadamente. Quando todo mundo estava discutindo a sociedade, e a relação do indivíduo com ela, o Khouri tava alienadão, nos mostrando conflitos definitivos, próprios da nossa espécie, dane-se a política. A violência parte de um grupo de bárbaros, uma Fonte da donzela no fim dos anos sessenta.

Eu entendo que haja quem se incomode com essa redoma, e entendo, mas não muito, quem implica com a fase mais erótica dele. Mas o Khouri merece respeito pela beleza e força de vários filmes que fez. Até porque, como disse um amigo meu, André Sampaio, "O Khouri sabe filmar".

Sabe sim, e muito bem. E eu acho As Amorosas o filme mais vigoroso que eu vi dele, disparado.

Daniel Caetano