Plano
Geral (março de 2000)
História(s)
do Cinema de Jean-Luc Godard
fogos sobre Beleza Americana e Santo Forte
FILMES NA TV
Histoire(s) du Cinéma, de Jean-Luc Godard
HISTOIRE(S) DU CINÉMA
Dificilmente haverá outro acontecimento cinematográfico tão
importante quanto esse nos próximos meses, ou anos, na televisão.
Porque tomar para si a tarefa de exibir uma obra tão complexa e suntuosa
(tanto na pretensão narrativa quanto estética) quanto essas
Histoire(s) é uma tarefa de fôlego. Fôlego inicialmente
por todos os caminhos e descaminhos por que passou o direito autoral da
obra e sua divulgação, mas fôlego também pela
necessidade do espectador de entrar no ritmo próprio do filme, de
poder construir, com as peças que Godard nos dá, um tecido
firme e belo, pontuado por um discurso histórico e estético
ímpar tanto na história da arte quanto na própria História.
Claro, as História(s) do Cinema não são sem
"pais", mas estes são acima de tudo os críticos
e historiadores, os estetas e os filósofos. Se vários de seus
filmes prestam contas com cineastas Viver a Vida com Dreyer
e Murnau, Uma Mulher É Uma Mulher com Minnelli e Cukor, Cuida
da Tua Direita com Jacques Tati , essa série de Godard
é habitada antes de tudo pelos teóricos da arte e da história:
estamos falando de Élie Faure, Fernand Braudel, André Malraux,
André Bazin, Serge Daney (este presente numa entrevista diretamente
com Godard), Michel Foucault e Georges Bernanos. Por isso as História(s)
são tão densas, tão sombrias, de uma compreensão
longínqua.
Difícil pelas teses fundamentais, que serão discutidas ao
longo de todas essas História(s). Tese 1: o cinema, como o
último avatar da sociedade industrial ocidental, é um instrumento
privilegiado para mostrar (e demonstrar) que o mundo mudou. O cinema, desejado
há mais de 300 anos, coincide com o nascimento e com o fim de uma
era. E, ao acabar essa era, o cinema também acabou. E assim os livros,
a música, etc. Ao menos, da maneira como os conhecíamos. Do
que deriva uma outra tese. Tese 2: quando o estatuto da imagem muda, muda
o mundo. Se a outra tese é problemática (envolve o paradoxo
dos três tempos da história de Braudel, a história imóvel
da terra e do homem em relação om ela, a história ritmada
dos grupos e das civilizações e, por fim, a história
usual, a dos indivíduos), essa segunda é límpida. Se,
desde os tempos mais remotos, o homem usou a imagem, o ícone, como
elemento simbólico (algo que sempre remete a um signo socialmente
dado), isso hoje não é mais dado. A famosa cultura comunicacional
contemporânea tem seu modo próprio de tratar a imagem, e mesmo
que ela tenha herdado do cinema todas as suas formas e a sua gramática,
ela é uma verdadeira inimiga do cinema. A imagem, se antes era simbólica,
hoje ela só o é com fins coercitivos; hoje ela volta a ser
ícone, e isso por um motivo que Godard explicita não só
nas Histoire(s) mas desde JLG/JLG e 2X50 Anos de Cinema
Francês: o conflito intrínseco entre a arte e a cultura,
entre a expressão e a comunicação. Se a arte desde
o renascimento se movimentou no sentido de problematizar (o mundo, a moral,
a própria estética), hoje vivemos uma cultura diferente. A
imagem não é mais simbólica, a palavra não é
mais expressiva. A imagem é entertainment, é eficácia.
A imagem é comunicação, a comunicação
de palavras de ordem. Terreno de Deleuze e de suas três épocas
do cinema, e hoje o mundo faz seu cinema, hoje o cinema (= a imagem, o audiovisual)
está em todo lugar, na câmara de vídeo do papai, subindo
a favela para catar os traficantes ou para veicular as palavras de ordem.
A imagem não mais expressa, apenas comunica. E a comunicação,
tal como nos é dada na sociedade, é a polícia do pensamento.
E nisso Godard é perfeito: o cinema é o primeiro momento em
que essa configuração se realiza. Em tempos de internet, a
escrita também torna-se icônica, mas o cinema trabalha com
isso há mais de 100 anos. O cinema é o mais perfeito exemplo
disso, pois já nasceu desse paradoxo: é uma arte e uma indústria.
O cinema mais ficcional é um documentário, e o documentário
mais "jornalístico" é uma ficção.
O cinema faz o que nunca uma arte pôde fazer: ele registra o movimento.
E, mesmo assim, é tomado no exato ponto entre arte e cultura, entre
arte e indústria. O cinema é Soberba, de Orson Welles,
é a eterna disputa entre Hughes e Selznick, de um lado, e Erich Von
Stroheim e Orson Welles de outro. Soberba é a obra-prima jamais
exibida, idem para Queen Kelly. Se o mundo hoje se ressente desse
problema do pós-modernismo que é a iconização,
o cinema já era pós-moderno há 100 anos.
Tudo bem: o cinema, tal como o entendemos e vivemos, acabou. Tudo bem: a
comunicação ganhou da expressão, for ever Mozart ("notas
demais, notas demais"!!). E nisso, não se deve ver uma intriga
estética, mas absolutamente social. Uma intriga internacional. E
o que são, então, as História(s) do Cinema?
São os relatos do historiador, é a história daquele
que viveu o cinema. O que é uma história? Godard bem poderia
dizer de suas História(s) o que Braudel disse de sua própria:
não se trata de um método nem de um método objetivo
por excelência, mas uma filosofia da história. O cinema tendo
acabado, trata-se de contar a sua história, que é a mesma
história daquele que o viu crescer, que animou seus sonhos de juventude
e que fundiu sua vida a ele. Aluno mais estudioso e mal comportado de Henri
Langlois, Godard conta por dentro toda a história do cinema, como
Méliès é documentário e como Lumière
é "grande arte" porque derivado do impressionismo. E nisso
os heróis, os líderes: Rossellini, Welles, Hitchcock. O crítico
Jean-Marc Lalanne foi de extrema felicidade ao escrever que as História(s)
são a Câmara Verde de Godard. Uma homenagem aos mortos,
uma homenagem àquilo que passou. O último apelo do mundo "às
antigas" contra uma nova era que aparece, uma "época dura,
cínica, analfabeta" (Godard citando Deleuze/Guattari de O
Anti Édipo).
Não é à toa que o último trecho das História(s)
é o mais comovente. Pois engana-se quem pensa que a obra de Godard,
por ser mais histórica e menos "estética", seria
menos pessoal. É justamente na imbricação da vivência
pessoal e do comentário histórico que existem as histórias.
E, para isso, nada mais bonito que a citação de Borges ao
final. Porque se Godard nos traz duas novas extremamente tristes, o fim
do cinema e a impossibilidade da realização de seu plano,
ele nos fala, com a boca de Borges, do cinema como uma flor que é
dada a um homem no sonho mas que permanece quando ele acorda. "Eu era
esse homem" é a última frase das muitas que lemos e ouvimos
em História(s) do Cinema. Mas é a flor que permanece
depois do sonho aquilo a que devemos nos ater. Porque História(s)
do Cinema é essa flor.
Ruy Gardnier
Dia 6: 1A Todas as Histórias (51min)
Dia 13: 1B Uma Só História (42min)
Dia 20: 2A Só o Cinema (26min)
Dia 27: 2B Fatal Beleza (28min),
sempre às 20:30, no canal Eurochannel (TVA)
para o mês de abril, são previstos os episódios A Moeda
do Absoluto (3A), Uma Onda Nova (3B), O Controle do Universo (4A) e Os Signos
Entre Nós (4B)
SOBRE BELEZA AMERICANA
O que é o cinema? Linguagem única, capaz de representar o real à sua maneira
incomparável? Talvez.
O que estão fazendo com o cinema? Estão acomodados e contentes com um uso
batido de suas potencialidades.
Falando de espetáculo fílmico, Beleza americana não escapa do comum.
Usa um roteiro que volta, "quebrando a linearidade da narrativa" (fantástico,
não?). Consegue misturar as bordas entre o real narrativo e o irreal da
imaginação do personagem principal (Incrível!). Faz suspense no final e
não responde inteiramente as perguntas que levanta (fabuloso!). Então. O
que isso tem de novo? Claro, tudo muito bem feito, bem fotografado, bem
encenado. Como todo filme tecnocrata deve ser, e como hollywood sempre fez.
Beleza americana cativou o público americano e a crítica americana
por motivos igualmente vazios. Em uma sociedade que possui inúmeros defeitos
graves que deterioram de maneira irreversível a sua organização, esses defeitos
são notados, é claro. Porém, não são questionados. Conseqüência direta da
sociedade do espetáculo, onde tudo deve ser mostrado, mas nunca deve ser
levantado um plano de análise profunda sobre suas causas.
Não passando de um filme redondo, com ares de arrojado para o público médio,
a "crítica ácida" (como alguns têm chamado) que faz fica inútil. A obra
só se debate, esperneia gritando que todos são degenerados, que as bases
da sociedade americana estão podres. Não passa disso. E isso não é novidade
para ninguém que tem um mínimo de capacidade de raciocínio.
Mais uma vez, americanos assumem a culpa e acham que as coisas vão se resolver
sozinhas. Armou-se então um movimento de "contestação" de valores com filmes
exatamente iguais a esse: Tempestade de neve, Felicidade.
Agora, Beleza americana, que recebe, de uma hora para outra, notoriedade
e faz com que o processo de escolha, classificação e julgamento do Oscar
permaneça um mistério para mim.
De todo esse rebuliço criado, pode-se tirar uma conclusão: Não vai ser fazendo
filmes convencionais, com falsa ideologia e falso avanço estético que os
Estados Unidos vão sair da lama.
João Mors Cabral
SANTO FORTE NÃO FAZ MILAGRE
Tentarei aqui fazer uma crítica diferente. Na verdade, quase uma
reportagem. O alvo é Santo Forte, documentário de Eduardo
Coutinho sobre umbanda e espiritismo não-kardecista. Antes de mais
nada, gostaria de dizer que gostei do filme. Primeiro, por ele ter me revelado
assuntos ocultos sobre um tema em que sou leigo e que me interessa. Segundo,
por ter um tratamento humano com os entrevistados, utilizando para isto
a metalinguagem. E terceiro por eu simpatizar com Eduardo Coutinho desde
que vi Cabra Marcado Para Morrer, o que é um defeito meu,
pois um crítico deve manter um certo afastamento para analisar uma
obra. Ou não, sei lá. No entanto, um amigo meu, estrangeiro,
profissional experiente na área cinematográfica, não
gostou do filme e me mostrou argumentos bastante sólidos. Reproduzirei
aqui unm pouco da nossa conversa.
Meu amigo estava presente no conturbado Festival de Brasília e foi
um dos inconformados com a premiação. Por ter um grande conhecimento
em fotografia, achou unm ultraje Santo Forte ter ganho melhor filme. Para
ele, o documentário não era um filme, e sim "um vídeo
ruim filmado". Obviamente, aqui se abre uma polêmica.
Os defensores do famigerado Dogma 95 defendem a utilização
do vídeo no cinema. Porém, nos filmes de Lars Von Trier e
sua patota, o vídeo é utilizado para uma busca estética
provocadora; para se aproximar do documentário mesmo sendo uma ficção
(o que os torna mais interessantes), tudo numa urgência em fazer cinema
rápido, barato e contra as regras comerciais. Este não é
o caso de Santo Forte. Por que o filme ou o vídeo
de Coutinho passou no cinema e não num especial numa TV a cabo? Qual
a razão de sua existência cinematográfica? Vi uma vez
um vídeo de Coutinho sobre um depósito de lixo, Boca de
Lixo, que é melhor que Santo Forte.
Outro protesto de meu amigo foi contra a premiação do documentário
em melhor montagem e melhor roteiro. A este segundo prêmio, a discordância
é válida. "É um documentário! Tudo dependendo
do acaso, do que a pessoa irá declarar! Como pode ter melhor roteiro?",
disse. Quanto à montagem, embora eu admita que existam no filme achados
poéticos, pode-se relativizar o prêmio se lembrarmos qu Santo
Forte provavelmente foi todo editado em vídeo e depois kinescopado.
Portanto, não houve montagem cinematográfica e sim edição.
Boa edição? Ele não achou.
Mas não há nada que salve em Santo Forte? "Na
verdade, os depoimentos é que são emocionantes", meu
amigo respondeu. E ele está certo. O filme é muito dependente
das experiências narradas, o que relativiza bastante os méritos
do cineasta. Enquanto este ganhou prêmios, os entrevistados ganharam
R$30. Quem j;á fez um fimle ou vídeo lidando diretamente com
o povo como eu já fiz sabe que é relativamente
fácil extrair, no mínimo, depoimentos bastante autênticos
e sinceros. Outro aspecto que me fez falta: ver um ritual de umabnda ou
alguém recebendo santo. Filmes de ficção como O
Amuleto de Ogum e até Orfeu do Carnaval foram mais completos
nesse sentido.
Por fim, meu amigo sentenciou: "Trata-se de um filme paternalista,
onde o diretor, que entende nada do assunto, passa a mão na cabeça
do povo". O polemista me garantiu que estava certo, tendo por base
sua visão: "Eu, como estrangeiro, sinto isto." Com esta
crítica eu não concordei. Para mim, muito piores são
as Reginas Casés e Pedro Luíses da vida. Mas, diante de tal
argumento, calei-me. E o objetivo desse texto, por incrível que pareça,
não foi detnoar Santo Forte. Foi pôr em cheque algumas
questões, como o uso do vídeo, as premiações
no Brasil e o próprio documentário em si. Expus as razões
do meu amigo. Cabe a cada um agora refletir.
Christian Caselli
|
|