Seguindo Velhas Tradições

A produção de arte se contenta com o gueto. Já não é de hoje que ela se deixou trancar em um espaço limitado de exibição vinculando as suas potencialidades a uma atuação de mercado, gerando o triste quadro de difusão que impera no momento: o que conquista o gosto da maioria, independente da qualidade artística, vai ser exaustivamente mostrado. Nesse meio prevalece uma falta de questionamento de valores e o conseqüente desaparecimento do caráter filosófico e criativo da arte.

Justificando a existência do gueto, não como lugar livre de uma lógica do mercado, mas como expansão de suas possibilidades, está o público diversificado que clama por espontaneidade e renovação artística. É fácil relacionar o confinamento do "não vendável" com a própria circulação exagerada de obras que se enquadram em um padrão de excelência. A procura reduzida por essas mercadorias exóticas acaba por permitir a organização de eventos que abrigam, em um espaço físico e temporal bem destacado, todas as obras que não possuem o apelo necessário para terem vida independente e competirem por público e remuneração. E o esquema de difusão de arte não se abala, agora podendo satisfazer os gostos mais díspares com uma falsa abertura e democratização. O público diferenciado, reduzido mas ávido, também parece aceitar muito bem o que lhe é proporcionado, o que torna tais eventos lugares de peregrinação obrigatória.

Essa introdução não tem o objetivo de depreciar iniciativas de organização de festivais de qualquer espécie. Constatar que a situação da difusão de arte passa por essas dificuldades tem por efeito elogiar eventos dessa natureza reconhecendo neles a única forma de se disponibilizar para consumo artigos que, sem eles, nunca seriam sequer lembrados. A criação dessas brechas de exibição é louvável, trabalhosa, martirizante confirmando que os seus idealizadores são, muito longe de oportunistas, verdadeiros amantes dedicados à arte.

No caso do 5º Festival de Cinema Universitário, esse levantamento se propõe mais a confrontar a produção exibida com essa dura realidade, não cabendo, por motivos já expostos, questionar a existência e a validade do evento.

Na sua quinta edição, o festival, organizado por alunos da Universidade Federal Fluminense, apareceu como um acontecimento de extrema importância para o cinema nacional. É ele um espaço de exibição amplo e de debate intenso que funciona como um polo de discussão do que é o cinema sendo de imensa utilidade para a formação de realizadores conscientes e críticos. Um panorama geral da produção de curtas em película ou em vídeo de nossas faculdades de comunicação chamou a atenção de um público interessado que viu na gratuidade do evento mais um motivo para lotar a sala de exibição do Estação Icaraí. Um verdadeiro universo democrático que foi mal aproveitado pelos realizadores.

Toda estrutura montada pelos alunos da UFF com a melhor das intenções, tentando proporcionar audiência e espaço para um cinema "amador" que tem obrigação de servir como exercício de criação para futuros profissionais do audiovisual pareceu bastante desproporcional quando analisamos os anseios do cinema universitário mostrado.

A tendência constatada é um aumento quantitativo da produção. O mercado de cinema e vídeo está se expandindo e a popularidade dessa arte causou um fenômeno de explosão de cursos oferecidos por universidades e departamentos de comunicação social. Seguindo imposições de um mercado de trabalho exigente, o investimento das instituições de ensino, que produzem cinema, em equipamentos garantiu um crescimento da qualidade técnica dos filmes. Cursos como o da Universidade Estácio de Sá e da FAAP confirmam o que foi dito. O número de seus filmes exibidos no festival aumentou consideravelmente e uma melhora técnica acompanhou esse crescimento. No geral, foi possível notar que os filmes universitários estão mais bem fotografados, com um som melhor, mais bem decupados. Muitos são filmados em 35mm mostrando como estamos presenciando uma preocupação para abandonar o amadorismo.

Sem dúvida, tratam-se de iniciativas justas. A melhoria técnica e o maior número de filmes são meios legítimos de se estimular a curiosidade do público. Mas no caso, parece que é o objetivo final do cinema. E uma a contradição entre o nome do evento ("Festival de Cinema Universitário") e o que foi exibido se estabeleceu.

Para a grande maioria dos filmes que entraram na programação fazer parte de um meio universitário de produção não significa muito. Culpa da nova concepção do que é a universidade ou da vontade de receber as glórias de um mercado que não costuma conceder fama e dinheiro para quem não os alcança sem mérito empresarial. Não pretendo discutir as causas do problema. Antes, pretendo expô-lo. O que se deu no Festival de Cinema Universitário é bastante simples: os filmes não tinham ambição universitária.

Coincidindo com o desmonte do ensino superior e a reviravolta social que faz dele não mais um meio de reflexão e pensamento, os curtas universitários dessa safra também abandonaram a ambição criadora tão importante para o processo de amadurecimento artístico. Na atualidade, quando o papel do intelectual está sendo posto em jogo, eles não se esforçaram em intelectualizar a produção, limitando-se apenas a continuar seguindo o caminho menos arriscado de se atingir o público, batendo de frente, é claro, com a proposta que deveria prevalecer no meio acadêmico.

Exigir genialidade de toda e qualquer obra cinematográfica não é plausível. Porém, o mínimo que se pode esperar de curtas produzidos por alunos é uma pretensão ideológica e estética que, se for incômoda, mesmo assim será bem vinda, dado o meio estimulante a que estão atrelados. A universidade é o lugar certo para ousar, ser chato, perturbar, experimentar e sobretudo errar.

O que se viu no Festival de Cinema Universitário foi um predomínio de produções que não pretendiam se desvincular da velha tradição narrativa do cinema. Os curtas assumiram a continuidade dessa forma de produção e a coroaram achando que é a única maneira de ser reconhecido e valorizado por um público já acostumado a esses padrões, perdendo assim a capacidade de se diferenciarem.

O princípio, o meio e o fim, sendo que este de preferência surpreendente ou carregado de uma moral que quer se fazer visionária. Assim se fazem curtas nas universidades. A ambição de inventar algo que não seja cinema, ou algo que seja cinema mas de outra forma apareceu, como sempre, mas em tão poucas películas que criou-se um cenário desanimador para o futuro do pensamento cinematográfico.

Quando se fala em reestruturação dos currículos para adequá-los aos anseios do novo emprego. Quando se propõe melhor adaptação do intelectual à vida objetiva da sociedade. Quando se discute o fim da discussão em geral, o 5º Festival de Cinema Universitário deu uma prova do que pode acontecer se perdermos o viés humano do ensino universitário. A programação de curtas nos proporcionou um espetáculo de falta de interesse na subjetividade, o que é bastante preocupante. Quando os universitários deixam de lado sua vocação de provocar para fazerem exercícios ou trabalhos burocráticos de criação sem pretensão é sinal de que a sociedade está caminhando rápido, mas agora, sem debater para onde está indo.

Aos filmes, pretensiosos ou não, bem feitos ou não, mas que ousaram fugir da objetividade do cinema resta o consolo do aplauso inteligente e a certeza de que, bem sucedidos ou não, cumpriram com o seu dever de universitários. E os organizadores do evento podem ficar tranqüilos. A pureza de suas intenções não se perde com os interesses alheios.

João Mors Cabral