A Terceira Morte de Joaquim Bolívar

Comédia em ponto de bala

A estréia como roteirista e diretor do ex-crítico de cinema Flávio Cândido confundiu curiosos. Em busca de distinções genéricas, não souberam responder se se tratava de uma comédia autobiográfica ou de um filme político. Ambas as definições assentam bem nesse longa-metragem, mas não o bastante para dissolver possíveis polêmicas. Sem data de estréia definida, o filme dividiu (e por que não dizê-lo, "trividiu") opiniões na sessão de abertura do Festival de Cinema Universitário. "O diretor não decide o caminho do filme"; "a narrativa é muito bem construída"; "não é um filme político, é uma comédia"; "é uma comédia política"; "qualquer filme com Othon Bastos já vale a metade" e "o eixo narrativo é glauberiano" foram alguns dos comentários ouvidos após a exibição.

Uma segunda avaliação, bem diversa em seus propósitos, buscará determinações menos preocupadas com a questão do gênero. Sobretudo porque, ao longo da exibição, descobrimos que buscar os méritos de Flávio Cândido pode nos levar aos seus erros. Isso não obscurece o sentido do filme; pelo contrário, torna-o ainda mais interessante. Dada a boa convivência entre as dicotomias e os elementos de naturezas diversas, A 3ª Morte de Joaquim Bolívar produz um efeito confuso, seguido de muitas gargalhadas. Esse movimento altera a todo instante o que estamos percebendo no filme. Por isso a questão do gênero se torna desnecessária: o barato está na fluência de uma outra textura, uma textura que não define seu caminho mas, ao contrário, pende violentamente para os dois lados. Faz rir enquanto choca pela crueza do sentido. Outros filmes brasileiros que reproduzem uma textura confusa, semelhante à descrita acima: Cronicamente Inviável (por se tratar também de uma "comédia-polítíca") e O Dia da Caça (por se tratar de uma comédia-policial).

Tudo o que dissemos acima não valerá nada se não apontarmos esses pares. Vejamos: filme historicamente pessoal, na boa medida da autobiografia não-declarada. Um gênero que Fellini eternizou, que existe em Pasolini e resiste em Almodóvar. O período escolhido por Cândido é justamente o período que compreende sua vida. É a apreciação in loco da história, a prática direcionada por uma avaliação pessoal e singular do universal e do coletivo. É também uma tomada de posição, uma declaração partidária. Em muitos momentos podemos fazer paralelos com Jango, de Silvio Tendler. Porque ambos afirmam sua simpatia pelo objeto sem culpa nem medo e assumem o que muitos escamoteiam por interesse ou covardia. Mas não há complacência nem radicalismo infanto-juvenil. Cândido constrói uma narrativa ácida, que valoriza os aspectos cômicos, sobre um chão político bem definido. Temos aí dois aspectos que exemplificam a boa relação entre os pares: o vivido e o inventado que, superpostos, constroem uma narrativa dinâmica; o político e o cômico, que ditam o ritmo do filme na dialética do riso e do lamento.

Seguindo esse caminho, percebemos como os personagens, o roteiro e até a música são construídos. Sobrepondo ficção e não-ficção, Cândido opta por uma narrativa alegórica. Trocando em miúdos, para cada personagem, a representação de um sentido histórico. Assim como Jofre Soares representa em Antonio das Mortes todo atraso brasileiro na questão agrária, Joaquim Bolívar representa uma mudança de estado. Através de seu personagem entrevemos 30 anos de história. O diretor é partidário de determinadas concepções históricas, mas isso não retarda o potencial interpretativo do filme. Suas alegorias se referem a sujeitos históricos concretos. Os "representantes" ficcionais estão todos lá, e não duvidamos deles: o velho comunista, o coronel, o jagunço, os gringos exploradores e Joaquim, o jovem sonhador. O roteiro também utiliza repetições para indicar a permanência de um estado. Por exemplo, quando o jagunço repete "se o coronel quiser a gente acaba com eles" está representando o quanto há de renovação no quadro da política agrária brasileira. Do mesmo modo, os momentos históricos são marcados pela música. Por exemplo, para a década de 60, ouvimos bossa nova; para a década de 70, disco music; para a década de 80, fusion de elevador. Todas as músicas executadas com o máximo de frieza: não há João Gilberto nem Miles Davis.

São três momentos: Joaquim Bolívar sonhador, derrotado por "forças ocultas" em 64; Joaquim Bolívar cauteloso e descrente da anistia como processo de redemocratização; enfim, Joaquim Bolívar yuppie, preocupado com os negócios. As três mortes figuram como alegoria da permanência de um estado, mas não da resposta popular a esse estado. Como já dissemos, há uma história pessoal e outra real. A luta política povoa o imaginário do autor e a realidade da alienação — a realidade da massa — serve de pano de fundo para essa história particular. A resposta popular sempre foi medida na escala da passividade. Vemos representado um estado de subdesenvolvimento imutável, um povo apático e um setor privilegiado e preocupado. A mudança de estado a que nos referimos circunscreve esse setor específico da sociedade. O Brasil não mudou, a resposta desse setor é que se desvencilhou da contundência. Trata-se portanto do ponto de vista de um jovem comunista utópico, rebento da classe média politizada, que sofre e luta para mostrar que tem razão. Desse modo, as mortes representam a transfiguração da vontade de um setor específico da sociedade, da revolta ao conformismo. Ora, o mundo se "classemedializou", como disse recentemente o ator Sergio Brito e de certa forma ele está muito certo. Cândido realizou uma comédia pessimista, em comum acordo com as palavras de Brito, carregada de crítica a essa nova ordem, e que deixa bem claro que a terceira morte é a morte, isto é, o fim das idéias, das perspectivas e das esperanças

Isso implica num desdobramento. O ponto de vista de Joaquim Bolívar é, ainda, o de um burguês. E pensar essa questão resulta num impasse, que relativiza as posições do filme. Porque se há uma consciência que é problematizada a todo instante, ela deve ser identificada. Um barbeiro de boa família, alfabetizado por boas leituras e um outro, dez anos depois, muito semelhante, configuram a consciência de um cidadão de classe média, que age no raio de ação de suas possibilidades financeiras e de seu imaginário. Daí o paradoxo: A 3ª morte realiza uma crítica mordaz dos últimos 30 anos de nossa convivência social. Valoriza, porém, aspecto de um pensamento voluntarista que há muitos anos prejudica a organização de um movimento antigovernista no Brasil. O momento que o filme identifica como o de menor passividade (já que o alvo é o conformismo) é o do jovem comunista. E para que não entremos em detalhes, revisem as práticas dos principais partidos de esquerda do país para descobrir em seus quadros um imenso contingente de cidadãos de classe média. Com um ideário bastante diverso do discurso proferido, seja ele qual for, recorrem à luta política como um bálsamo eficaz para a má consciência e a impotência. Julgamos tratar-se de um problema de segunda ordem, mas que traduz bem a infeliz adoção, por parte dos setores pensantes, de um modelo ideológico do passado, que se expressa sob formas capengas (greve, palavras de ordem e afins). Se o filme pretende atualizar a imagem desse "inconformismo", não fará mais do que confirmar sua ineficácia frente a um país esfacelado, medroso e auto-indulgente.

As metamorfoses dessa consciência são apontadas precisamente por Cândido. Mas elas não ocorreram da noite para o dia. O diretor lança mão de trunfos preciosos para representar os obscuros caminhos em direção à paralisia globalizada. Por exemplo, podemos nos referir ao filme como uma retomada das intenções políticas do Cinema Novo. Essa perspectiva é reforçada, graças à presença de Glauber (Sérgio Santeiro, hilário), mas também à presença do conflito agrário e das alegorias. Mas como não associar certos personagens, certas situações, certa valorização do cotidiano, às chanchadas e até às pornochanchadas. Arrisco dizer que essa influência é tão ou mais forte do que a cinemanovista. Por quê? Ora, a mulher do "coroné" que dá para todo mundo, e a própria presença lunática de Glauber, um cineasta fictício, somadas às conversas e piadas desenroladas nos ambientes da cidade, se não evocam o "humor careteiro" das chanchadas, ao menos nos remete à sua expressão formal. Othon Bastos não faz careta, mas não se trata de avaliar a presença da chanchada por aí. A valorização da unidade espacial (a barbearia, por exemplo), ressalta a presença e a importância do cotidiano na dinâmica da narrativa. Muitas cenas, percebemos, são explicitamente construídas em função da piada e essa é uma característica da chanchada muito desvalorizada pelos historiadores do cinema brasileiro. A TV absorveu essa influência e construiu todos os seus programas de humor sobre ela. Quando Coronel Gaudêncio, diante da imagem de Bolívar e seu parceiro político sob um temporal, diz que "a coisa que eu mais gosto na vida é ver comunista se fodendo", deflagra o sentido cômico que está bem longe das fragmentações poéticas do cinema novo, mas muito próximo do "humor a qualquer custo" das produções da Atlântida. Essa filiação pode ser reiterada pela cena final onde o novo Bolívar e o novo ex-comunista discutem alguns dilemas fumando um baseado inusitado. A apatia que a cena parece querer comentar se dissolve no absurdo relativo: um baseado?, nos perguntamos, e rimos ao descobrir a resposta.

A Terceira Morte de Joaquim Bolívar é original, mas peca nos momentos onde quer parecer sério. Peca também por privilegiar uma perspectiva parcial da história. Pois a ausência de seriedade e a crítica certeira às "novas ordens mundiais" são os dois pontos de apoio do filme. Através da comédia e da precisa crítica política ele cumpre seu papel. É o velho papo: rir para não chorar. E aí está a grande jogada desse A 3ª morte. O filme realiza a crítica mordaz lançando mão dos conhecimentos da historia do cinema brasileiro, e como conseqüência, revaloriza essa história, também ofuscada pelo interesse dos mesmos governantes que prometeram e ainda prometem visitar Burruchaga, algum dia, quem sabe?

Bernardo Oliveira