
O Garoto de Charles
Chaplin
Mário de Andrade falou sobre
The Kid, em Klaxon
Em setembro de 1922, Mário de
Andrade assinou um artigo para a revista modernista Klaxon sobre
o clássico The Kid. Ao refutar a poetisa Celina Arnauld,
Mario demonstrou, além de precisão e velocidade, um amor
incondicional pelo cinema de Chaplin. Percebemos intacto o estilo arrogante
que perpassou toda geração modernista, isto não
prejudicando a coerência e a escolha sagaz dos objetos. Chaplin
era de fato um objeto para Klaxon, casamento perfeito de lirismo
e comédia, do antigo com o moderno, do teatro com a máquina.
(O texto não está errado.
Mantivemos a ortografia do original, encontrada em edição
microfilmada da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A revisão
foi rigorosa e aí tudo é idêntico ao original. Com
exceção lamentável da parte em que indicamos (...),
que está danificada no microfilme. Quem puder completá-la,
e-mails please)
(Sem título. Acima do texto
está escrito apenas CINEMA)
O garoto por Charlie Chaplin
é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para
que sobre elle insista mais uma vez a irriquieta petulância de
Klaxon. Celina Arnauld, pelo último número fóra
de série da revista Action, commentando o film com bastante
clarividência. Denuncia-lhe dois senões: o sonho (...)
e a anedocta da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho.
Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Effectivamente
o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa
de "Point de Mire" criticar o sonho de Carlito. Eis como o
percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objectivado no film
choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas ás
Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos,
deveria simplesmente mostrar-nos ‘pierrots’ enfarinhados ou ainda outra
cousa e seu film conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins tem
os maiores poetas."
Felizmente não se trata d’um
máu poema. O sonho é justo uma das páginas mais
formidáveis de "O Garoto". Vejamos: Carlito é
o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretenções
ao amor e á elegancia. Tem uma instrução (seria
melhor dizer conhecimentos) superficial ou o que é peior desordenada
feita de retalhos colhidos aqui e além nas correrias de aventura.
É profundamente egoísta
como geralmente o são os pobre, mas pelo convivio diurna na desgraça
chega a amar o garoto como a filho. Além disso já demonstrara
sufficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua.
Num dado momento conseguem emfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida
é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o engeitado.
Chupado pela dor, Carlito vae sentar-se á porta da antiga moradia.
Cae nesse estado de sonolência que não é o somno
ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara
na vida, mais enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel,
que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos apparecem. A pobreza
inventiva de Carlito empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de
amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes
passados misturam-se ás felicidades presentes. Tem o filho ao
lado. Mas a briga com o boxista se repete e os policiais perseguem-no.
Carlito foge num vôo. Mas (e estaes lembrado do sonho de Descartes)
agita-se, perde o equilíbrio, cahe na calçada. E o sonho
repete o acidente: o policial atira e Carlito alado tomba. O garoto
saccode-o, chamando. É que na realidade um policial chegou. Encontra
o vagabundo adormecido e saccode-o para accorda-lo. Este é o
sonho que Celine Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu
ella penetrar a admirável perfeição psychologica
que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e
os sentimentos que possuia, no estado psychico em que estava, sonhar
"pierrots" enfarinhados ou minuetes de aeroplanos! Estes aeroplanos
imaginados pela adorável dadaísta é que viriam
forçar a intenção da modernidade em detrimento
da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria
que sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada
por um subconsciente sabio em coisas de sofrer ou de ridículo.
O sonho é o commentario mais perfeito que Carlito poderia construir
de sua pessoa cinematographica: não choca. Commove immensamente,
sorridentemente. E, considerado a parte, é um dos passoa mais
humanos de sua obra, é por certo o mais perfeito como psychologia
e originalidade.
Mario de Andrade