Quem te viu, quem, TV?



Um acontecimento espetacular

O dia 12 de junho de 2000 viu um estranho episódio. À tardinha, a Rede Record de Televisão passou a transmitir, em tempo real, uma "grande notícia": um assaltante, aparentemente drogado (assim narrado), mantém cinco mulheres como reféns em um ônibus da linha 174, Central-Gávea. Às 18:00, como está escrito em batom por uma das reféns, ele matará uma a uma, porque "ele fez pacto com o diabo" e "porque a vida dele não vale nada mesmo". Depois de 17:45, a atenção ao televisor é contínua. O assaltante, sem nome até o fim do ocorrido, é visto se movendo dentro do ônibus, tentando de todas maneiras fugir da sentença de morte representada pela polícia que já cercou todo o ônibus. Ele tenta fazer com que uma das reféns dê partida no ônibus, ele vai para o fundo do carro, ele põe a cabeça para fora da janela e faz com que suas reféns também ponham. Depois das 18:15, a situação se agrava. Sem possível negociação (é noticiado que ele deseja duas armas e duas granadas para deixar os reféns), o episódio encaminha-se para um final trágico: ele já havia matado uma, afirma o assaltante, e continuaria matando caso não fosse atendido. Aos poucos, por necessidades de programação, a Record vai abandonando a transmissão em tempo real e passando a exibir flashes. Um zapping mostra a Rede Globo tomando o seu lugar. Voltamos à Record e ela exibe seu telejornal. Na volta à Globo, quase como se fosse uma atração exclusiva da emissora tamanha a exatidão dos flashes, sabe-se que o marginal sem nome decidiu sair do ônibus, mesmo sem ter negociado com a polícia. A essa hora, já estamos no horário do noticiário, o RJTV, e a Globo, tal como Cinema Verdade, exibiu, com imagem tremida e pouco clara, um tiroteio. Nada deu pra ser percebido.

O lance fatal, nem Globo nem Record nos mostraram. Mas os poucos segundos após o ocorrido, que nos revelam talvez muito mais do que todo o suspense de antes, esses as emissoras se apressaram em mostrar. Preferiram, mais uma vez, seguir a cartilha e partir para a lógica do depoimento, como a desastrada Globo:

– Como foi?
– Eu pisei nele. Não deu pra ver se ele estava morto ou se estava vivo, mas eu pisei nele ali no chão.
– Mas o que ele ficava falando pra vocês enquanto estava dentro do ônibus?
– Eu não estava lá dentro não. Só corri pra pisar nele. Eu fiquei a tarde inteira esperando a hora de enfiar a porrada nesse filho da puta.1

Todas as emissoras, depois do trágico final, não tinham a menor indicação daquilo que tinha acontecido e que tinha sido exibido ao vivo para todo o Brasil. Só sabia que o assaltante e a refém que ele carregava, de nome Geisa, haviam sido levados ao hospital. Do desfecho, todos sabemos: um dos protagonistas do show televisual da Record, o policial que ficava mais perto da porta de saída do ônibus, havia desferido mais de cinco tiros quando o seqüestrador sem nome e sua refém deixavam o carro. Geisa foi morta pelos tiros do policial e Sandro, o assaltante que agora já tinha nome, foi levado vivo para o camburão, onde teria sido estrangulado a caminho do hospital pelos policiais que o levavam.

Muito se falou do episódio do 174. Logo, logo, os especialistas edipianamente fãs de armas de fogo já pediram uma militarização das metrópoles brasileiras e um endurecimento das leis para com crimes desse gênero. Sua hipérbole foi o Programa do Ratinho, em horário nobre, um ou dois dias depois do evento, em que foram chamados o truculento deputado Afanásio Jazadji e alguns de seus ineptos correligionários. De outro lado, Agnaldo Timóteo e o Governador do Rio, Anthony Garotinho, em vídeo do Rio, professavam sua fé num futuro mais religioso, em que os crimes poderiam ser evitados caso nossa sociedade prestasse mais atenção na poderosa fé cristã e educasse seus filhos junto às igrejas. Carlos Massa, o Ratinho, comandando displicentemente um talk-show em que se discutia o rumo de nossa sociedade e a solução que ela dará ao problema da violência, ria-se todo mediante a baderna geral causada pelos gritos enfurecidos de todos os convidados presentes. Poderia ser apenas um exemplo. Mas não é. É a forma como nossa televisão, de maneira geral, responde aos problemas sérios que ela mesma põe no ar.

"Não é mais possível arte depois de Auschwitz", diz Adorno. Mesmo que não se possa concordar com ele, entende-se o que quer ser dito: o episódio de Auschwitz instaurou tamanha radicalidade na relação do mundo com a sua realidade que uma volta ao mundo das ficções ingênuas é impossível. "Não é possível Goethe depois de Auschwitz" seria mais preciso. Porque aí não é questão da arte como um todo, mas da arte como o mundo do idealismo imaginava: uma determinada relação de oposições tendendo a uma resolução pacificadora no final por meios conciliatórios. Se encararmos assim, a frase cabe, ainda, como uma luva para os dias de hoje. E cabe para o caso de Sandro do Nascimento e Geisa: numa tragédia transmitida em tempo real pelos meios de comunicação, qualquer interpretação conciliatória é terrivelmente repugnante. Tanto a da direita, cínica, que reduz uma tragédia humana à terrível maldade genética de seres humanos que merecem ser condenados à morte, quanto a da esquerda, que, humanitária, exige mudanças sociais para impedir que novos Sandros possam vir à luz do dia. Que se possa pedir por melhores condições de vida e de educação em nossa sociedade, é até mais dever do que direito; agora, que reduzam o acontecimento, que reduzam o inexplicável a um sacrifício de Sandro e Geisa, isso parece repugnante, e por um motivo simples: porque se faz poesia com o impoetável.

E isso o cinema ensina, mais que qualquer outra arte. Voltada de um período em que ela deve se considerar culpada por não filmar os campos de concentração, a arte cinematográfica só se recuperou de sua própria repugnância com Roberto Rossellini e sua nova relação com a realidade. Um casal de cineastas que debutarão no cinema vinte anos depois de finda a 2ª Guerra, apesar de não terem jamais se declarado assim, são extremamente rossellinianos quando chamam seu primeiro longa-metragem de Não-Reconciliados. Porque, em 1965, era a única forma de fazer uma arte que desse conta do presente: não reconciliar. Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, mais brechtianos do que Brecht, sabem que a única maneira de a arte poder dar conta de sua sociedade é fazendo o contrário do que a recém-formada "sociedade de consumo" propõe no nascimento da cultura do entretenimento: criar interpretações reconciliatórias (do homem com o mundo, do homem com sua consciência). Essa saída, não só o cinema nos deu. Nos deram igualmente o teatro com Beckett e Artaud, a pintura com Duchamp e Klee, até o humor de Andy Kaufman, sob certo aspecto. Não é que não se possa mais interpretar, mas que qualquer interpretação conciliatória esconde no fundo uma brutal irracionalidade que afronta toda nossa relação com o mundo, toda relação com a nossa própria consciência. Quando o acaso é brutal e nos joga a nossa porta seu terrível substrato, qualquer interpretação baseada em "visões de mundo" já existentes, de esquerda e de direita, são repugnantes. Pretende, mesmo que sem querer, dizer "eu sei o que está errado com o mundo e eu sei o que fazer para acertá-lo". Quer dizer "eu sei como reconciliar-nos com o mundo, com a nossa consciência". Quer dizer "eu sei como fazer com que esse episódio, que exerce uma pressão abissal e desagradável no nosso mundo e na nossa consciência, eu sei fazer com que ela fuja de nossas cabeças".Toda interpretação reconciliatória com o mundo e com a nossa consciência é uma lobotomia político-ideológica. E é contra isso que não podemos reconciliar. Se não podemos fazer espetáculo com alguma coisa, é com isso.

E o que vimos na TV? Espetáculo. O revés vai até menos para a Rede Globo que, se não fez a menor questão de aproximar-se de um pequeno grau de realidade, ao menos não quis espetacularizar mais do que uma cobertura "comum" de TV. Quanto à Rede Record, já não se pode dizer o mesmo. Optando por uma cobertura ao vivo e em tempo real de todas as etapas do "seqüestro", a direção do telejornal fez de tudo para dramatizar mais ainda o momento: qualquer espectador que ligasse a TV no Canal 13 do Rio ouviria uma espantosa música de suspense à Vangelis e, apoiado nela, o verbalmente truculento Datena, ex-locutor esportivo, surfava livremente pela notícia, numa sinistra improvisação jazzística em que falava dos possíveis efeitos de uma suposta droga que ele teria tomado, falava da "nóia" (de paranóia) como o período em que a droga deixa de "dar onda" e passa a transmitir a realidade ao drogado de forma paranóica, falava de tudo um pouco para entreter o espectador assente em seu trono em frente das emissões catódicas. Num dado momento, Datena dirigiu seu cineminha à perfeição, fez poesia onde não devia (até onde não podia: o jornalismo não gosta muito de poesia). Num dado momento, repetimos, Datena observou a direção do 174, uma placa escrita "Central", designando, obviamente, a Central do Brasil que deu nome ao filme de Walter Salles. Datena achou muito interessante poetar com o nome Central: citamos de lembrança: "tomando essa palavra que aparece no ônibus, 'Central', o que o Rio, o que o Brasil vive hoje é uma Central de violência", etc. etc., falando que os cidadãos não podem mais viver sossegados e tal. Sobre o repugnante da vida da sociedade brasileira, Datena cometeu o inaceitável: transformou a morte ao vivo em espetáculo. Diante da primeira tragédia televisual em tempo real da violência no Rio de Janeiro, ele fez poesia. E isso é inaceitável.

Poderíamos pensar que esse foi apenas um excesso de nossa mídia, e que em geral ela apresenta um cuidado "humano" para com aquilo que ela mostra. Fatal engano. A falta de qualquer manifestação contra a transmissão da Record só prova uma coisa. Esse esquema, essa visão de mundo que partilhamos, está tão disseminada em nossas experiências cotidianas que isso não é mais nenhum problema ético para nós. O mundo de hoje é um mundo crédulo. Ele, de livre e espontânea vontade, acredita no cineminha a que assiste e que pratica tranqüilamente, sem problema qualquer com o seu olhar refletido no espelho. Espetacularizar a morte alheia já não é mais nenhum tabu; ao contrário, na sociedade de espetáculo, passa a ser a regra geral que regula o sistema. Se a intuição da morte é a experiência mais intensa que a nossa existência pode vivenciar, o episódio da Rede Record não é uma exceção; é, ao contrário, a hipérbole de uma lógica do espetáculo. É o sonho de todos os shows televisuais do fim de semana: filmar a morte. Não há fora na nossa sociedade. Não há burguesia X proletários ou qualquer outro tipo de luta de classes. O que há, se algo há, é a sociedade mundial capitalista em seu discurso do consenso e do pensamento único e, contra ela, os não-reconciliados, aqueles que, ao menos em um primeiro tempo, preferem não acreditar na historinha mais fácil.

Não-reconciliado foi Luís Fernando Veríssimo que, n'O Globo de 14-06-2000 (jornal que não só se aproveitou do incidente como ainda hoje, dia 19 de junho, ainda se aproveita com a série de reportagens intitulada TERROR), escreveu:

"Histórias de terror (...) têm a sua parte imprevisível, a cota da fatalidade (...) Mas o mais previsível e brasileiro de tudo é a retórica da contrição, o anúncio de medidas preventivas depois do fato, que sempre segue um acontecimento desses. As palavras se repetem, as promessas são sempre as mesmas. E precisam ser repetidas porque muito pouco é feito, entre uma "cena inaceitável" e outra, para melhorar a situação"2

ou ainda Elio Gaspari, no mesmo jornal. Diante de um "conto antigo" sobre "O Avião das crianças", que erige a questão de saber se, num avião cheio de crianças e com uma bomba escondida, pode-se torturar o suspeito para se desobrir sobre a bomba:

"Essa fábula contém um truque de lógica. Ela dá a impressão de buscar a preservação da vida das crianças quando, na verdade, busca a inimputabilidade do torturador."

"Para o agente de Estado, o avião das crianças é um escudo para livrá-lo da responsabilidade pelos atos que pratica. O que ele quer é o direito de torturar (ou de matar) as pessoas. Praticado o crime, à diferença do pai da criança, não admite a hipótese de ser emputada sua prática. Mais: ele quer decidir quem deve apanhar e quem deve morrer."3

Talvez a única saída não-reconciliada, a propósito do caso, é fazer calar as vozes espetaculares. Ou denunciar a sua estratégia, como fez Marcial Renato dos Santos:

"No mar de declarações (nos jornais, na lista, no botequim) uma coisa fica mais que evidente: todo mundo tem uma convicção SÓLIDA sobre a questão, todo mundo sabe EXATAMENTE o que aconteceu no ônibus. Todo mundo leva a sério, muito mais do que recomendaria o sábio chinês, suas próprias estereotipias. Chega a ser engraçado: o mesmo fato serve de prova para as grandes teorias da esquerda humanista e da direita conservadora, na luta eterna para conferir o melhor sentido para o que é indizível."4

o que ele reafirma, através de uma fórmula feliz: "O que não muda nem a caralho é a certeza irrefreada, burra, avassaladora, na própria certeza." Talvez o que há como única estratégia à lógica do espetáculo que vivemos hoje em dia, como contraposição ao dogmatismo de mercado, seja um violento antidogmatismo, um firme ideal de irreconciliação a qualquer explicação prévia do mundo que queira legitimar ou explicar um estado de coisas que é, em si mesmo, ilegitimável e inexplicável. Não-reconciliados. Que todas as dissonâncias de nossa sociedade vivam nas nossas cabeças. É a úncia forma de fugirmos de um modo de vida cínico. É a nosa única possibilidade de cidadania.

Ruy Gardnier



1. Como transcrito por José Felipe Calderón (jfrl) em lista de discussão do e-groups, 14-06-00, 23:16.

2. "Obviedades" in 'O Globo', 14-06-2000, p.7

3. "A lorota do 'avião das crianças'" in O Globo, 18-06-2000, p.11

4. Marcial Renato, em lista de discussão do e-groups, 16-06-2000, 22:11.