Entrevista com Flávio Cândido


Flávio Cândido: A epígrafe do filme é uma frase do Humberto Mauro, de que "cinema é cachoeira". Em vez de buscar uma frase literária, ou uma citação filosófica, como tem na Terceira Margem do Rio, veio esta expressão na minha cabeça quando eu estava procurando a epígrafe, depois de procurar em tudo quanto é lugar. "Cinema é cachoeira porque cinema pra mim é paisagem."

Bernardo: Engraçado, porque, se por um lado, algumas pessoas acham que o seu filme remete a cinema do Glauber, eu vi muita coisa de Humberto Mauro, especialmente Sangue Mineiro, e alguma coisa de chanchada, de piada...

Flávio Cândido: a chanchada é uma referência do filme. A referência do filme é o cinema brasileiro. Então, eu bebo na chanchada, nas cenas do padre, na mudança da igreja, aquilo é chanchada pura, tem o Glauber, evidentemente, mas eu vou buscar a minha origem mineira, eu sou mineiro, sou da Zona da Mata, ali na região do Humberto Mauro, e busco muito essa coisa rural no filme e o próximo filme também se passa numa zona rural, só que litorânea.

Bernardo: Quando constrói um roteiro, você pensa numa história e paralelamente pensa nessa filiação histórica ao cinema brasileiro?

Flávio Cândido: Não, eu penso. Eu, como ex-aluno da UFF, formado em Cinema pela UFF, eu busquei no meu curso, na minha vida, sempre essa referência histórica, isso é muito forte pra mim, mas forte do que qualquer outra referência, talvez um ou outro cineasta lá fora me dê mais referências do que o meu próprio cinema, talvez Antonioni, tenho uma relação mais forte, muito forte com o Antonioni, e evidentemente o maior cineasta do mundo, em todos os tempos, que é o Eisenstein. Agora, eu busco sim, estou o tempo todo, não só cinema, também televisão, eu jogo com a tv, no filme tem tv, no próximo roteiro na também tem, na verdade tem uma equipe de tv junto, atuando no filme. Então, a minha referência é pro audiovisual brasileiro, usando essa expressão nova agora, uma expressão do audiovisual brasileiro. E é isso que eu busco, sempre.

Bernardo: Engraçado que você falou sobre o cinema brasileiro, estar sempre pensando o cinema brasileiro, escrevendo sobre as suas origens, eu até escrevi isso num texto, que o Joaquim Bolívar é um filme muito político, uma comédia muito política, mas acho que tem muito de autobiográfico, você é um cara de luta política.

Flávio Cândido: Não é que seja autobiográfico, é também a minha história, mas eu não tenho ainda essa pretensão de escrever a minha história, porque eu não tenho tanta bola assim. Mas principalmente na parte dos anos 70s do filme, tem um momento que eu vivi muito, porque eu fiz parte do movimento estudantil na década de 70, na era do Geisel, e depois em 80, quando vim para fazer cinema na UFF, eu fazia engenharia em Juiz de Fora, eu cheguei aqui agitando também, montando uma para-entidade para fazer o núcleo de audiovisual da UFF funcionar, e nos meus textos eu sempre fustiguei o status quo cinematográfico, a Embrafilme sempre foi a minha vítima, e com certeza eu sofro conseqüências disso até hoje, então eu tive uma relação autobiográfica com essa parte do filme. Porque o próprio rompimento do personagem com uma linha de conciliação que se abria no Brasil na época, era muito o que eu via nas assembléias, tinha Convergência Socialista, Reconquista, que não queriam conversa, não queriam papo, grupelhos que no movimento estudantil no Brasil inteiro, PC do B, PCBr, a gente não tinha muita relação, porque era tudo muito na encolha, ainda vivíamos a Ditadura, mas havia esses grupos brigando por centelhas, não brigavam pela explosão do motor (ah!, lembrei tinha a Centelha Revolucionária – risos), estavam sempre os mesmo levantando e falando nas assembléias, eu vivi muito isso. Depois, em 78, quando surgiu o Lula, o movimento operário – porque o movimento estudantil não se recolheu por muito tempo, teve o negócio de Ibiúna, eu era criança ainda, mas quando eu cheguei na universidade, o movimento estudantil já estava reorganizado, inclusive através do cineclube, onde eu travei oficialmente contato com o cinema, em Juiz de Fora. E ali, usava-se muito a estrutura da cineclube para a discussão da realidade, até Joana d’Arc, do Dreyer servia para uma discussão. Então, quando surgiu o movimento do Lula no ABC eu senti que era chegada a hora de eu tirar o meu time de campo, enquanto militância geral, porque o movimento estudantil respondia pela militância do país em tudo, de querer interferir, de querer abertura, brigar por um país melhor, eu passei a brigar pelo núcleo audiovisual, cada macaco no seu galho. O curso de cinema da UFF não tinha câmera, não tinha gravador de cinema, tinha um núcleo enorme, montado, com um monte de equipamentos obsoletos e que nem sequer funcionavam, então estava pra fazer a bola rolar aqui em questões específicas, é aí que eu acho que a construção da sociedade é melhor, quando cada um luta pela sua questão específica, tendo sempre em mente que precisamos construir um país justo, a luta específica nesse sentido é sempre assim, eu acho que vivemos esse momento quase democrático por causa disso.

Bernardo: Essa consciência que se pode dizer de classe média, porque a luta política é basicamente de uma classe social, pode-se colocar essa consciência social como objeto do filme?, uma mudança de consciência de um militante yuppie preocupado não com um bem comum, mas com um, bem próprio?, pode-se detectar que você está mudando o foco da consciência dentro da classe média?

Flávio Cândido: Eu não quero generalizar tanto o personagem, um personagem que a história política brasileira perdeu. Gozado que eu estava outro dia vendo O Nosso Século, e tava lá na porta da fábrica, 78-79, estavam lá Fernando Henrique e Lula panfletando na porta da fábrica. Esse personagem a gente perdeu, esse foi aquele que chegou lá, que teve a oportunidade, está há seis anos e meio no Governo, e não gerou o sonho que ele teve, não fez o sonho tornar-se realidade ou sequer um plano de sonho, olha aqui, temos aqui um plano de sonho, precisamos ficar vinte anos no poder, pra construir esse sonho, mas nem isso, ele desmobilizou e destruiu o País.

Bernardo: Então Joaquim Bolívar não é uma alegoria genérica. É uma alegoria bem específica, uma crítica quase direta, então?

Flávio Cândido: Não, seria dar muita bola pra esse sujeito. Ele foi escrito, premonitoriamente, como argumento, em 86, em relação à queda do Muro de Berlim, do comunismo e do socialismo real. Então, em 94 eu escrevi o roteiro do longa, que consumiu sete meses, na época esse personagem era Ministro da Fazenda do Itamar e não tinha essa postura desagradável que tem hoje. Só que ele está se encaixando tão bem que todo mundo que vê o filme, diz ah! mas este é o Fernando Henrique (risos).

Mas o filme é fortemente alegórico, era até pra ser mais, mas por questões de produção, eu não pude embarcar muito nisso, eu fiz o filme possível, não fiz o filme como estava no argumento, isso aí nem existe no Brasil, você faz o filme possível.

Bernardo: Mas a música também é alegórica e eu me pergunto se isso é uma filiação direta do Glauber, ou se é uma utilização eisenteniana...

Flávio Cândido: É, tem a ver essa brincadeira que eu faço com o texto, repetitivo, que eu faço loops com os personagens, e com alguns textos, também, vai lá no experimento de montagem do cinema soviético. E é o filme de um diretor gerado pela universidade, que é um luxo, no Brasil. E é uma geração que vai se impor e, daqui a pouco, ser a referência principal. É o que vai mudar o cinema de verdade, são os universitários que estão chegando, querendo botar imagem na tela.

Bernardo: A gente está chegando num impasse, porque agora não sei se a gente prossegue por aí ou volta pro filme (risos).

Flávio Cândido: É porque o assunto do filme, no final das contas, eu sempre quis falar sobre cinema, a história do cinema, e as pessoas puxam muito para o lado político, porque isso é muito forte no filme.

Bernardo: Você me disse que começou como crítico, em Juiz de Fora...

Flávio Cândido: É comecei em Juiz de Fora e, depois já em Niterói, escrevi no jornal O Fluminense (que, apesar do aparente pouco impacto, chegava onde tinha que chegar, porque eu tinha retorno), depois no Cine Imaginário, um jornal mensal só sobre cinema, feito pelo atual subsecretário de cultura, o Prestes. Em meados dos anos 80s, o cinema brasileiro vivia um impasse, porque estava chegando uma outra geração, usando o Cinema Novo como o nascimento de uma nova história do cinema, era a terceira geração, que já tinha um caminho novo, diferente do Cinema Novo, e a minha, que vinha atrás, nesse momento não teve chance. Porque a Embrafilme começou a fechar. Tem um frase do Luís Carlos Barreto no IV Fest Rio, que foi uma coisa horrorosa: dizem que estava ele mais Paulo Thiago, Nelson [Pereira dos Santos], alguns luminares do cinema, e alguém falou sobre a nova geração e ele teria dito "a nova geração que espere, porque antes nós temos que fazer os nossos filmes". E isso foi realmente uma barreira, porque ou você adulava a Embrafilme, brigando por migalha ou não conseguia dar um passo adiante na sua vida, e tinha uns esquemas institucionais, ABT, comissões, era um esquema horroroso, eu costumo dizer que, graças a Deus, a Embrafilme acabou. Foi um mal necessário, porque só assim o cinema brasileiro surgiu com algo novo à frente, mesmo que seja compromissado com o mercado, aqui e ali, mas que já é uma visão diferente e que não precisa ficar adulando os poderosos dos carpetes, porque isso era uma merda!... Se, nas assembléias de classe, alguém levantasse a voz para reclamar, a pessoa de quem se reclamava ficava sabendo na mesma noite, um sistema horroroso que, graças a Deus, acabou, embora estejamos numa situação de impasse econômico, mas foi esse acabar que gerou a coisa nova, a fênix ressurgiu, de eu poder estar aqui e fazer o meu filme e fazer outro, outro.

Bernardo: Você acha que a maneira como se gerencia o dinheiro no Brasil para fazer filmes ainda está injusto, ainda está desigual, mas já deu uma abertura. Qual o nível dessa abertura?

Flávio Cândido: Veja o meu caso: eu fiz um filme que não é político, não é politicamente correto, não faz a redenção do herói, o herói é tragicômico e não é o que muita gente gostaria que ele fosse, e eu, sem contatos e sem conhecer ninguém, só contando com o elenco e a equipe, fiz meu filme. As pessoas que conheciam o roteiro, Walter Salles, Cacá Diegues, deram um apoio no final da história e eu consegui realizar o filme, eles não entraram com dinheiro, mas o nome deles é uma referência quando você vai solicitar um apoio. É claro que aqui, como qualquer lugar, o tráfego e o tráfico de influências continua. Isso vai ter sempre, porque é o ser humano que é responsável por isso. Poderíamos melhorar essa situação. Mas a dedicação dos atores, de correr atrás de recursos e emprestar seu apoio e nome ao filme é que permitiu que eu terminar o filme. Agora, eu tenho um outro problema, o lançamento, mas isso é outra história, muito difícil.

Bernardo: Bom, você superou essa fase de fazer o filme. E agora, para lançar?

Flávio Cândido: Eu fiz uma pré-temporada em Minas, muito importante porque eu descobri o que eu não e não devo fazer pro lançamento, como isso deve ser trabalhado no grande centro, porque eu lancei em Juiz de Fora, Ouro Preto e Belo Horizonte, uma cidade pequena, uma média e uma grande, eu vi o que funciona, onde e o que faltou. Eu queria fazer um lançamento formiguinha, cidade por cidade, eu ainda vou fazer se puder e tiver recursos, só que eu fiquei extenuado. Não dá, é humanamente impossível correr atrás do filme o tempo todo. Então, eu botei a viola no saco e vi que preciso do lançamento nacional para que isso funcione. E onde puder, fazer o formiguinha. Mas eu percebi que não existe rejeição, eu já tinha dois ou três cinemas pra lançar em Minas, mas eu desisti porque estava extenuado e porque eu tenho que apresentar um filme do qual ninguém ouviu falar. E isso é muito complicado, ainda mais se tratando de um cineasta estreante e de cinema brasileiro, a coisa enrosca legal, embora eu tenha percebido que os exibidores querem o filme, com a minha presença, sabem que isso enriquece o lançamento, gera um ti-ti-ti, às vezes eu até consigo levar um ator. Mas eu preciso de um lançamento nacional, a Rio Filmes está meio lá, meio cá e eu já estou quase definindo o lançamento do filme. Eu acho que o filme está cotado para entrar no projeto Cinema em Movimento, porque já viram o filme, gostaram, tem muito a ver com o circuito universitário e sempre que eu faço debate depois do filme, 80% da platéia fica.

Bernardo: Quando você fala desse trabalhão todo pra produzir e distribuir, eu lembro do personagem Glauber, do filme, porque ele chega com aquela trupezinha, cineasta famoso, joga com o lance do Glauber ter sido meio maluco, aí bota o Sérgio Santeiro assim meio maluco também, e eu pergunto se é uma alegoria desse período?

Flávio Cândido: É uma homenagem, ali ele simboliza ele próprio, a ruptura quer se fez necessária com o passado dele próprio e com o futuro que se tinha que construir pro País, apesar dos pesares, vivemos aqui, todo mundo é brasileiro, o canalha, o que mora na esquina, o que ocupa o poder, o sujeito legal que tá lá lutando pelos direitos dos trabalhadores ou até mesmo pelo direitos dos economistas, não importa, somos todos brasileiros, temos que construir um país. E o Glauber compreendeu que precisávamos construir um país. E só é possível construir uma utopia com poder militar, uma utopia não se constrói através dos pensamentos levados ao vento, a utopia se constrói com guerra, é o nosso paradoxo maior, a prova da existência do Diabo, a grande aposta que houve Lúcifer e Deus a respeito da administração do planeta. Lúcifer disse que era possível administrar o planeta com os próprios homens, e gerar riquezas, benefícios, mas o custo é alto, altíssimo. Essa é a estrutura que eu vejo como construção de utopia. E o Glauber compreendeu isso, teve a coragem de dizer, mas foi muito atacado por isso. Porque é muito fácil pensar com os seus botões, nos anos 70s, em plena ditadura militar e outra coisa é você falar isso. E você ser um personagem revolucionário, de esquerda e lutando contra o regime ditatorial. E você virar isso e dizer que os militares são a porta de entrada para o paraíso, é uma coisa complicadíssima. Então, o Glauber representa essa ruptura, inclusive representa a ruptura de linguagem do filme, enquanto na primeira fase do filme eu uso muito tripé, o tempo todo, um filme clássico mesmo, usando muito pouco o carrinho, na segunda parte, tem que trabalhar na mão, grua, carrinho, ele já chega [bagunçando] para criar um outro clima, um outro tipo de cinema...

Bernardo: Cria risos, né? As pessoas gargalham, sempre que ele aparece, é uma gargalhada geral. Aconteceu isso quando eu exibi o filme e quando eu vi na mostra, foi uma gargalhada geral!

Flávio Cândido: É, o filme tem muito humor. O Santeiro enriqueceu o personagem com o que ele sacava do Glauber e com o que ele, Santeiro, é. Eu não queria um ator para fazer o filme por causa disso. Eu procurei alguém que pudesse representar o que o Glauber pensava e como ele agia. E o Santeiro se encaixa perfeitamente. Não há ator que faça um Glauber tão pouco parecido com o Glauber e tão Glauber quanto o Santeiro fez. Não vai haver ator que faça isso.

Bernardo: Foi exatamente isso que eu pensei: o cara não tem nada a ver com o Glauber...

Flávio Cândido: mas é o Glauber (risos). A própria Paula Gaetan (interrompido pela chegada de uma pessoa, ele deixou o pensamento incompleto)

Bernardo: Eu pensei muito no Jango, do Sílvio Tendler, quando vi o filme...

Flávio Cândido: mas tem cenas do Jango ali...

Bernardo: é que eu pensei que Jango é um filme tão objetivamente simpático para a época complicada em que ele foi feito, e o seu filme também é e ele coloca isso pra todo mundo ver, de cara. Eu fico pensando: se o Jango é um documentário, você se apropriou desse documentário, dessa visão simpática para criar um filme de ficção, você disse que tem cenas do Jango, e eu queria saber se você faz essa filiação, se é uma inspiração, pela postura política, nitidamente documental de mostrar olha, o cara estava certo por isso e por aquilo, e é raro você ver isso no cinema brasileiro?

Flávio Cândido: É, todo mundo tem medo de tomar posição, todo mundo quer ser politicamente correto, tudo vale a pena, tudo está certo e não é exatamente assim que as coisas funcionam. Afinal, a grande maioria dos mortos e desaparecidos estava do lado de cá e não do lado de lá... O lado de lá sempre propagandeou que estava defendendo o País. Uma ova que estavam defendendo o País! Estavam defendendo o salário deles, eram pagos pra isso! Se é pra defender o País, faz um grupo guerrilheiro de direita, agora, não esteja dentro do Exército nem dentro da Polícia. Assuma os riscos. Eu me posiciono sem lançar bandeiras, eu me posiciono como cidadão. O Jango [Goulart] representou um sonho terrivel e dolorosamente desfeito de um país inteiro, representou o fim do regime democrático ali em 64. E o fato do Jango não ter reagido militarmente foi um grande gesto de generosidade que um presidente poderia ter, porque detinha o poder, tinha o esquema militar dele disponível, o Golpe de 64 foi um golpe mesmo, depois é que virou revolução no decorrer dos anos, e foi um golpe que nem os próprios golpistas estavam pensando em fazer, quer dizer, um movimento de tropas, saído de Juiz de Fora, da minha terra (aliás, eu sentei no pára-choque de um caminhão daqueles, a casa do general Mourão [você acha que cabe aqui dizer, rapidamente quem foi o Mourão], em Juiz de Fora, era a dois quarteirões da minha casa, as tropas ficaram acantonadas por ali). O gesto do Jango, então, foi um gesto de extrema renúncia, na verdade ele renunciou ao cargo quando houve o movimento militar e ele poderia ter reagido e seria um banho de sangue, ia ser uma coisa horrorosa. Porque uma coisa é a revolução de 32, que – embora tenha morrido muita gente – era uma guerra de trincheira e armas do século passado, que não tinham o menor poder de fogo. E outra coisa é uma guerra civil com tanque, avião a jato, bombardeios, ia ser uma coisa horrorosa no País, nessa guerra sairiam perdendo os bons, os fracos e os justos. Minha mãe me disse que o presidente do CGT, Claude Smith Riani, que era de Juiz de Fora e está no filme, foi para a rádio e ficou o dia inteiro gritando, pedindo ao povo que reagisse, que repudiasse, que fizesse greve, que não deixasse, que não permitisse a tomada de poder pelos militares e ninguém tomou uma posição clara a esse respeito. Na verdade, foi a maioria silenciosa que se manifestou, que é o que o Adamastor é no filme. Que é o que o brasileiro é, ele está sempre ao lado do justo, do bom, mas há um momento em que ele não arrisca a vida, em que não vale a pena mais, o instinto de sobrevivência é muito forte. Ele sobrevive, tenta buscar naquelas sombras, aonde há luz, aonde ele pode se guiar. E a melhor maneira é ganhar dinheiro com o que já está resolvido: tá tudo sendo destruído, está sendo abandonada a cidade, então vou ganhar dinheiro com isso. E justamente, ele não provocou nada, ele lutou contra aquilo tudo ali.

Bernardo: Voltando ao filme: eu acho a direção de atores excelente. Mas, sem que isso seja um demérito, tem o lance da TV, forte, suportando a comédia. Fala um pouco disso?

Flávio Cândido: O filme tinha outros elementos que eu não pude usar, porque ele ficaria com três horas de duração. E como eu quero a comunicação com o público, eu não quero fazer nenhuma tortura, como alguns cineastas fazem, para se mostrarem geniais, eu não me importo com isso, eu quero comunicar-me com o público, quero que as pessoas se divirtam, se informem, pensem. Então, havia uma referência ao cinema na praça, na primeira parte do filme, tinha o Cine Propaganda Fluminense, que era feito no Estado do Rio, numa região próxima a Niterói, por um grande personagem, Eduardo Abelinha, um pioneiro do cinema que foi até motivo do filme Sonho Sem Fim, do Lauro Escorel. Meu filme de formatura seria sobre ele mas na época teve uma greve, a primeira e grande greve, seis meses de greve, começou uma semana antes da gente começar a rodar o filme, e dois dias antes da greve acabar, o Abelinha morreu. Então, tinha uma referência com ele, que chegava na cidade, montava a tela... e na segunda parte tem a TV, que era domínio do coronel. A TV foi o grande sustentáculo do regime militar nos anos 70s, a gente não tem idéia porque nunca sabe o que está rolando à volta. Só os grandes gênios conseguem conceber e articular – com clareza e sem a menor contradição – o que está acontecendo com você, o mundo, a sociedade, com a tua rua. Só os grandes gênios conseguem enxergar o óbvio, que não é tão fácil de enxergar. Eu faço uma crítica à televisão da época, à televisão oficialesca que se fazia, à teledramaturgia que se fazia e se faz até hoje, só uma coisa ou outra escapa daquela bobageira de sempre, um folhetim barato, então eu tenho a crítica à TV através do personagem Glauber que fazia o programa Abertura, um programa que até hoje não existe, ninguém teve a ousadia de fazer aquele programa, ele fazia nos anos 70s, na TV Tupi, o Glauber foi um cometa que passou pelo mundo e o Brasil ainda não entendeu ele, mas vai entender.

Bernardo: No último Joaquim, o coronel está desterritorializado (usando uma terminologia do Deleuze), ele chega de helicóptero...

Flávio Cândido: É, para ele aquilo ali é só pasto, ele se deu bem, ele mora longe, aquilo ali é só pasto, ele chega de helicóptero...

Bernardo: Essa terceira morte parece que é "a" morte pra você, não sei se eu entendi direito o que eu li, o fato do cara estar conformado, o próprio título do filme diz isso, aí você tem o lado dos revolucionários conformados e o coronel não está nem fixo mais à terra...

Flávio Cândido: é a nova burguesia rural, uma coisa americanizada, o sonho é ir pra Miami, o chapéu é de cow-boy, se havia um dado positivo no coronel, que seria o nosso príncipe, os nosso principados seriam os nossos coronelados, era serem brasileiros, terem pelo menos apego àquele torrão de terra em que ele aprontava, matava, roubava, mas ele tinha apego àquela porcaria que ele fazia. E essa nova burguesia não tem apego a coisa nenhuma, tem apego ao dinheiro, por isso que eu não vejo o mal, em si, de estar havendo uma desnacionalização da economia, dos bancos, banco não tem ideologia nem pátria, banqueiro é banqueiro, em qualquer lugar do mundo, igual a militar, seja de esquerda ou de direita, militar é militar. O coronel é isso, essa nova burguesia endinheirada, muito mais endinheirada e muito menos presa ao País. Mas se algo o incomoda, ele vai lá, resolve e volta, vai embora, não fica lá, pega o helicóptero de volta.

Bernardo: O filme termina pessimista. É um filme pessimista?

Flávio Cândido: Não. Eu prefiro dizer que ele é um filme realista. Ele tem uma melancolia porque a gente não pode estar rindo da situação atual, não temos ainda a liberdade de rir dessa situação. O jargão diz que "a gente ainda vai rir de isso tudo", mas na hora você não está rindo. Esse jargão é um consolo pro futuro, vamos superar o pântano e vamos rir do pântano mais tarde e até ter saudade, às vezes. É uma situação paradoxal que envolve muitos dramas que a gente tem. O filme seria pessimista se eu terminasse ele antes, numa frase anterior, mas a minha concepção de "pátria" está ali. Eu sou brasileiro, eu me emociono com a bandeira do Brasil, me emocionei no Panamericano com as meninas da ginástica rítmica, eu fui às lágrimas com aquilo, uma coisa maravilhosa, porque são meninas que não têm nada, você vê a seleção de handebol, que foi medalha de prata em Winnipeg e se classificou para as Olimpíadas, foi a primeira vez que o Brasil se classificou no handebol, aquelas duas meninas moram em São Gonçalo, uma delas foi aluna da minha irmã, que é professora de educação física, são pessoas que não têm nada! Vivem numa situação precaríssima, então isso é muito emocionante, aponta para um futuro, veja que esse povo consegue superar qualquer merda. É impressionante a capacidade que o brasileiro tem de superar a sua elite, dar a volta na elite, essa porcaria que nós temos nos governando aqui, a capacidade que nós temos de gerar riqueza pouquíssimo tempo depois de estarmos numa situação de desemprego. A questão agora é que o Governo está impondo ao País uma recessão à custa da vida das pessoas, as pessoas estão morrendo por isso e eles estão pouco se lixando. A canalhice que tomou conta do poder não tem apego a esta terra; eles têm apego ao dinheiro, ao que os outros vão dizer lá fora. Estão preocupadíssimos com a imagem que o George Soros tem do Brasil, imagina!, e gente morrendo na rua.

Bernardo: Embora você tenha definido muito bem três fases históricas, uma linha que sai de 64, recomeçasse em 79, mas a primeira continua, os problemas que mataram Joaquim Bolívar ali são os mesmos e continuam. Aliás, me parece que em 79 a descrença dele aponta para uma certa imaturidade de certos setores da política de esquerda. A terceira morte representa um outro estágio. O que o cineasta brasileiro Flávio Cândido fala sobre essa quarta morte, ou essa quarta vida?...

Flávio Cândido: É vida, é a quarta vida. Porque a morte é ressurreição, eu sou espírita e acredito piamente nisso. A morte é sempre a perspectiva de um renascimento. Eu penso na quarta vida, a vida que a gente quer. O tema do concurso para estudantes que a gente vai lançar no Projeto Escola, é justamente isso: como será a quarta vida de Joaquim Bolívar? É concomitante: se há vida, há morte. Mas eu penso na vida, penso no que vem pela frente. O ponto de melancolia que o filme dá no final é um ponto de interrogação, não é um ponto de exclamação. O filme deixa uma interrogação e por isso que eu digo que o filme não é pessimista. Pessimista seria se eu levasse as pessoas a uma catarse por clímax e esse clímax gerasse a morte, a tortura, o mal. Eu trabalho com o anticlímax, a terceira parte é o anticlímax o tempo todo.

Bernardo: ... e o baseado insólito? (risos).

Flávio Cândido: Esse trabalho que eu faço com os personagens na terceira morte é a perspectiva de uma nova vida. Seja cristã, seja budista, materialista, pode ser o que for. Mas é sempre para o bem, o crescimento de todos.

Bernardo: E o que seria uma quarta vida para o cinema brasileiro, daqui pra frente, na sua visão?

Flávio Cândido: É continuar minha pesquisa de cinema, de linguagem, trabalhar com os elementos de cinema, continuar nas referências da minha cultura cinematográfica, o próximo projeto se chama O Jardim das Oliveiras trabalha com isso, espero realizá-lo o mais breve possível, não quero ficar na fila mais tantos anos. São doze segmentos de um filme só, com estilos diferentes de um segmento pra outro. Eu brinco a linguagem de novo, tem televisão, tem jornalismo de tv, tem vídeo, tem o dogma (eu invento o dogma 2001 – uma odisséia em videotape), tem teatro de arena, tem tudo contando uma história só, do início ao final é a busca de quatro reis ex-quase guerrilheiros (mais uma vez eu trabalho com uma não-história, com não-personagens, que estão na periferia da história) que estão em busca de um, que desapareceu e que eles acham que foi ele quem os "entregou", eles como se fossem guerrilheiros, foram torturados etc e tal, é esse o motivo do filme acontecer. São doze segmentos como foram doze os apóstolos. Tem o MST, tem o indígena (que entra como uma espécie de entidade julgadora, acima do bem e do mal, que toma o seu espaço, eu recrio nos personagens indígenas os goytacazes, que foram extintos há um tempão. Como o filme se passa no Norte do estado, os goytacazes estão querendo retomar algumas de suas terras.

Entrevista realizada por Bernardo Oliveira