O
Divã do Pobre
Psicanálise e
cinema
Os psicanalistas sempre desconfiaram
um pouco do cinema: de preferência voltaram suas atenções
a outras formas de expressão. O inverso, no entanto, não
é verdade; os apelos do cinema à psicanálise foram
inúmeros, a começar pela proposta de Mister Goldwin a
Freud: 100.000 dólares para tratar dos amores célebres!
Esta dissimetria não se deve somente a questões de responsabilidade;
está ligada mais fundamentalmente ao fato de que a psicanálise
nada pode compreender dos processos inconscientes postos em ação
pelo cinema. Ela já tentou compreender as analogias formais entre
o sonho e o filme - para René Laforgue, tratar-se-ia de uma espécie
de sonho coletivo, para Lebovici, de um sonho para fazer sonhar. Ela
tentou assimilar a sintagmática fílmica ao processo primário,
mas jamais se aproximou - e não foi sem motivos - do que faz
a especificidade do cinema: uma atividade de modelação
do imaginário social, irredutível aos modelos familiaristas
e edipianos, mesmo quando o cinema coloca-se deliberadamente ao seu
serviço. Por mais que atualmente a psicanálise se empanturre
de lingüística e de matemática, ela continua a repisar
as mesmas generalidades sobre o indivíduo e a família,
enquanto que o cinema está ligado ao conjunto do campo social
e à história. Algo de importante se passa no cinema; ele
é o local de investimentos de cargas libidinais fantásticas,
por exemplo, daquelas que se estabelecem ao redor destas espécies
de complexos que constituem o faroeste racista, o nazismo e a resistência,
o american way of life, etc. E é preciso admitir que Sófocles,
em tudo isto, não tem mais quase nada a ver! O cinema transformou-se
numa gigantesca máquina de modelar a libido social, enquanto
que a psicanálise nunca foi mais que um pequeno artesanato reservado
a elites seletas.
Vamos ao cinema para suspender,
por um certo tempo, os modos de comunicação habituais.
O conjunto de elementos que constituem esta situação concorre
para esta suspensão. Qualquer que seja o caráter alienante
do conteúdo de um filme ou de sua forma de expressão,
o que ele visa fundamentalmente é a produção de
um certo tipo de comportamento que, por falta de nome melhor, chamarei
aqui de performance cinematográfica.1 É
porque o cinema é capaz de mobilizar a libido sobre este tipo
de performance que ele pode colocar-se a serviço daquilo que
Mikel Dufrenne chamou de "inconsciente-a-domicílio"2.
Consideradas sob o ângulo da repressão inconsciente, a
performance cinematográfica e a performance psicanalítica
(o "ato analítico") talvez mereçam ser comparados. A psicanálise
da belle époque deixou crer por muito tempo que se propunha
a liberar as pulsões dandolhes a palavra; na verdade, ela só
aceitou afrouxar as tenazes do discurso dominante na medida direta em
que pretendia dotar disciplinar, adaptar estas pulsões às
normas de um certo tipo de sociedade, melhor que jamais o havia feito
a repressão ordinária. Afinal de contas, o discurso que
se divulga nas sessões de análise não é
muito mais "liberado" que aquele que se experimenta nas sessões
de cinema. A pretensa liberdade de associação de idéias
não passa de um logro que mascara uma programação,
uma modelação secreta dos enunciados. Sobre a cena analítica,
assim como sobre a tela, entende-se que nenhuma produção
semiótica de desejo deverá ter incidência real.
Tanto o cineminha da análise quanto a psicanálise de massa
do cinema prescrevem as passagens à ação, os acting-out.
Os psicanalistas, e em certa medida os cineastas, gostariam de ser considerados
como criaturas fora do tempo e do espaço, como criadores puros:
neutros, apolíticos, irresponsáveis... E, em certo sentido,
talvez tenham razão, já que de fato eles não têm
realmente domínio sobre os processos de modelação
dos quais são os agentes. O gabarito de leitura psicanalítica
pertence hoje tanto ao analista quanto ao analisado. Ele gruda à
pele de qualquer um - "Olhe, você fez um lapso" - ele se integra
às estratégias intersubjetivas e mesmo aos códigos
perceptivos: preferem-se interpretações simbolicas como
ameaças, "vêem-se" falos, retornos ao seio materno, etc.
A interpretação agora funciona tão naturalmente
que, para um psicanalista prevenido, a melhor e mais segura delas ainda
é o silêncio; um silêncio sistematicamente batizado
de pura escuta analítica. "Sobre a tela de meu silêncio,
teus anunciados assumirão seu próprio relevo". Cada qual
com seu cinema... Na verdade, o vazio da escuta responde aqui a um desejo
esvaziado de qualquer conteúdo, a um desejo de nada, a uma impotência
radical, e nestas condições, não é de espantar
que o complexo de castração se tenha transformado no objetivo
último da cura, e mesmo em sua referência constante, na
pontuação de cada uma de suas seqüências, no
cursor que traz eternamente o desejo de volta a seu grau zero. O psicanalista,
assim como o cineasta, é levado por seu objeto. O que se espera
de um e de outro é a confecção de um certo tipo
de droga que, apesar de tecnologicamente mais sofisticada que os "pitos"
tradicionais, não deixa de ter por função transformar
o modo de subjetivação dos que a ela são afeitos:
capta-se a energia de desejo para retorná-la contra si própria,
para anestesiá-la, para cortá-la do mundo exterior, de
forma que ela cesse de ameaçar a organização e
os valores do sistema social dominante. Mas o que gostaríamos
de mostrar é que estas drogas não são da mesma
natureza; globalmente, visam os mesmos objetivos, mas a micropolítica
do desejo que elas põem em ação, as combinações
semióticas sobre as quais elas se apoiam, são totalmente
diferentes.
Talvez se imagine que estas
críticas visam um certo tipo de psicanálise e que, na
verdade, não digam respeito à corrente estruturalista,
na medida em que esta não mais considera que a interpretação
deva deprender-se de paradigmas de conteúdo - como era o caso
com a teoria clássica dos complexos parentais - mas sim de um
jogo de universais significantes, independentemente das significações
que eles possam engendrar. Mas será que podemos realmente crer
na psicanálise estruturalista quando ela pretende ter renunciado
a modelar e tornar traduzíveis as produções de
desejo? O inconsciente dos freudianos ortodoxos se organizava como um
complexo cristalizando a libido sobra uma série de elementos
heterogêneos: biológicos, familiares, sociais, éticos,
etc. O complexo de Édipo, por exemplo, à parte seus componentes
traumáticos reais ou imaginários, baseava-se na divisão
de sexos e na de grupos etários. Considerava-se tratar-se aí
de bases objetivas a partir das quais a libido deveria se exprimir e
se finalizar. Ainda hoje, uma interrogação política
sobre estas "evidências" poderá parecer a muitos como completamente
fora de propósito. No entanto, todo mundo conhece inúmeras
situações em que a líbido recusa estas "evidências",
contorna a divisão de sexos, ignora as interdições
ligadas à separação por grupos etários,
confunde as pessoas como que por prazer, compõe a seu gosto as
constelações de traços faciais às quais
se fixa, e até mesmo situações em que, sistematicamente,
tende a passar ao largo das oposições exclusivas entre
o sujeito e o objeto, e entre o Ego e o outro. Devemos considerar, por
definição, que estas não passam de situações
perversas, marginais ou patológicas, que precisam ser interpretadas
e adaptadas com referência às boas "normas"? É verdade
que em sua origem, o estruturalismo lacaniano ergueu-se contra um tal
realismo ingênuo, em particular nas questões que giravam
em torno do narcisismo e da psicose, e que ele entendia romper radicalmente
com uma prática da cura inteiramente centrada sobre a remodelação
do Ego. Mas, ao desneutralizar o inconsciente, ao liberar seus objetos
de uma psicogênese muito restrita, ao "estruturá-los como
uma linguagem",3 ele não a levou também
a romper suas amarras personológicas e a se abrir ao campo social,
aos fluxos cósmicos e semióticos de qualquer natureza.
Não se remetem mais as produções de desejo a uma
bateria de complexos em que tudo se encaixa, mas continua-se a interpretar
cada uma de suas conexões a partir de uma única e mesma
lógica do significante cujas chaves seriam o falo e a castração.
Renunciou-se à mecânica sumária das interpretações
de conteúdo ("o guarda-chuva quer dizer... ") e das fases de
desenvolvimento (os famosos "retornos" à fase anal, etc.), não
se trata mais do pai e da mãe, fala-se agora no nome do pai,
no grande Outro, mas continua-se sempre distante da micropolítica
do desejo sobre a qual se baseia, por exemplo, a diferenciação
dos sexos, ou a alienação das crianças nos guetos
do familiarismo. As lutas de desejo não poderiam ser cincunscritas
somente ao campo do significante mesmo no caso de "pura" neurose significante,
como a neurose obsessiva - elas sempre extravasam para os campos somáticos,
sociais, econômicos, etc. E, a menos que se considere que o significante
encontra-se em tudo e em qualquer coisa, temos que admitir que restringimos
singularmente o papel do inconsciente a ponto de considerá-lo
apenas sob o ângulo dos encadeamentos de significantes que ele
põe em ação. "O inconsciente se estrutura como
uma linguagem". Claro! Mas por quem? Pela família, pela escola,
pela caserna, pela fábrica, pelo cinema e, nos casos especiais,
pela psiquiatria e pela psicanálise. Quando o submetemos, quando
chegamos a esmagar a "polivocidade" de seus modos de expressão
semióticos, quando o encadeamos a um certo tipo de máquina
semiológica, então sim, o inconsciente acaba por se estruturar
como uma limguagem! E se torna bem comportadinho. E põe-se a
falar a língua do sistema dominante. Não a língua
cotidiana, mas uma língua especial, sublimada, psicanalitizada.
Não somente ele resignou-se com sua alienação nos
encadeamentos significantes, como ainda pelos cada vez mais significantes!
Ele não quer mais nada com o resto do mundo e com os outros modos
de semiotização. Qualquer problema um pouco mais atormentador
encontrará nele, se não a sua solução, ao
menos uma tranqüilizante colocação em suspenso nos
jogos do significante. O que resta, por exemplo, neste nível
do significante, da alienação milenar das mulheres pelos
homens? Para a língua dos lingüistas, vestígios inocentes,
como a inocente oposição do masculino e do feminino; e
para a dos psicanalistas, miragens ao redor da presença/ausência
do falo. A cada tipo de performance lingüística, a cada
cotação do "grau de gramaticalidade" de um enunciado,
corresponde uma certa situação de poder. A estrutura do
significante jamais é completamente redutível a uma pura
lógica matemática, ela liga-se sempre às diversas
máquinas sociais repressivas. Uma teoria dos universais, tanto
na lingüística como na economia, na antropologia ou na psicanálise,
só conseguirá obstaculizar uma exploração
real do inconsciente, vale dizer, das constelações semióticas
de qualquer natureza, das conexões de fluxos de qualquer natureza,
das relações "de força e das restrições
de qualquer natureza, que constituem as combinações de
desejo.
A psicanálise estruturalista
certamente não poderá nos ensinar muito mais sobre os
mecanismos inconscientes que são postos em ação
pelo cinema, ao nível de sua organização sintagmática,
do que a psicanálise ortodoxa ao nível de seus conteúdos
semânticos. Mas talvez o próprio cinema pudesse ajudar-nos
a compreender a pragmática dos investimentos inconscientes no
campo social. Com efeito, o inconsciente, no cinema, não se manifesta
da mesma forma que sobre o divã: ele escapa parcialmente à
ditadura do significante, ele não é redutível a
um fato de língua, ele não respeita mais (como continua
a fazê-lo a transferência psicanalítica), a dicotomia
clássica da comunicação entre o locutor e o ouvinte.
(Aliás seria necessário colocarmos a questão de
saber se esta última é simplesmente posta entre parêntesis,
ou se nesta ocasião não se torna conveniente o reexame
das relações entre o discurso e a comunicação.
Talvez, afinal de contas, a comunicação entre um locutor
e um ouvinte discerníveis não seja mais que um caso particular,
um caso limite, do exercício do discurso. Talvez os efeitos de
dessubjetivação e de desindividualização
da enunciação que são produzidos pelo cinema ou
por situações similares (drogas, sonhos, paixões,
criações, delírios, etc.) representem apenas casos
excepcionais com relação ao caso geral que se supõe
ser o da comunicação intersubjetiva "normal" e da consciência
"racional" da relação sujeito-objeto. Aqui é a
própria idéia de um sujeito transcendental da enunciação
que deveria ser posta em questão e, correlativamente, a separação
entre o discurso e a língua ou a dependência dos diversos
modos de performances semióticas a uma pretensa competência
semiológica universal. O sujeito consciente de si mesmo, "mestre
de si como do univeirso", não deveria mais ser considerado como
um mero caso particular - o de uma espécie de loucura normal.
A ilusão consiste em crer que existe um sujeito, um sujeito único
e autônomo correspondendo a um indivíduo, quando o que
está em jogo é sempre uma multidão de modos de
subjetivação e de semiotização. É
claro, não é por isto que o cinema escapa da contaminação
pelas significações do poder, longe disto! Mas as coisas
com ele não se passam da mesma forma que com a psicanálise
ou com as técnicas artísticas bem policiadas. O inconsciente
no cinema manifesta-se a partir de combinações semióticas
irredutíveis a uma concatenação sintagmática
que o disciplinaria mecanicamente, que o estruturaria segundo planos
[de expressão e de conteúdo) rigorosamente formalizados.
O cinema é feito de elos semióticos assignificantes, de
intensidades, de movimento, de multipliicidade, que tendem fundamentalmente
a escapar ao esquadrinhamento significante, e que se rodeiam apenas
num segundo momento, pela sintagmática fílmica que lhes
fixa gêneros, que cristaliza sobre eles personagens e estereótipos
comportamentais de maneira a homogeneizá-los com os campos semânticos
dominantes.4 Este excesso da expressão
sobre o conteúdo marca certamente o limite de uma comparação
possível entre a repressão do inconsiciente no cinema
e na psicanálise. Um e outro seguem fundamentalmente a mesma
política, mas tanto o que está em jogo, quanto os meios,
são distintos. A clientela do psicanalista se presta por si própria
à empresa de redução significante, enquanto que
o cinema deverá, por um lado, manter-se em permanente escuta
das mutações do imaginário social, e por outro,
mobilizar toda uma indústria, toda uma série de poderes
e de censuras, para atingir a proliferação inconsciente
que ele ameaça detonar. A linguagem no cinema não funciona
da mesma maneira que na psicanálise; ela não faz a lei,
ela é apenas mais um dentre outros meios, um instrumento dentro
de uma orquestração semiótica complexa. Os componentes
semióticos do filme se resvalam uns aos outros, sem jamais se
fixarem e se estabilizarem, por exemplo, numa sintaxe profunda dos conteúdos
latentes e dos sistemas transformacionais que chegariam na superfície,
a conteúdos manifestos. Significações racionais,
emotivas, sexuais - eu preferiria dizer intensidades - são constantemente
veiculadas no cinema pelos "traços de matéria de expressão"
heterogêneos (retomando a Christian Metz uma fórmula que
ele próprio forjou a partir de Hjelmslev). 'Os códigos
se emaranham sem que nenhum jamais consiga a preeminência sobre
os demais, sem constituir "substância" significante; passa-se,
num vaivém contínuo, de códigos perceptivos a códigos
denotativos, musicais, conotativos, retóricos, tecnológicos,
econômicos; sociológicos, etc.5 Umberto
Eco já havia notado que o cinema não se submete a um sistema
de dupla articulação, e isto o havia conduzido até
a tentar encontrar-lhe uma terceira. Mas sem dúvida é
preferível seguir Metz que considera que o cinema escapa a todo
sistema de dupla articulação, e eu acrescentaria por minha
vez, a todo sistema elementar de codificação significativa.
As significações no cinema não se codificam diretamente
numa máquina que entrecruza eixos sintagmáticos e eixos
paradigmáticos; mas derivam sempre, num segundo momento, de restrições
exteriores que as modelam. Se o cinema mudo, por exemplo, pode exprimir
de uma maneira muito mais abrupta e autêntica do que o falado,
as intensidades de desejo em suas relações com o campo
social, não é porque ele fosse menos rico no plano da
expressão, mas sim porque o roteiro significante ainda não
havia tomado posse da imagem, e que, nestas condições,
o capitalismo ainda não havia tirado dele todo o proveito que
poderia. As invenções sucessivas do cinema falado, da
cor, da televisão, etc., na medida em que enriqueciam as possibilidades
de expressão do desejo, levaram o poder a reforçar seu
controle sobre o cinema, e mesmo a servir-se dele como instrumento privilegiado.
É interessante, sob este ponto de vista, constatar a que ponto
a televisão não somente não absorveu o cinema,
como ainda foi obrigada a sujeitar-se à fórmula do filme,
cuja potência, por conseqüência, nunca foi tão
grande.
O cinema comercial portanto,
não é simplesmente uma droga a baixo preço. Sua
ação inconsciente é profunda, talvez mais que a
de qualquer meio de expressão. A seu lado, a psicanálise
pouco representa! O efeito de dessubjetivação na análise
não consegue abolir, como o faz parcialmente o cinema, a individualização
personológica da enunciação. Na psicanálise,
falamos o discurso da análise; dizemos a alguém o que
acreditamos que ele gostaria de ouvir, nos alienamos buscando-nos fazer
valer frente a ele. No cinema, não temos mais a palavra, fala-se
em seu lugar; dirigem-nos o discurso que a indústria cinematográfica
imagina que gostaríamos de ouvir;6 uma
máquina nos trata como uma máquina, e o essencial não
é o que ela nos diz, mas esta espécie de vertigem de abolição
que nos provoca o fato de assim sermos maquinados. Como as pessoas estão
desagregadas, e como as coisas se passam sem testemunho, não
temos vergonha de nos abandonarmos assim. O importante aqui, mais uma
vez, não é a semântica ou a sintaxe do filme, mas
as componentes pragmáticas da performance cinematográfica.
Pagamos por um lugar no divã para nos fazermos invadir pela presença
silenciosa de um outro - se possível alguém distinto,
alguém de classe nitidamente superior à nossa - enquanto
que pagamos por um lugar no cinema para nos fazermos invadir por qualquer
pessoa, e para nos deixarmos levar em qualquer espécie de aventura,
em encontros em princípio sem amanhã. Em princípio!
Porque na verdade, a modelação que resulta desta vertigem
a baixo preço não se dá sem deixar vestígios:
o inconsciente, se revê habitado por índios, cowboys,
tiras, gangsters, belmondos e marilyn monroes...
É como o tabaco ou a cocaína, só se consegue dar-se
conta de seus efeitos se é que se consegue - quando já
se está complenamente viciado. E esta droga, hoje em dia, é
administrada em doses maciças às crianças, antes
mesmo do aprendizado da linguagem.
Mas a vantagem da cura psicanalítica
não é justamente evitar tal promiscuidade? A interpretação
e a transferência não tem por função crivar
e selecionar o bom do meu inconsciente? Não somos dirigidos,
não trabalhamos com um filtro? Infelizmente este filtro talvez
seja ainda mais alienante que qualquer psicanálise selvagem!
Ao sair do cinema, somos obrigados a acordar e a frear mais ou menos
nosso próprio cineminha - toda a realidade social se ocupa disto
- mas a sessão de psicanálise tornou-se interminável,
transborda sobre todo o resto da vida. Geralmente, a performance cinematográfica
é vivida como nada mais que uma simples distração,
enquanto que a cura analítica - e isto se aplica inclusive aos
neuróticos - tornou-se como que uma espécie de promoção
social: ela se faz acompanhar do sentimento de que estamos nos transformando
em algo como um especialista do inconsciente, um especialista freqüentemente
tão poluidor para o ambiente quanto os outros especialistas do
que quer que seja; como os do cinema, por exemplo! A alienação
pela psicanálise advém do fato de que o modo particular
de subjetivação que ela produz organiza-se ao redor de
um sujeito-para-um-outro, um sujeito personológico, superadaptado,
super-treinado nas práticas significantes do sistema. A projeção
cinematográfica, ao contrário, desterritorializa as coordenadas
perceptivas e dêicticas.7 Sem o suporte
da presença de um outro, a subjetivação tende a
tornar-se de tipo alucinatório, não se concentra mais
sobre um sujeito, atomiza-se numa multiplicidade de pólos, mesmo
quando se fixa num único personagem. Não se trata, propriamente
falando, nem mais do sujeito de enunciação, já
que o que é emitido por estes pólos não é
somente um discurso, mas são intensidades de toda natureza, constelações
de traços faciais, cristalizações de afetos...
Mas as papilas semióticas do inconsciente nem bem tiveram tempo
de ser incitadas, e já o filme ocupa-se em condicioná-las
à massa semiológica do sistema (exemplo: "o objeto de
amor, repitam comigo, sempre equivale a uma propriedade privada"). O
inconsciente, após ter sido posto a nu, torna-se como um território
ocupado. Até mesmo os antigos deuses do familiarismo são
sacudidos, eliminados ou assimilados. É que sua existência
estava ligada a um certo tipo de territorialização da
pessoa, e a uma certa semiologia da significação. As conjunções
semióticas do cinema passam através das pessoas e da linguagem
da comunicação "normal", a que usamos em família,
na escola ou no trabalho; ela desterritorializa todas as representações.
Mesmo quando parecem dar a palavra a um personagem "normal", a um homem,
a uma mulher ou a uma criança, trata-se sempre de uma reconstituição,
de um marionete, de um modelo fantasma, de um "invasor" que está
pronto a grudar-se ao inconsciente para tomar-lhe o controle. Não
levamos ao cinema, como o fazemos na psicanálise, nossas lembranças
da infância, nosso papai e nossa mamãe; antes, é
quando os reencontramos na saída que não podemos mais
nos impedir de aplicar-lhes as produções de inconsciente
cinematográfico. O teatrinho edipiano do familiarismo não
resiste às injeções destas cápsulas de narratividade
que constitui o filme. Todo mundo já viveu a experiência
do quanto o trabalho do filme pode se seguir diretamente no do sonho
- e, no que me tange, notei que a interação era mais forte
quanto pior eu tivesse achado o filme. Isto não quer dizer que
o cinema não seja, ele também, familiarista, edipiano
e reacionário; que não trabalhe na mesma direção
fundamental que a psicanálise; mas ele não é da
mesma maneira; ele não se contenta em assentar as produções
de desejo sobre os encadeamentos significantes; ele conduz uma psicanálise
de massa, ele busca adaptar as pessoas não mais aos modelos em
desuso, arcaicos, do freudismo, mas aos que se implicam pela produção
capitalista (ou socialista-burocrática). E isto, repitamos, mesmo
quando eles reconstituem os modelos dos bons velhos tempos da família
tradicional. Se os meios "analíticos" do cinema são mais
ricos, mais perigosos, porque mais fascinantes, que os da psicanálise,
imaginamos, em contrapartida, que também poderia abrir-se a outras
práticas. Um cinema de combate pode vir a existir, ao passo que
não vislumbramos, no atual estado de coisas, a possibilidade
de uma psicanálise revolucionária. Paradoxalmente, o inconsciente
psicanalítico, ou o inconsciente literário aliás
eles derivam um do outro - é sempre um inconsciente de segunda
mão. O discurso da análise constitui-se em torno dos mitos
analíticos: os mitos individuais devem se enquadrar nestes mitos-referência.
Os mitos do cinema não dispõem deste sistema meta-mito,
e a gama de meios semióticos que põem em ação
entra em conexão direta com os processos de semiotização
do espectador. Em uma palavra, a linguagem do cinema e dos media audiovisuais
é viva, enquanto que a da psicanálise, não fala
há tanto tempo quanto qualquer língua morta. Do cinema
podemos esperar o melhor e o pior, ao passo que da psicanálise
não se pode mais esperar grande coisa! Nas piores condições
comerciais, ainda se podem produzir bons filmes, filmes que modifiquem
as combinações de desejo, que destruam estereótipos,
que nos abram o futuro, enquanto que, já há muito tempo,
não existem mais boas sessões de psicanálise, nem
boas descobertas, nem bons livros psicanalíticos.
Félix Guattari
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1 Poderíamos falar
aqui de film viewing-acts por simetria aos speech-acts
estudados por J. Searle
2 "Oferecem-nos belas imagens,
mas para nos cevar: ao mesmo tempo que cremos nos estar regalando, absorvemos
a ideologia necessária à reprodução das
relações de produção. Nos dissimular a realidade
histórica, camuflam-na sob uma verossimilhança convencionada,
que não somente é tolerável, mas é fascinante;
de forma que não tenhamos nem mais a necessidade de sonhar, e
nem mesmo o direito, pois nossos sonhos poderiam ser não-conformistas.
Nos dão sonhos prontos que não perturbarão ninguém:
fantasmas sob medida, uma gentil fantasmagoria que nos põe em
dia com nosso inconsciente. Pois entende-se que é preciso dar-lhe
o devido, ao nosso inconsciente, desde que nos tornamos suficientemente
sabidos para reivindicá-lo e reivindicar por ele. O cinema, hoje
em dia, põe à nossa disposição um inconsciente
a domicílio perfeitamente ideologizado" (Mickel Dufrenne, in
Cinéma: théories, lectures, Klincksieck, 1973).
3 Com sua teoria do pequeno
objeto a, Lacan chegou a tratar os objetos parciais como entidades
lógico-matemáticas ("Existe um matema da psicanálise").
4 Seria necessário
retomar aqui a análise de Bettetini e de Casetti que distinguem
a noção de iconicidade e a de analogismo: a sintagmática
fílmica, de alguma maneira, "analogiza" os ícones, que
são veiculados pelo inconsciente. "La Sémiologie des moyens
de communication audio-visuels et le problème de l'analogie",
Cinéma: théories, lectures, Klincksieck, 1973)
5 Metz propõe um recenseamento
das matérias de expressão postas em ação
no filme:
- o tecido fônico da expressão que remete à linguagem
falada (e que poderíamos classificar entre as semiologias significantes);
- o tecido sonoro mas não fônico que remete à música
instrumental (semiologia assignificante);
- o tecido visual e colorido que remete à pintura (semiótica
mista, simbólica e assignificante);
- o tecido visual mas não colorido que remete à fotografia
em preto e branco (semiótica mista, simbólica e assignificante);
- os gestos e os movimentos do corpo humano, etc. (semiologia e simbólica).
Langage et cinéma, Paris, Larousse, 1972).
6 O psicanalista fica um pouco
na posição do espectador no cinema: assiste ao desenrolar
de uma montagem que se fabrica em sua intenção.
7 Com a televisão,
o efeito de desterritorialização parece atenuado, mas
talvez ele seja ainda mais sorrateiro: banhamo-nos num mínimo
de luz, a máquina está a nossa frente, como um amigável
interlocutor, está-se em família, vsita-se em carro de
luxo as profundezas abissais do inconsciente, e logo se passa à
publicidade e às notícias do dia. A agressão é,
de fato, ainda mais violenta que em outro meio, nos dobramos completamente
as coordenadas sociopolíticas, a um tipo de moderação,
sem o qual as sociedades industriais capitalistas não poderiam
mais funcionar. |