
Mesmo hoje esquecida, a polêmica em torno de Os
Cafajestes foi das maiores da história do cinema brasileiro.
Primeiramente pelo conteúdo polêmico do filme e pela audácia
de colocar um nu frontal nas telas brasileiras. Logo depois, porque
o produtor e ator Jece Valadão achou por bem retocar o filme
na montagem, causando a celeuma que o leitor poderá ver abaixo.
O Metropolitano, palco de toda essa briga, era o órgão
oficial da UMES (União Metropolitana dos Estudantes), e na época
centralizou diversas das discussões sobre cinema brasileiro e
sobre o papel do Cinema Novo. Nele escreviam, entre outros, David Neves
e Carlos Diegues. (Ruy Gardnier agradecimentos ao CPDoc da CInemateca
do MAM)
* * *
"Os Cafajestes" estreou. Foi
recorde de bilheteria, já no primeiro e segundo dia. O público
foi assistir. Uns gostaram outros não. Uns aplaudiram outros
vaiaram. É o direito do público. Mas eis que surge, então,
abrindo o jogo, e mostra a sua pinta de vilão, Jecê Valadão,
o produtor, querendo impor uma nova norma ao cinema brasileiro: a tesoura
é nossa (nossa, deles, produtores), e vamos usá-la. E
não é que usou mesmo! Cortou "Os Cafajestes", sem autorização
de Rui Guerra, o diretor. Mas eis que surgem novos personagens. Dezenas,
centenas. O cinema novo em peso protestou. Poetas, escritores, intelectuais,
técnicos, gente de todos os setores artísticos vieram
a público proclamar o seu protesto. Então, Valadão,
o Jecê, está sentindo toda a força do seu drama.
Sozinho, sem ninguém a seu lado. Talvez não tenha feito
por mal. Pensou tanto na bilheteria, que as cifras subiram-lhe à
cabeça. Ou então é possível que ainda esteja
sob os efeitos dos personagens que interpreta neste filme: um cafajeste.
Neste caso, também a culpa não lhe cabe. É por
tudo isso que os protestos estão chegando. Abaixo o corte!!!
Abaixo a nova norma!!!
Norma, só a Benguel!!!
(reportagem na pág. 6)
cafajestada
contra
OS CAFAJESTES
"Os Cafajestes", filme do
novato Rui Guerra veio, quinta-feira passada, para as telas desta cidade.
Constituiu-se, até agora, em recorde absoluto de bilheteria e
vem gerando discussões acaloradas. Críticos, viram na
fita a mão de Louis Malle, Truffaut, Goddard, Resnais e Antonioni;
a bela Norma Benguel apareceu frente alguns como Brigitte ou Jeanne
Moureau; e Valadão não passou, para eles mesmos, de um
Michel (À Bout de Souffle) sem o ímpeto anarquista.
E não foi só.
Freiras do Colégio Sion proibiram suas alunas de assistirem a
fita, por considerá-la imoral, e a Associação dos
Pais de Família deu a bronca na Censura por deixar intacta "uma
fita perniciosa e pornográfica".
A vida é a imitação
da arte, professava o velho Wilde, e como possuía razão!
O filme, depois de passar intacto pela Censura — agora livre dos acendinos
— foi picotado por seu produtor, Jece Valadão, atendendo, não
a problemas morais — pois esses ele não os possui — mas a questões
meramente comerciais. Estava tão imbuído, segundo cremos,
de suas atividades frente à câmera que resolveu prolongar
a cafajestada.
Revelando-se, assim, um bom
ator e um péssimo mecenas, Jece vai ser processado por Rui Guerra.
Por entender que a mutilação de "Os Cafajestes", com a
de qualquer obra de arte constitui ato criminoso, "O Metropolitano"
resolveu trazer aos seus leitores o depoimento de artistas e intelectuais
em geral, bem como o manifesto redigido e assinado por eles.
reportagem de Fernando Duarte
e Leopoldo Serran
Manifesto em defesa dos
direitos do autor
A cultura brasileira começa
a transpor as barreiras tradicionais dos preconceitos, das formas medievais
de julgamento de uma obra de arte. Na própria base deste crescimento
para a maturidade, uma consciência de autor, uma noção
de responsabilidade cultural, se estabelece como uma das principais
características dos novos artistas brasileiros. Esta noção
de autoria, esta superação do simplesmente artesanal,
implica num compromisso de fato entre o artista e o espectador de sua
obra. O que significa um compromisso vital do artista no próprio
ato da criação.
Como não podia deixar
de ser, o cinema, principalmente o cinema novo de nosso país,
inicia sua fase de adolescência tendo como um de seus postulados
fundamentais esta responsabilidade, esta consciência de autor
por parte de cada cineasta.
"Os Cafajestes", primeira
obra do jovem diretor Rui Guerra — veio a público, sem cortes,
integral, como foi concebido e realizado por seu autor. Qual não
foi a surpresa de todos ao saber que, em meio à semana de sua
exibição, por ordens de seu produtor a fita era cortada
em diversos de seus trechos por razões até aqui obscuras.
Não nos cabe discutir
o valor do filme ou as razões que levaram seu produtor a este
procedimento. Não nos interessa discutir se "Os Cafajestes" é
um mau ou um bom filme, se suas seqü6encias são longas ou
imorais. Cabe-nos antes de tudo, levantarmos a voz em defesa de um direito
inalienável e intocável de criação, o direito
de um autor comunicar ao público aquilo que quiser, como quiser.
Procedente que se abre com
o desrespeito a este direito, é um atentado à própria
cultura brasileira e um engodo, um crime, que se impõe ao espectador.
Mau ou bom, bonito ou feito, certo ou errado, "Os Cafajestes" tem um
autor, e este é o único com direito a alterar sua obra.
Se assim não fosse os "marchands de thaleaux" teriam todo direito
a acrescentar novas tintas e cores às telas de nossos pintores;
nossos editores de cortar capítulos inteiros dos escritores;
os teatrólogos veriam suas peças modificadas pelos empresários,
e assim por diante.
Por tudo isso, nós,
abaixo assinados, viemos a público decididos a protestar diante
deste crime contra o direito do autor e denunciar este precedente como
mortal à nascente cultura brasileira e, mais especificamente,
ao cinema novo brasileiro.
ruy guerra:
corte é burrice do produtor
Para Rui Guerra o mais importante
no caso é a falta de direito do produtor em cortar a fita. Existe
um direito moral do autor, e este é inalienável.
Guerra ainda não viu
o filme cortado, mas está informado sobre ele. Os cortes foram
feitos em duas cenas. O primeiro no plano circular da "curra", de Norma
Benguel, desastroso no sentido da linguagem da linguagem cinematográfica,
pois tira todo o sentido do plano. O segundo, tirando todo o plano final,
é o aniquilamento do personagem e o seu desligamento do mundo
exterior; e deu, inclusive, um simbolismo que não era intenção
do diretor.
O personagem nesta cena, afirma
Rui Guerra, é visto caminhando em primeiro plano e deixando tudo
para trás, sem nenhuma perspectiva de vida. Com o corte, mutilado
o plano final, o personagem fica, ao término do filme, de costas
para a câmera caminhando por uma longa estrada, representação
clássica da esperança no futuro.
Mas parece, terminou, que
o produtor é suficientemente burro para não entender isto.
miguel o roteirista:
corte é mais que cafajestada
Miguel Torres, responsável
pelo roteiro e argumento de "Os Cafajestes" afirmou não estar
em jogo a autoria do filme, mas sim a integridade da obra, pois aberto
o precedente daria vazão a um vendedor de quadros botar um bigode
na Gioconda. O corte não é, pois, uma cafajestada, é
mais que uma cafajestada.
lígia pape lamenta
valadão
"O corte não tem razão
de ser, pois ninguém tem o direito de modificar, arbitrariamente,
uma obra de arte. Pode-se não concordar com a orientação
estética do diretor, mas a sua idéia tem de ser respeitada
e a sua obra mantida intacta. Se não for tomada uma posição
energética, no caso do filme de Rui Guerra, que coíba
tal abuso, se permanecermos calados diante da mutilação
de "Os Cafajestes", quem garantirá, no futuro, ao diretor brasileiro,
que o seu filme não será cortado pelo produtor? Lamento
profundamente que Jece Valadão, que é, sem dúvida,
um elemento atuante do movimento de renovação o cinema
brasileiro, tenha agido dessa forma".
São palavras de Lígia
Pape, gravadora e figura de proa das artes plásticas brasileiras.
vão gogo contra
também
Segundo o humorista Millor Fernandes, o diretor Rui Guerra deve agir
violentamente contra os cortes efetuados. Acha que o produtor Jece Valadão
não tem o direito de cortar um fotograma sequer, sem o consentimento
do autor do filme. Mesmo que futuramente, o produtor seja considerado
co-autor, como querem alguns juristas, nem assim ele terá o direito
de efetuar cortes à revelia do diretor.
ely azeredo:
pata de asno em obra de arte
Acima de certo nível
qualitativo, ao invadir a área autoral, os filmes devem ser estudados
até em seus "defeitos", que adquirem importância como expressão
de um universo pessoal. À primeira vista, "Os Cafajestes" irritou
as camadas defensivas do meu Ego e ofendeu minha concepção
do "timing" — até a palavra, como vêem, é inglesa...
Na segunda visão, comecei a sentir que há um "tempo" coerente
com toda a concepção de "Os Cafajestes". O cinema novo
deve procurar, em sua busca de uma forma brasileira, as articulações
de "tempo" que expressam melhor o homem carioca, o homem paulistano,
o homem acreano... Não podemos repetir a forma cinematográfica
americana,. assim como não seria sensato fazer fitas brasileiras
com o ritmo lento do cinema japonês "clássico".
Os cortes foram efetuados
por iniciativa dos produtores com objetivo de tornar o filme mais "acessível"
para o público. Ora, o grande público não gosta
do filme, que não foi feito para ser gostado, mas para ser sentido.
A maioria dos espectadores (quase todos) não sentem "Os Cafajestes"
porque não estão em condições de suportar
no plano da experiência vital uma obra rebelde a todos os "macetes"
formais de Hollywood, Cinecittá et caterva. Os cortes, portanto,
não cumprirão um objetivo comercial.
São gratuitos os cortes.
Ridículo. O produtor Jece Valadão põe-se de cócoras
em um momento de euforia, de cabeça erguida, para o tão
conspurcado cinema nacional. Os srs. Watson, Richers e Severiano Ribeiro
(produtores do quanto-pior-melhor) são coisas do passado. Agora,
depois de Rui Guerra, nós sabemos que podemos ousar tudo. Naturalmente,
é preciso talento. Mais ninguém tem mais pretexto para
servir de capacho ao sr. Lívio Bruni e fazer um "Rio à
Noite", WC em lata, sem desodorante.
Quanto ao affaire "Os Cafajestes"
naturalmente não podemos perder a oportunidade de partir dele
para a criação de uma lei que mantenha longe das patas
dos asnos as obras de um legítimo artista como Guerra.
c. mello e souza
não gostou, mas desaprova corte
Cortar um filme sem a autorização
ou conhecimento do diretor, é uma violência e um crime.
Quem não cria, quem não pode criar, não pode à
natureza do filme, quem o executa demonstra um total desrespeito e uma
imperdoável insensibilidade para tratar de assuntos que se relacionem
com arte e expressão. Este é mais um exemplo da pré-história
do nosso cinema, da pré-história de nossa cultura. O sr.
Rui Guerra, a quem critiquei nos termos duros que me ditou a sinceridade,
realizou uma obra una, que deve ser admirada ou condenada em seu conjunto.
Quem não cria, quem
não pode criar, não pode também avaliar a correção
de uma obra criada. Não pode, principalmente, deformar essa obra
criada. Se os produtores de "Os Cafajestes" não estão
satisfeitos com o sucesso comercial do filme, que o retirem de cartaz.
Esta seria uma atitude digna. O que é indigno é tentar
remendar, para satisfazer as exigências de um público desesperado
e aviltado pelas "chanchadas", um filme que, para mim, tem o mérito
de insurgir-se contra uma mentalidade criada pelos próprios produtores.
Se há alguma coisa a cortar no cinema brasileiro, é o
produtor desse tipo, que não pode mesmo ter sensibilidade nem
para apreciar, nem para criticar um filme. Quanto mais para cortar-lhe
possíveis imperfeições artesanais. Os produtores
de "Os Cafajestes", como todos os seus iguais no cinema brasileiro,
cometeram apenas mais um dos crimes habituais contra a inteligência
e a sensibilidade.
david e. neves:
concessão é conformismo
Nunca tivemos, no Brasil,
um filme tão polêmico. Mesmo a discussão que cercou
Rio 40 Graus, de Nélson Pereira dos Santos, não alcançou
repercussão tão vibrante e espetacular. Violentamente
combatido, Os Cafajestes é um filme predestinado a significar,
para nós brasileiros, mais do que as interpretações
superficiais do impacto que trouxe e que ainda mantém na atmosfera
carioca.
Já se disse e já
se negou muita coisa a respeito da fita. Falou-se, inclusive, que se
empregaram métodos desonestos de publicidade, enganando o povo,
induzindo-o a ver coisas que não passavam de ampliações
ilícitas do sistema publicitário.
Protesto veementemente contra
o rancor súbito e mal fundamentado que nasceu, no espectador
carioca nesta perplexidade a que se submete ao se deparar com um exemplo
típico de ousadia (em posição ao brasileiríssimo
complexo de inferioridade) e de auto-confiança. Tudo o que foi
anunciado está sendo exibido nos cinemas do Rio. Mas, é
preciso que se acrescente, quem o apresenta é um homem que se
dispõe a fazer do cinema um instrumento de transmissão
de suas idéias mais íntimas sobre os homens e as coisas.
Uma espécie de telégrafo visual. Cabe aos interessados
aprender o Código.
O filme foi, na verdade, um
pouco cruel com o espectador, pois não lhe fez concessão
alguma. Mas, a culpa só pode ser dirigida a uma entidade ainda
nebulosa e que apenas começa a tomar consistência, o cinema
nacional, cuja única função, até hoje
foi a de levar o público para uma região deplorável
onde os conceitos têm valor diametralmente oposto à realidade.
É por isso que um grupo ligado à produção
da fita resolveu, pela tesoura, "facilitar" a sua compreensão,
dar mais uma oportunidade aos ociosos.
Contra isso levanto novo grito
de protesto. Na situação revolucionária em que
nos encontramos, qualquer concessão significa conformismo
e retorno à estagnação anterior. Não há
argumentos que invalidem afronta semelhante, mesmo os de ordem estética.
Os cortes em Os Cafajestes indicam pusilanimidade. E, neste momento
decisivo, significam recuo e retraimento. A produção deve
viver sob o espírito de luta que o público, inimigo em
potencial, exige. As rendições (em todos os setores da
vida) deixam sempre marcas inapagáveis.
O Metropolitano, 14/04/1962