Mostra de Filmes Israelenses
e algumas palavras sobre cinefilia no Rio de Janeiro


Sentimento Urbano de Jonathan Segall

Nos dias 17 a 19 de abril, passou pelo Rio uma mostra de cinema israelense. Composta de 5 filmes (se bem que um deles foi exibido somente num domingo de manhã... Será que conta??), a mostra veio se juntar a outros exemplos recentes de tentativas de abranger cinematografias pouco vistas (ano passado tivemos mostras australiana, portuguesa, polonesa, etc). Estas mostras resultam sempre bastante desiguais pois não parece haver um conceito de curadoria por trás delas, mal que aflige aliás mostras maiores e regulares, como a Cine Sul como um exemplo. Por outro lado, tem a vantagem de exibir filmes que realmente ficariam completamente ignorados no Brasil, o que é sempre louvável.

Esta mostra teve algumas peculiares características. Primeiro uma bizarra legendagem bilíngue em espanhol e português onde claramente a parte lusófona foi feita por uma pessoa que não fala a língua fluentemente (provavelmente alguém que fala espanhol), e os erros chegavam a beirar o folclórico. O segundo ponto é o público.

Todos sabem que tenho uma velha e antipática teoria de que no Rio não há cinéfilos de verdade. Tem o pessoal que confere o que recebe aval dos nossos "suplementos culturais" ou revistas de comportamento, seja em shows (Zeca Pagodinho, Pedro Luís, etc), teatro (Gerald Thomas é o quente no momento... de novo!!), cinema (Truffaut foi o último a receber mais destaque). Garimpador mesmo, difícil. Nas mostras menos divulgadas o CCBB fica vazio, o MAM vivia da mesma forma, e estas mostras mais estranhas mesmo no Espaço Unibanco não atraem as mesmas carinhas bonitas. Tá certo que 5 da tarde e 7 da noite de segunda e terça não são exatamente os quitutes da semana para trabalhadores, mas garimpar às vezes é isso mesmo.

Com isso tudo, o público destas mostras temáticas costuma ser interessantíssimo, pois no geral é formado por representantes da comunidade retratada, com pouquíssima tradição de cinema e muita vontade de ver sua terra natal, ou a de seus antepassados. Foi assim ano passado com os poloneses, foi assim em anos anteriores em mostras árabes e de outras cinematografias. Não foi diferente com os judeus. Público no geral de pessoas mais velhas, mas acima de tudo reagindo a tudo das telas, falando muito (mas no caso nem incomoda pois serve como termômetro de identificação) e antecipando ou destacando momentos que a incautos não significam nada. O mais surpreendente foi na saída do filme mais sexualmente ousado ver que os velhinhos comentavam com desenvoltura a narrativa enquanto os mais novos (na casa dos seus 30 anos) estavam escandalizados e revoltados. Hmmmm...

Quanto aos filmes deve-se destacar: antes de tudo que dos 4 vistos, 3 pelo menos podem ser chamados de "miúras" na denominação que Carlão Reichenbach tanto gosta para descrever filmes fora do naturalismo típico do gosto popular. Como não dá para saber qual porcentagem da produção israelense eles representam, não dá para tecer muitas teorias, mas é no mínimo interessante.

Sobre os filmes em si: A Festa de Páscoa é uma produção sobre as relações entre parentes numa reunião familiar. É isso mesmo que parece, nem mais nem menos. Piadas, relações extraconjugais e conflitos de geração, briga de irmãos, divórcios, tudo sendo lavado em público. Nada que não esteja todo dia nas novelas e nos filmes mais caretas de linguagem, com os quais o filme só tem semelhanças. Há um elemento leve de realismo mágico, estilo judaico, mas que não funciona e soa como bengala para solucionar problema de roteiro. De resto nada a destacar.

O filme Santa Clara é uma fascinante tentativa de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, que resulta mesmo irregular e desigual, mas com muito tesão na realização, que é o grande barato. Numa escola, todos os alunos começam a colar e tirar 100 nas provas. O que os professores não esperavam, ao investigar, é que isso acontece porque uma menina tem visões e consegue descobrir os resultados. O filme parte daí para falar de sistema educacional, juventude no fim de século, estado das coisas, tudo cheio de energia. Um cinema muitas vezes quase marginal, tanto estética quanto tematicamente ousado, mas que se revela no final a serviço de uma ideologia quase moralista que prega o amor mais careta como solução para tudo. Mas, até lá, vários momentos bem interessantes e corajosos, que resvalam na pedofilia, incitação a revolta violenta, e mistura fantasia com realismo.

O filme Aos Olhos Ocidentais é o mais bem construído em termos de domínio de linguagem, com sua fotografia PB, trilha sonora, edição de som, enquadramentos e movimentos de câmera. É um exercício de memória, um rapaz que volta a Israel em busca do pai e do seu passado do qual fugiu. Usa com sucesso imagens em Super 8 para revelar este passado, e uma trama de suposto thriller, na verdade existencial. O que mais impressiona no filme é a utilização da paisagem desértica do interior de Israel, com planos gerais monumentais em PB, muito bonito e forte, nos quais como num western de John Ford, a paisagem parece antecipar os destinos dos personagens. No entanto o que chega mesmo a surpreender é notar como o filme se parece em estrutura, visual, enquadramentos mesmo, com Terra Estrangeira de Walter Salles e Daniela Thomas. Não é caso de plágio pois são do mesmo ano, no entanto a semelhança assusta. E, como neste, ao final fica a impressão que todo aquele estilo muito bem dominado e que durante a projeção pareceu significar muito, lá no fundo é meio raso (se é que me entendem...). Pontas de trama e personagens ficam soltos, mas o filme tem inegáveis atributos.

O filme mais completo é disparado Sentimento Urbano, um estudo das relações amorosas no fim do século, a partir de um ponto de vista cínico, mas ao mesmo tempo emocionado e humano. Que abraça os defeitos e ri das virtudes destas relações. O filme tem um ritmo muito peculiar, e uma lógica interna fascinante no comportamento dos personagens, que vão quase se unindo e separando como se não pudessem evitar esta necessidade do outro, quase sempre não realizada a contendo. A presença de um garotinho dá uma força especial ao filme, pois o ponto de vista é praticamente dele, que revela não entender, mas compreender, toda aquela ciranda de emoções à sua volta, a partir da mãe. O seu suposto pai resolve ir embora com uma mulher que conhece em anúncios de jornal, por causa da volta de um antigo namorado que é a grande paixão da sua esposa e que estava sumido. Este assume o papel do pai (e pode até ser mesmo), mas logo se revela um homem incapaz de viver um amor, que destrói o que toca e ama. Ele não é moralistamente culpado por isso, a atitude do filme é de aceitá-lo pelo que é. Amoroso, mas sem capacidade de amar. Ele é um homem que na rotina se sente preso e na felicidade um refém. Ele vai embora, a mãe acaba sozinha com o filho, mas mais feliz do que no início. Com isso o filme não sinaliza a impossibilidade do amor, mas apenas as dificuldades de atingir a felicidade e a possibilidade dela não estar numa relação como as que nos ensinaram nossos avós e pais.

Há uma sequência especialmente impressionante no filme, na qual a mulher sai pelas ruas e acaba entrando numa orgia. Em tudo parece a cena de Kubrick, às avessas. E impressiona justamente por sobrepor o imaginário puritano-americano a um outro tipo de repressão interna e desejo. As cenas são muito mais orgânicas e explícitas, e menos cerimoniais. Onde Kubrick busca o transe, o diretor busca o tesão. Em ambos o personagem tem sua situação abortada antes de qualquer consumação de fato, mas aqui (tanto por diferenças culturais como por diferenças de gênero do personagem), a sensação é de libertação. Em suma, um belo filme, rigorosíssimo na composição quase minimalista que do primeiro ao último plano (ambos belíssimos) deixa claro seu enfoque, seu tema, sua postura, todos muito bem resolvidos e ainda assim completamente cheio de dúvidas, o que talvez seja a maior qualidade do filme. Fez valer a garimpagem, como aliás, sempre vale.

Eduardo Valente