Tipos, imagens e discriminação

"Por que eu só ando de metrô?"

Em dois artigos que o prof. Carlos Gilberto Agostino e eu escrevemos para o "JSVestibulando" insistimos sobre o tema da imagem como instrumento de cognição e, possivelmente, lugar de expressão de uma forma de poder e de valores de uma sociedade, foram eles: Super-heróis no Front (14-20 de março de 2000) e Em busca do Mapa-Múndi – Cartografia e Descobrimento (4-10 de abril de 2000). Neste artigo, gostaria de tratar de algo que está tão imerso em nosso cotidiano que, por vezes, nem nos damos conta de seu conteúdo discriminatório e ratificador de certos estereótipos que permanecem em nossa sociedade.

Quem já andou no metrô do Rio de Janeiro depois da reforma que o esticou de Pavuna a Arcoverde teve a oportunidade de observar algumas chamadas publicitárias com o seguinte tópico comum a elas: "Quer saber por que eu só ando de metrô?"

A pergunta pareceria inocente se não fossem os seus 4 suportes imagéticos de fundo: um homem negro para fazer o tipo "trabalhador de baixa renda"; um homem branco maduro para fazer o tipo "empresário de sucesso"; um pré-adolescente que, num esforço simples de silogismo, poderia ser o filho mais novo do empresário de sucesso, trazendo em si os sinais da imaturidade e da irresponsabilidade; uma mulher jovem que poderia ser a filha mais velha do "empresário de sucesso", trazendo em si as marcas da independência e da viçosidade femininas. Para cada um desses suportes típicos de imagem, há uma mensagem escrita que ratifica o que tacitamente supõem: o trabalhador negro de baixa renda anda de metrô "porque tomar café da manhã com pressa faz mal"; o empresário de sucesso anda de metrô "porque tempo é dinheiro"; o pré-adolescente anda de metrô "porque quem gosta de engarrafamento é vendedor de biscoito"; a jovem viçosa anda de metrô porque se perder o trem "vem logo outro atrás".

A aparente massa que o transporte coletivo deveria supor, de Pavuna a Arcoverde, é tão hierarquizada quanto a topografia das regiões do estado pelas quais a linha de metrô passa. Repentinamente, de um extremo a outro da linha, as imagens publicitárias ratificam a desigualdade social expressa na topografia da cidade de uma forma bastante funcional. Afinal, a cidade necessita de todos "em seu devido lugar": não é a filha do empresário e nem a superficial existência de seu filho internauta que irão entrar pela porta de serviço, nem se beneficiar da "caridosa facilidade" que o metrô proporciona ao servente de seu prédio, qual seja, não "tomar café da manhã com pressa". Assim, têm-se representada a sociedade perfeita num simples lapso publicitário: desigual, orgânica e, portanto, a-conflitual.

No entanto, algo dentro da própria mensagem publicitária parece demolir esta visão orgânico-funcional da cidade e do metrô: quem poderia estar no sinal vendendo biscoito? Talvez o próprio filho do trabalhador que se julga beneficiado por não precisar de "tomar café da manhã com pressa", que talvez esteja faltando seu dia na escola ou que esteja mesmo fora dela para completar a renda que falta para que exista aquele café que se julga tomar sem pressa, mas que é magro e amargo. Talvez neste sinal que o metrô evita que nele se detenham o "empresário e seus filhos" em trânsito caótico e congestionado esteja o trabalhador informal beneficiado pelo metrô – e que não desejam ver nos arcos verdes de suas seletas ruas e que, por vezes, somente encontra a sua própria imagem refletida nos vidros indiferentes de carro e conjunto predial. Talvez a sua existência só seja mais marcadamente lembrada por eles quando as cascas de seus casulos forem quebradas por mãos que não mais seguram biscoito, doce e água mineral.

Para o empresário que anda no metrô "porque tempo é dinheiro", a vida está longe de ser a-conflitual entre seus pares, embora tente escapar das conseqüências de tal concepção de vida quando ela invade o seu cotidiano em todos os níveis. Trata-se de uma existência dual: o tempo é dinheiro e, portanto, só sobrevivem os mais fortes, os mais bem preparados e, neste sentido, ser derrotado (the loser) é sempre uma questão individual; para os derrotados sempre haverá uma posição funcional adequada à sua menor competência e, portanto, não podem reclamar de sua subalternidade pois "neste mundo há espaço para todos" – sorte do barbeiro de Chaplin não ter que ouvir a recontextualização de sua máxima na beligerância amorfa de nosso cotidiano. Por fim, quando a subalternidade for insuportável, haverá sempre o lugar e a hora para o homem de sucesso ser o herói da caridade e haverá o cárcere para aqueles que não se contentam com os farelos que caem de sua mesa e com as vias institucionais de acesso ao seu banquete de símbolos de excelência social – così cammina l’humanità ?...

Particularmente, prefiro uma imagem menos passiva para a sociedade. Aquela que me vem à cabeça neste momento é a do tropeiro que a cada passo desbrava o sertão das almas e, sob seus pés, faz brotar estradas antes não imaginadas. Neste sentido, se há natureza que é destruída e poluída, também há humanidade que pode ser transformada. O fundamental, caro leitor, é não se acomodar às formas dadas.

Como este texto tomou uma dimensão inesperada, penso que seja melhor terminá-lo com esta poesia de minha lavra:

"Dignidade que não seja tarde"

Vultos vão e vêm pelas ruas.
Espectros de homens e mulheres
correm pelas cruas vielas.
Fluxo constante, flecha...

Uma mão se estende aberta.
A flecha pára ou desfecha
com indiferença, piedade,
desconforto caridoso:
"melhor pedir do que roubar".
E o caso se encerra.

Uma mão se estende armada.
A flecha pára ou desfecha
com indiferença, impiedade,
conforto de vítima:
"a culpa é da sociedade".
E o caso se encerra.

Outra mão, impiedosa,
desfecha nova flecha,
levanta em ponta de lança
a bandeira do genocídio.
"O caso está resolvido".

Congratulam-se os caridosos
de sua pífia generosidade,
quando deveriam questionar
a razão de sua necessidade.
Ah, tão torpe é o posto
de herói da humanidade!...

Não há cenas para heróis
sem que haja papéis de vítimas.
Caridade rouba dignidade.
Caridade, burguesa herdade,
resulta da liberdade
que rejeitou a igualdade.

De repelo repleta está
a mão que recende caridade.
De contrapelo completa está
a mão que recebe caridade.
De dignidade ausentes são
as mãos que refiam a caridade.

Alexander Martins Vianna