Entrevista com Tata Amaral


Ana Lúcia Torre e Laura Cardoso em Através da Janela de Tata Amaral

Entrevista com Tata Amaral, no Espaço Unibanco de Cinema, em pré-estréia de Através da Janela

Ruy: Tata Amaral, como você vê Através da Janela em relação a Um Céu de Estrelas? Como você vê a passagem de um primeiro filme a um segundo?

Tata: É um desafio ir adiante. Acho que a passagem de um primeiro para um segundo é o desafio de caminhar, mesmo. E uma das coisas que me preocupavam era não seguir a fórmula de Um Céu de Estrelas, por mais que, de alguma maneira, o filme tenha sido bem sucedido. O roteiro desse é todo diferente. Apesar de ele propor um aprofundamento nessa pesquisa que a gente começou com Um Céu de Estrelas em relação à tragédia, em cima dessa estrutura narrativa mesmo, Através da Janela propõe uma dinâmica totalmente diferente. É um filme que se passa em cinco atos, as emoções são todas contidas, a história vai sendo desenvolvida de modo gradativo. O filme conta a história da Selma, que é uma personagem que está enclausurada na sua vida cotidiana e todas as ações do filme se restringem ao campo do cotidiano. Então, a dinâmica interna do filme é muito diferente, e na verdade foi muito legal poder mudar.

Ruy: Um Céu de Estrelas é passado todo num ambiente só, e o interessante é que Através da Janela , apesar de apresentar uma dialética entre a casa e o fora, a personagem da Laura Cardoso, em todo tempo que está fora de casa, é como se ela estivesse dentro de casa olhando pela janela. Na principal cena, em que ela vê o que para ela é a coisa mais horrorosa da vida dela, é uma visão muito distanciada, como se estivesse tendo uma visão do outro mundo.

Tata: É, porque nesse momento inclusive ela está alheia, né? Ela está numa outra instância. Mas você tem razão quanto a isso. É um filme que tem exteriores. Eu acho que isso se deve também porque a minha idéia foi trabalhar o personagem da Selma como uma mulher enclausurada na sua rotina, numa vida que não tem outra preocupação além do filho, da comida do filho. Por mais que ela saia de casa, as saídas dela de casa dizem respeito ao filho. Então esse é o centro claustrofóbico da Selma. Tem um outro dado que também foi importante na concepção do filme é que a Selma é o personagem principal, o foco da história, e no entanto toda ação se passa totalmente fora da tela. Você não vê, a ação está com o filho dela e você não vê o que acontece com ele. Você só vê o que ela vê quando ele volta para casa. Então, há toda uma tensão entre o externo e o interno, entre o interior e o exterior que a gente inclusive concretizou isso no nível do som, por exemplo. O ambiente interno da casa da Selma é muito silencioso, lá a gente só ouve o ruído das coisas que as pessoas fazem e dos seus diálogos. Quando a porta se abre, o ruído externo entra para dentro da casa. Com a música é a mesma coisa, tem cortes abruptos. Além disso, além do filho e da turma do filho, de toda coisa que diz respeito a ele, uma outra tensão entre o exterior e o interior é a presença da Tomazina, que traz sempre uma referência externa pra dentro da vida da Selma, além de trazer a própria referência do senso-comum que é externo àquele mundo que a Selma construiu pra viver sozinha com o filho dela. Por outro lado, uma maneira que eu tive de ver esse texto do roteiro foi usar alguns elementos de câmera. O filme começa com uma grande angular, tudo em foco, a Selma domina seu mundo e a lente vai se fechando conforme ela vai adentrando na sua própria tragédia e perdendo o contato cada vez mais com o mundo. Então, de fato, no momento extremo, naquele ponto de não-retorno, a Selma é já uma pessoa totalmente dilacerada, totalmente destruída e distanciada. É o momento da injeção.

Ruy: É uma cena que é filmada como se fosse um pesadelo. É o momento em que ela reconhece o máximo de verdade do filho dela mas ela só consegue ver isso a partir do ponto de vista do pesadelo.

Tata: É. Legal isso que você falou.

Ruy: Queria saber um pouco sobre o seu modo de trabalhar com o Jean-Claude Bernardet e com o Fernando Bonassi.

Tata: Na verdade, o que aconteceu com o roteiro de Através da Janela é que a gente estava trabalhando na adaptação de Um Céu de Estrelas para o teatro. E eu comentei com o Jean-Claude que eu queria aprofundar mais a questão da tragédia, ir mais longe no senso trágico. E nessa discussão da possibilidade da tragédia hoje, qual é a contemporaneidade dela. Aí, por acaso, alguns dias depois, o Jean-Claude foi ver o Vereda da Salvação, uma peça do Antunes Filho, lá em São Paulo, com o Luís Melo, e ele fazia um camponês que estava assumindo a liderança da liga das pessoas à sua volta, e ele tinha uma mãe que era a Laura Cardoso, uma mãe bastante presente. E numa determinada cena em que esse líder está se colocando, numa das primeiras vezes que ele está falando para a massa, que é o público, a mãe sai do fundo do palco e se coloca atrás do líder. E essa cena sugeriu todo o argumento ao Jean-Claude. Três dias depois, ele apareceu com dez páginas do argumento, que é basicamente o filme Através da Janela, e me propôs. Eu gostei e a gente passou a trabalhar junto, incorporamos o Fernando Bonassi no roteiro. Ele não fez parte – nem eu – do roteiro de Um Céu de Estrelas. É um trabalho legal. O Jean-Claude é uma mistura de amigo, professor, roteirista. E a gente trabalha literalmente junto, conversando e colocando idéias e discutindo. Eu gosto muito do rigor do Jean-Claude, do rigor formal. E ao mesmo tempo eu gosto do mal comportamento do Fernando, e eu acho que os dois juntos me dão uma coisa muito boa.

Ruy: Você é a única cineasta de uma geração que debutou em longa na mesma época a tratar sistematicamente do pessoal mais jovem. O Beto Brant fez Os Matadores, que tem o Murilo Benício, mas depois fez Ação Entre Amigos, que tem personagens que não são da faixa etária dele. Enfim, você, sob um certo aspecto, desde o começo no Viver a Vida você já está querendo falar da juventude.

Tata: É verdade. Só que nesse caso do Através da Janela, como o foco narrativo é sobre a mãe, que é uma velha, a juventude está fora do quadro. A gente vê parte da juventude, a gente vê aquele jovem dentro da casa, através da ótica dos pais, aquele jovem que não responde de imediato. O Raí tem um pouco essa pulsão. A mãe fala com ele e ele demora a responder. Ele está ausente, ele está em outra. Então, eu acho que Através da Janela flagra um outro instante dessa juventude. Em Viver a Vida ela era muito mais ativa, era o boy que fazia coisinhas e tal. Aqui ela está um pouco diferenciada. Mas a juventude é o avenir... tem uma coisa...

Ruy: É porque o que eu acho que mais impressiona em Através da Janela e Um Céu de Estrelas é o fato de serem filmes que tratam da intimidade, do cotidiano e da vida pessoal, de um microcosmo muito restrito – em Um Céu de Estrelas são três pessoas, em Através da Janela são duas – e entretanto você deixa passar um imaginário social inteiro: em Um Céu de Estrelas tem desemprego, falta de oportunidade no Brasil, violência interpessoal e no Através da Janela tem desemprego, violência social...

Tata: Falta de perspectivas, né...? Mas eu acho que esse é que é o segredo, é você deixar ir fundo nos personagens no nível arquetípico. Porque assim você traz as referências que estão por aí pra todo mundo ver, acho que é assim que os personagens se constróem, é assim que eles ganham contemporaneidade, que eles passam a dialogar com a gente. Eu acho que em Através da Janela eu mergulhei muito fundo nesse aspecto da maternidade.. e da juventude, claro, também... Então, os elementos vêm naturalmente, os personagens começam a falar, e aí você vai fazendo escolhas também.

Ruy: Uma pergunta que eu acho que é principal: a maneira como você filma o corpo das pessoas, não é uma forma comum, acho que você está indo mais além. Logo no começo do filme vemos a Laura Cardoso só de roupas de baixo...

Tata: É, uma combinação...

Ruy: E muito de perto... no começo de Um Céu de Estrelas tem seqüências que são quase uma sinfonia visual. Você tem algum prazer especial em filmar o corpo?

Tata: Olha, eu acho que o cinema tem escondido o corpo, ou tem usado o corpo como um símbolo já mastigado, padronizado. Tem o sex symbol, aquela coisa linda, aquela mulher maravilhosa, aquela coisa muito 'modelo'. E as pessoas são feitas de um corpo, né? De matéria, a matéria é suporte pra emoções. E uma maneira de tornar físicas as emoções é revelar as cenas através do corpo. Eu acho muito legal abrir o filme Através da Janela com a cena em que a Selma, uma mulher velha, demostra sensualidade consigo mesma num corpo que não é um corpo padrão, mas dentro desse corpo há sensualidade, há desejo, há possiblidade de vida. Então eu acho que é por aí. Em Um Céu de Estrelas tinham aquelas emoções que transbordavam pelos corpos dos personagens, o suor, o desespero. Eu acho que o corpo é onde as coisas se concretizam. E pra mim, de qualquer maneira, ele não é tabu. Eu não tenho problemas em filmar o corpo, acho que ele precisa ser filmado.

Ruy: Porque o jeito que você filma não é um jeito padrão. Um filme comum jamais colocaria o personagem do Raí deitado apenas com uma cueca ou um primeiro contato com a personagem da Laura Cardoso. Ou ainda aqueles abraços, que são ambíguos porque tem um elemento que parece que é maior do que a própria maternidade. Tem uma segunda possibilidade de litura.

Tata: Como qual?

Ruy: Tem um elemento que é quase erótico.

Tata: O corpo é carregado de erotismo. O corpo é tudo, inclusive erotismo.

Ruy: Nem só o corpo, mas na cena final o índice dele, que é a camisa, que é a única coisa que ela (a personagem Selma) vai ter do filho – imagina-se – pra sempre.

Tata: É... construir a sensualidade através do objeto é uma coisa muito legal. É interessante isso, é bom de trabalhar.

Ruy: Eu queria que você falasse a respeto do seu filme sobre o Augusto de Campos, Poema-Cidade

Tata: Bom, Poema-Cidade foi o primeiro filme que eu fiz, eu fiz com o Francisco César Filho, foi uma idéia dele: "Ah, por que que a gente não faz um filme sobre ele". o Chiquinho adorava o Augusto e a poesia concreta. Ele tinha feito uma pesquisa, e aí a gente foi junto atrás de outras coisas. E foi uma delícia. A idéia principal do filme era trabalhar a relação de dupla mão que a poesia concreta tem com o urbano. Porque ela acontece principalmente em São Paulo, que é uma cidade que entra para dentro dos nossos poros e se impõe enquanto uma realidade. E o primeiro plano que eu filmei na minha vida foi um plano do Poema-Cidade que eu nunca esqueço, que é o plano em que o "Pulsar" (poema de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso) tá dentro de uma televisão e tem um traveling e as pessoas estão passando a trinta quadros por segundo. Foi memorável.

Ruy: Você já tem argumento, idéia e encaminhamento para um novo filme?

Tata: Tem, é um musical chamado Lila Rapper. É a história de uma menina de 15 anos que quer ser cantora de rap, mas a voz dela é muito fina. Ninguém quer ela como cantora e ela acaba montando a própria banda. O roteiro já está pronto: é meio com o Jean-Claude Bernardet e o Luís Alberto de Abreu.

Entrevista realizada por Ruy Gardnier no dia 16 de maio de 2000