Homem-elefante:
para resumir, uma seqüência


O Homem-Elefante de David Lynch

Híbridos: antes de Merrick, Lynch — Talvez a mais forte característica do cinema de David Lynch seja uma que ele mesmo parece se esforçar por ocultar. Parece que se dissimula o tempo todo essa marca que sempre se insinua, mas que nunca aparece como "o" elemento central em seus filmes — pelo menos não aparentemente —, mas como um elemento subjacente de uma trama de estranhamento, isso quando ela sussurra alto o suficiente para ser reparada.

O verdadeiro elo entre os filmes de David Lynch não é (apenas) a ambiência um tanto surreal que se apresenta diante de nossos olhos. Não é o grotesco que importa em Lynch como elemento central (ou talvez seja esse mesmo o elemento central e o que importe seja a periferia), o que está em jogo em Lynch é que invariavelmente ele nos submete a uma outra temporalidade, oriunda de uma lógica em que causa e efeito são regidas não por um sistema direto, mas por uma pergunta central. Lynch é um cineasta de filmes policiais, na verdade. Cada um de seus filmes é uma busca por um elo lógico. A diferença é que a busca não está na história do filme, mas em sua estrutura. É uma investigação sempre, sempre feita no mundo dos símbolos.

Nesse sistema, o papel do monstro é primordial. Ele é, em uma estrutura simbólica, nem um signo, nem outro, mas um híbrido dos dois. É sempre um bestiário um filme de Lynch, a mostrar como mundo e bestiário na verdade se trocam. Nesse sentido, Lynch bebe fortemente na fonte surrealista. É ele mesmo um híbrido. O filme que mais serve ao propósito de revelar a conexão entre uma instância que consideramos real (e, sobretudo, lógica) e outra, em que reina o estranhamento, é Blue Velvet. Lost Highway segue o mesmo percurso, assim como o sua outra parceria com Barry Gillford, Wild Heart. Mas em um filme pelo menos, bestiário e mundo se colocam a certa distância um do outro e o que acontece é que um visita o outro. É Homem-elefante.

Homem-elefante (Elephant man, 1980) é o filme do pleno ajuste entre o ambiente do monstro e o do homem em Lynch. O homem John Merrick ("I’m not an animal, I’m a man, a man!") é a ponte entre os dois cosmos. Ele é homem-elefante. E o hífen não é apenas ortográfico, é uma situação, mais até, um estatuto. É verdade que "elefante" não é verdadeiramente o lado monstro de Merrick, ele não se parece efetivamente com um proboscídeo. Mas o que é mais importante é que sua "monstruosidade" não está em uma das metades de seu "título", mas na composição dos dois, o híbrido no corpo é produzido pelo hibridismo no nome.

O que importa mesmo é o lugar produzido para sua existência: Merrick é, ele mesmo, um bestiário, uma enciclopédia do que é a convivência entre essas duas dimensões não interpenetráveis, mas que, estruturalisticamente, definem-se mutuamente. O que torna Merrick o monstro singular é que ele se torna "humanizado" no filme. Ele convive com a sociedade que o colocou no circo para dele se afastar, para poder olhá-lo à distância — e descobre que ela se transforma no segundo freak-show em que ele é atração, com a diferença do tamanho da jaula: na sociedade, ele transita, percorre a vida e a moral vitorianas, em um símbolo claro para a estrutura social. O fato de que a história seja real, de que Merrick não é apenas um personagem, mas um biografado, John Cary Merrick, um caso clássico de desfiguração adquirida, só torna essa troca sígnica mais poderosa.

Mas não faremos um longo ensaio sobre o filme. Ele merece (pelo menos) um livro para discutir tudo o que nele se coloca. O que faremos é falar de uma cena (e a conectaremos com outras), de uma seqüência curta, que serve de elo para esse sistema de Lynch se manifestar da maneira particular que já apontamos. Trata-se da espécie de "prólogo" que o filme tem, a inusitada seqüência da mulher e do elefante.

A fotografia em preto e branco, aliada a um fog tipicamente londrino, compõem a ambiência de mistério e bestiário que o filme merece. É uma imagem onírica. O retrato perfeito da Inglaterra vitoriana. O que torna o filme singular é sua relação com o corpo e com o mapeamento da composição "homem-elefante". Dissemos acima que não se trata nem do "homem" nem do "elefante", mas sim da composição. A seqüência se presta justamente a isso: compor homem e elefante, em um híbrido em que não se enxergue exatamente uma "elefantíase" (as aspas são para que o termo não seja confundido com a doença de mesmo nome. Aliás, Merrick de fato não sofria dessa doença), mas uma monstruosidade no sentido pleno do termo: um outro, composto estruturalmente.

Assim, a estranha cena, que parece sugerir, ao som de música circense, o estupro de uma mulher por um paquiderme, imagem que bem poderia estar na ordem do dia de uma obra surrealista, segue mesmo um sistema de surreal, para não apenas desconectar signicamente, como é manifesto no surrealismo, mas para redefinir o signo (ou os signos "homem", "elefante" e "monstro").

O poder do cinema de Lynch é este: o de redefinir signos a partir de uma monstruosidade qualquer. A cena da mulher e do elefante, dada no circo, é o paroxismo desse método. Os elefantes passam de um lado para o outro, a mulher se assusta. A cena cria uma rotina e depois a rompe, introduzindo aquilo que seria o filme: não se pode separar homem de elefante sob pena de o personagem não ter mais sentido.

É no pouquíssimo tempo que dura a seqüência que se afirma o poder do signo de Lynch. Nesse sentido ele é ainda um surrealista, um titereiro de signos. É o jogo em torno do personagem que de elefante nada tem (nem mesmo o tamanho, que é analógico, num exercício de raciocínio quase medieval, que a era vitoriana tanto fazia dialogar com o positivismo da ciência, produzindo um mundo que era, e ainda é, em si mesmo, um circo, um bestiário) e que de homem tudo se revela que Lynch introduz seu mistério, sua trama.

O mistério, depois, será uma discussão sobre a própria natureza humana, em um dos filmes mais "modernos" já feitos. Nele, a separação entre homem e animal ganha uma das suas discussões mais bem urdidas e poéticas. O poder do híbrido Lynch se coloca nas mãos de perguntar quem cria o signo, quem afirma que o homem-elefante não é homem ou que a natureza não é cultura. Repetindo a pergunta, então: quem afirma que o homem-elefante não é homem (e vice-versa)?

Alexandre Werneck