O Profeta da Fome e a invenção
do povo no cinema brasileiro


José Mojica Marins em O Profeta da Fome de Maurice Capovilla

"O povo não quer só pão", diz o letreiro em O Profeta da Fome, e de fato, a próxima imagem da fita nos remete ao circo. O que vemos a seguir define bem um dos problemas que Maurice Capovilla – e não só nesse seu segundo longa – pretende discutir: o circo, aqui, também é o universo do precário, do inevitavelmente miserável, vulgar e postiço; o circo como produto do meio, de um complexo social, em que o público, uma meia dúzia de gatos pingados, projeta seus preconceitos e frustrações reais. (Adianto de uma vez ao leitor que a construção de uma analogia da realidade do circo com o cinema brasileiro DEVE ser desde já estabelecida.) A fachada do "estúdio", a lona rasgada aqui e ali, meio caída e desbotada, já anuncia a tragédia. Mas vamos ao que interessa, a apresentação vai começar: o domador de leões entra no picadeiro iluminado à meia-luz. O que bem poderia sugerir ao espectador do filme um estranho aceno expressionista em uma fita tão marcada pelo despojamento, na verdade é mais um elemento da fabricação da "farsa": somente pelo contorno da fera o público não percebe que não se trata de um leão em cena, mas de um ator vestido como tal, animado pelo som do rugido que vem da vitrola. Pois bem, a conclusão é que o disco está arranhado, e o leão repete estranhamente o mesmo rugido – o patético é inevitável: o domador fica sem ação e o público se revolta com a debilidade do espetáculo, quebrando o frágil cercado, jogando as cadeiras para o alto...

Será que se pode querer mais bela expressão fílmica das célebres idéias pauloemilianas sobre "nossa incompetência criativa em copiar" e "a marca cruel do subdesenvolvimento"1?, idéias que resumem a condição do cineasta no Brasil. Sem dúvida trata-se de uma paródia, o humor da cena não pode ser evitado, mas uma paródia da paródia, autoconsciente de si mesma e de sua condição supostamente inferior. Eis aí a chave do filme: é preciso se reinventar; "o povo é o que falta". Nesse circo, como está, tudo é falsificado, fingido ou degradado; só é verdadeira a agonia da fome – que aqui deve ser entendida como signo maior do abandono, sofrimento, atraso, exclusão, a miséria. O único número em que a farsa não tem vez é o em que o faquir Ali Khan (interpretado pelo genial Zé Mojica) come cacos de vidro, pregos, parafusos... Os demais, vamos ver, são sempre alvo da ira do público. Seja com o anão que, com dificuldade, se equilibra na corda bamba, até ser derrubado por uma chuva de objetos vindos da platéia; seja com o palhaço Tristonho, que é insistente e agressivamente xingado e humilhado por um espectador, a linha dominante da raiva é o preconceito. Sobre as origens dessa atitude, não resta melhor opção que citar Jean-Claude Bernardet:

A má qualidade que este público atribui ao cinema brasileiro não é apenas um julgamento de valor sobre determinada obra cinematográfica, mas me parece ser um julgamento sobre a má qualidade da realidade brasileira. E também uma maneira de reafirmar e consolidar o complexo de inferioridade, portanto de nos instalar no amargo porém confortável espaço da irresponsabilidade: fazemos mau cinema, somos dominados, dependentes, inferiores, logo não podemos nos assumir e criar nossa perspectiva histórica. Em última instância, temos que rejeitar não digo os filmes, mas a própria realidade: argumento do tipo ‘brasileiro não presta para fazer cinema’.2

E mais: o público parece não ver, porém somos todos de certo modo co-responsáveis por esse espetáculo, mesmo quando o pichamos à maneira de um redator da Veja; desse jogo ninguém sai limpo, nem o palhaço rude nem o espectador boçal que enfim recebe de volta os insultos com um tiro falso de revólver, um tiro de araque que só fere manchando o rosto do sujeito com sua fumaça, como que denunciando que a "sujeira" também é dele – eis o processo cultural, nada de contemplação ou passividade, nada de atitude estéril e indiferente do espectador diante da obra.

Nos filmes de Capovilla, é costume uma imagem se referir criticamente a uma outra imagem; lembra-se com freqüência da expressão criada por Rivette, a crítica cinematográfica filmada. Senão vejamos: em Bebel, a Garota Propaganda, sobre a projeção de um comercial estrangeiro de maquiagem, o publicitário, o mesmo que em seguida cria a campanha para uma marca de sabonete com o corpo de Bebel, diz entusiasmado: "excelente, só falta dar uma cor local", pois "o que interessa é o aspecto técnico". Verifiquem o simbolismo com a envelhecida "estética da higiene", baseada em conceitos epidérmicos como a beleza, com o cinema-indústria tantas vezes malogrado entre nós. Bebel é mais do que o fracasso da ascensão pessoal no status quo, embora também o seja; é a constatação da falência do discurso de "dourar a pílula", da inviabilidade do verniz do kitsch mais ingênuo, da má cópia do modelo importado. Bebel, a Garota Propaganda, que no fim bem poderia se chamar Bebel, a Garota de Programa, de tão degradada chega ao desfecho – o que leva a pensar se não há um paralelo possível (ainda que inconsciente por parte de Capovilla, é claro: talvez ele estivesse profetizando sem se dar conta disso) e nada gratuito entre a melancólica trajetória propaganda-pornografia de Bebel procurando a sobrevivência e a futura evolução do cinema brasileiro, que vai do insucesso da indústria de estética conservadora até a eclosão da pornochanchada. E digo isso muito menos como negação ao fenômeno da pornochanchada, sem dúvida um veio produtivo do cinema brasileiro, do que como mais uma mostra da impossibilidade da estética do bom gosto, como resposta dialética, popular e libertária ao cinema de bons modos e imagens decorativas desejado por uma elite em busca de promoção provinciana.

Se Bebel é a falência de uma via estética, O Profeta é o reconhecimento da crise identidade e a busca de um povo – e o problema não se coloca apenas em termos de uma tradicional ida ao povo, mas de uma linguagem alternativa para retratar esse povo, no que vai muito, como vimos, a crítica à haute-couture da boa técnica estrangeira. Em um artigo de 68, Glauber, talvez quem melhor conseguiu pensar ideologicamente os fundamentos do cinema brasileiro, levantava assim esse problema da representação:

[Cinema] NOVO aqui não quer dizer PERFEITO pois o conceito de perfeição foi herdado de culturas colonizadoras que fixaram um conceito de perfeição segundo os interesses de um IDEAL político. Os artistas que trabalhavam para os príncipes faziam uma arte HARMÔNICA segundo a qual a terra era plana e todos os que estivessem do outro lado da fronteira eram bárbaros. A verdadeira arte moderna, aquela que é ética/esteticamente revolucionária se opõe pela linguagem a uma linguagem dominadora.3

Sem dúvida, o caminho a se traçar é de uma "penosa construção de nós mesmos"4 – uma construção ambígua feita entre os signos do não ser estrangeiro (no início do filme, quando Ali Khan pensa no seu novo número, ele imagina para sua assistente uma "roupa de bailarina, assim meio japonesa meio hindu") e, ao mesmo tempo, do ser outro, da falta de origens (de originalidade?), em que o subdesenvolvimento só é percebido em termos de individualidade excluída. Esse é o primeiro momento de O Profeta da Fome, o da falta quase que completa de consciência. O segundo é o do reconhecimento do próprio horror (como disse uma vez Inácio Araújo: "é o horror do Brasil, mais do que um horror brasileiro"), o de saber tirar as respostas para uma atitude criadora tendo essa condição degradada como ponto de partida e de preocupação.

A fome, normalmente determinação das circunstâncias do meio, compulsória, se transforma no início em profissão do faquir e depois em alegoria do subdesenvolvimento, expressão voluntária do dilaceramento corporal e espiritual do profeta, dele e de muitos mais. Daí que Ali Khan vira uma espécie de herói da fome, um mito popular movido pela fé cega das massas religiosas, oposta a fé cristã mas ao mesmo tempo a mesma fé, pois também uma crença da predestinação (ele se torna um novo deus para aquelas pessoas) e, logo, do imobilismo. O profeta então foge, vai se apresentar na cidade, passar cem dias sem comer, em caravana: a fome se transforma em espetáculo, a saber, espetáculo de uma "superversão" (pode-se querer mais dolorosamente representativo?) revolucionária. Essa fome não deve de forma alguma ser a imagem da impotência diante do atraso, ao contrário, ela é a pulsão que não quer ser enquadrada, tornada inócua, é o manifesto (pois o filme em todo momento intenta para essa vocação) que deseja criar uma ordem alternativa com outras regras, suporte de uma fala diferenciada, normalmente excluída, sufocada, em crise: CINEMA BRASILEIRO. O abjeto deixa de ser desprezível, a aberração e a selvageria não são boas nem más, as coisas simplesmente são o que são. Está completado o ciclo e aqui, mais uma vez nos filmes de Capovilla, o pessoal também é o terreno do social, o privado e o político se confundem, explicitamente, o cultural como ordenação simbólica implícita na ação – não é esse, afinal, o grande segredo das grandes obras políticas?

Epílogo: quando lançou O Bandido da Luz Vermelha, uns dois anos antes desse Profeta, Sganzerla o chamou de "filmeco" aquela fita que, sem qualquer depreciação, era "o que o Brasil merece nesse momento" – e que é uma das grandes pesquisas da identidade agônica do país, um dos muitos motivos que o credencia como um dos dois ou três maiores filmes já realizados no Brasil. Trata-se, no caso, de construir uma imagem brasileira ao mesmo tempo autêntica e possível, de se fazer um cinema de 3 BBBês: bom, bonito e barato.

* * *

Tive a felicidade de descobrir parte da obra de Capovilla no recente 5o Festival de Cinema Universitário promovido pela UFF. Ao entrar no cinema a única ligação mais direta que tinha com Capovilla era o de leituras biscateiras sobre seus filmes e do apelo mais que sugestivo vindo dos títulos de alguns desses mesmos filmes, principalmente de O Profeta da Fome. Tenho quase a certeza de que, como eu, todos que estavam ali no cinema para assistir a Bebel e ao Profeta (só nesses dois dias pude correr ao cinema, pequeno mas sempre lotado) possuíam o mesmo grau de conhecimento e de curiosidade. Da mesma maneira, depois das sessões, foi fácil perceber que todas as pessoas compartilhavam a minha opinião: são dois filmes impressionantes e comoventes em sua proposta, e que têm um enorme poder de influência sobre o público – considerando-se que em breve serão estes a realizar as novas fitas brasileiras... Um trabalho um tanto útil e, esperamos, frutífero esse dos organizadores do festival, que depois de uma retrospectiva do "professor" Reichenbach em 99, nos ofereceram mais uma vez uma mostra fundamental para quem pretende (e só encontra dificuldades para) conhecer o cinema brasileiro.

Juliano Tosi


1 GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

2 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

3 Reproduzido em ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra / Embrafilme, 1981.

4 GOMES, Paulo Emílio Sales. idem