Lev Vladimirovich Kuleshov, um dos homens
mais influentes do cinema russo, fundou o VGIK, a escola (ou usina?)
soviética de cinema. Lá, com a estranha exceção
de Dziga Vertov, todos foram seus pupilos: Eisenstein, Parajanov, Kalotozov.
Tido como o primeiro teórico a buscar uma estética da
montagem (há controvérsias), é autor de Arte
do cinema, uma espécie de compilação das diversas
experiências por ele realizadas na escola e que conta com o prefácio
de um aluno ilustre, Pudóvkin. Somam-se a este livro diversos
artigos teóricos, dos quais publicaremos três como lembrança
pelos trinta anos de sua morte, dia 30 de março de 1970. Não
se espantem pelo tema, pois o cinema americano foi objeto de estudo
dos mais influentes para o cinema russo. A tradução em
português levou em conta, sobretudo, a lógica básica
dos textos e por isso, foi arbitrária ¾
para não dizer delirante ¾
em alguns pontos. Qualquer observação a respeito, por
obséquio, imeiols.
Texto em inglês por
Ronald Levaco em Kuleshov on film — Writings of Lev Kuleshov.
Americanitis (1922)
Desde 1914 até os dias
de hoje, qualquer um que freqüenta sistematicamente as salas de
cinema, vendo todos os filmes lançados pela Rússia bem
como pelos estúdios estrangeiros, qualquer um que notou quais
filmes que causaram a reação da audiência à
ação cinemática, concluiria o seguinte:
1. os filmes estrangeiros
têm maior apelo do que os filmes russos;
2. dos filmes estrangeiros,
todos os americanos e as "estórias de detetive" têm maior
apelo.
O público "sente" especialmente
os filmes americanos. Quando há uma manobra sagaz do herói,
uma perseguição desesperada, uma batalha audaciosa, ouvimos
tantos assovios, uivos, gritos efusivos e intensos que, mesmo para ver
melhor a cena eletrizante, os espectadores pulam da cadeira.
Tanto pessoas comuns quanto
os intelectuais são igualmente surpreendidos pelos americanitis
e detectivitis no cinema e isso explica o sucesso destes filmes,
sobretudo, pela extraordinária decadência e o "gosto" pobre
da juventude e do público do "terceiro balcão".
Inegavelmente, temas literários
são irrelevantes para eles, e a decadência do público
não é um conceito discutível.
É crucial nessas observações
dirigir o centro de atenção para as pessoas do "terceiro
balcão" porque a maioria do público das cadeiras mais
caras não vai aos filmes movidos por impulsos psicopatológicos
ou histéricos.
O cinema nunca teve tantas
construções artísticas e investigações
complexas, incompreensíveis para um público menos culto,
enquanto que a reação para os momentos mais básicos
e primitivos de impressão é mais intensa para uma audiência
de sensibilidade menos apurada; e isto é, de longe, o mais interessante
atualmente.
Nas "estórias de detetive",
e mais ainda, nos roteiros americanos de "detetive", o elemento fundamental
da trama é a intensidade do desenvolvimento da ação,
a dinâmica da construção — e para o cinema não
existe expressão mais nociva do "literalismo" que o "psicologismo",
isto é, a ausência de ação externa da trama.
O sucesso dos filmes americanos
repousa na utilização corriqueira do específico
fílmico1, na presença máxima
de movimentos e no heroísmo primitivo, numa relação
orgânica com a contemporaneidade.
Em seguida, devido às
condições de vida em seu país e seus métodos
comerciais particulares, os americanos são capazes de mostrar
mais trama num filme de tamanho limitado e esforçam-se para obter
o maior número de cenas e a melhor impressão com os menores
gastos no estoque de filmes.
Está claro que neste
caso o tamanho da metragem de cada cena, da qual qualquer longa-metragem
se vale, é reduzido ao mínimo, e desta maneira as cenas
de um filme americano sucedem-se mais rapidamente do que as de um filme
russo.
Atentando o máximo
possível para diminuir o tamanho de cada parte componente do
filme e de cada tomada separada de um mesmo cenário, os americanos
descobriram um método simples de resolver a complexidade das
cenas filmando somente este elemento de movimento, sem o qual uma ação
vital não poderia ocorrer; e a câmera é colocada
em tal perspectiva na natureza, que o tema do movimento dado alcança
o espectador, e isto é codificado da forma mais rápida,
simples e compreensível. (O close up — uma parte separada
do filme).
Assim, o número de
partes componentes de um filme americano, devido ao método de
filmagem de cada cena separada numa grande seqüência de momentos
componentes, torna-o ainda melhor.
Estudando filmes americanos
e comparando nossas observações com as malfadadas tentativas
de cineastas russos, que utilizam métodos familiares e buscam
o específico fílmico dos filmes americanos — de todo modo
melhor que a perpetuação da "teatralidade" — observamos
que, entre nós, há certa relutância em montar o
filme conscientemente a partir de uma combinação de seqüências
de cenas que se deslocam. O cinema é inapto para gravar cada
cena separadamente (em uma só parte). O segredo no domínio
do material cinemático — a essência da cinematografia —
repousa em sua composição, na alternância de partes
fotografadas. Principalmente, para a organização das impressões,
o importante não é um pedaço único, mas
como os pedaços se sucedem no filme, como são estruturados.
Não devemos buscar
a organização da cinematografia na exposição
das cenas, mas na alternância destas cenas.
Para esclarecer o sentido
do que foi dito anteriormente, mostraremos que no caso da construção
de qualquer material, o momento crucial é o momento organizacional,
durante o qual a relação de partes do material e suas
conexões orgânicas, espaciais e temporais são reveladas.
A justaposição e a inter-relação de diversos
elementos expressam, muito mais vívida e convincentemente, essência
e sentido — assim como cada parte separada do elemento só aparece
com a montagem total.
A mesma coisa acontece com
o filme, na combinação de pedaços expostos o que
é importante é a relação de dependência
do primeiro pedaço exposto com o segundo, e esta dependência
é o principal momento construtivo na edificação
do filme.
Importante notar é
que no processo de assimilação do trabalho de filmagem
sob os fundamentos de sua essência, isto é, na alternância
de pedaços filmados, o primeiro postulado derivado dos filmes
americanos foi esquecido: a crença na necessidade de movimento
entre uma e outra parte separada e a montagem na cena dessas partes
filmadas atrás das câmeras. Isto é extraordinariamente
importante na produção de uma ordem cinemática.
O método particular
é tecnicamente denominado filmagem pelo "formato americano",
enquanto que a junção das partes, montadas em filme, chama-se
"edição".
Cinema autêntico é
a montagem de "formato americano", e a essência do cinema, seu
método de expressão máxima, é a montagem.
A esfera desta análise
do cinema é derivada de uma dissecação dos filmes
americanos. É claro que esses filmes são como "clássicos"
para os iniciantes e por isso nossos oponentes procuram rótulos
no cinema pela palavra "antiartístico", o que para eles significa
— "americanitis".
Desejo... tenacidade...
olho (1926)
Nosso cinema é rico
em oportunidades e pobre em trabalhadores qualificados. Desejamos um
grande negócio, mas não estamos numa posição
de executá-lo: aqui, ninguém está.
Por isso o aparecimento de
um trabalhador qualificado para o cinema é extremamente gratificante,
especialmente nas condições atuais.
Nosso ofício demanda
trabalho preciso e responsável, mas, infelizmente, esta tão
imprescindível necessidade é raramente observada. A opinião
mundial e a qualidade artística mostrada por outras pessoas capacitadas
¾
diretores capacitados ¾
estão longe de ser mais importantes. Nós temos nossos
próprios trabalhadores, que compreendem a vida contemporânea
e que sentem seu ritmo e sua significação e temos outras
pessoas que, apesar de trabalharem com a linguagem contemporânea,
utilizam estilos caducos ¾
como itinerantes.
Estes últimos são
os diretores "feijão-com-arroz"2 que estão
acordados com a distribuição oficial, e poucas coisas
são tão nocivas à cultura cinematográfica
quanto seus trabalhos. Tudo feito nos moldes ultrapassados, tudo feito
no intuito de satisfazer os desejos do público, este é
o trabalho de hoje; enquanto que cada parte deste trabalho inócuo,
mesmo tido como trabalho "artístico" por "críticos" e
custando centenas de milhares de rublos, é o trabalho de tempos
idos.
É por isto que estou
escrevendo sobre Eisenstein como diretor absolutamente capaz de se envolver
na mais significante luta por uma cultura cinematográfica, tão
indispensável para a vida moderna.
O sucesso dos filmes Greve
e O Encouraçado Potemkim deram imediatamente ao jovem
diretor sua merecida popularidade como cineasta soviético. Porém
não podemos esquecer que seu sucesso foi, de alguma maneira,
custoso e que nenhuma crítica lhe foi dedicada ¾
nem mesmo um só artigo ou uma só análise profissional
e substancialmente analítica do trabalho de Eisenstein.
Quase todos ficaram pasmados
de alegria, irrestritamente deleitados com o novo visual de nossa cinematografia;
e me parece que este período de aceitação de Greve
e O Encouraçado Potemkim será substituído
brevemente por um período de análises sérias de
sua direção e alguma avaliação das capacidades
futuras do diretor.
Sem pedir para que sejam feitas
exaustivas avaliações destes filmes, gostaria de atentar,
ao menos, a uma avaliação dos aspectos que os caracterizam
e, instantaneamente, paralisam o olho.
Comecemos com Greve ¾
o primeiro trabalho e a primeira vitória em nossa sobre a imprensa
cinematográfica e geral.
Neste filme de agitação
política3, pela primeira vez e de modo
realista, sem operações falsas, sem bigodes e barbas falsas,
sem o estilo russo "toalha de chá"4, nossa
atualidade foi retratada, quase capturada cinematograficamente, quase
verossímil. Após tudo que vimos previamente nas telas,
este trabalho arrebatou a todos.
É conveniente recordar
qualquer outro filme anterior, mesmo entre esses exibidos hoje em dia,
e avaliá-los seriamente por todas as mentiras, todas as deformidades
causadas por operações teatrais "artísticas" de
nossos diretores, para que estas fiquem aparentes.
Eisenstein, virtualmente a primeira
pessoa a fazer os filmes de agitação, livrou o público
das escoras e dos ornamentos do estúdio e exibiu cenas bem concebidas,
construídas com mínimos recursos. Coisas e ambientes atuais
¾
fábricas, locomotivas, guindastes, vilas industriais et cetera.
Dificilmente qualquer um dos
outros diretores pensou em usar os materiais acima mencionados, e esta
foi a maior vitória de Eisenstein no cinema.
Ele é mais o diretor
de cena ¾
elegante e expressivo ¾
do que da montagem e do movimento humano. Cenas eisensteinianas
sobrepõem-se ao resto; no todo são elas que constituem
o sucesso de seu trabalho. É suficiente lembrar a cena da calça
em Greve, a infinita degustação destas fotogênicas
cenas, para tornar-se absolutamente convencido do olhar refinado do
diretor, seu amor particular pela cena plasticamente expressiva.
A montagem de Greve
é significantemente mais fraca. É exagerada; preocupa-se
com uma desnecessária e rápida edição do
tempo e assim não se desenvolve em nenhum sistema. Tudo é
por demais fragmentado, existem aspectos não relatados; mas,
principalmente, existe a ausência de uma cadência única
de movimento na justaposição de imagens e de uma só
linha temática. Por exemplo, na cena mais fraca, a última
parte do filme: a montagem associativa ¾
a carnificina e o paralelo extermínio dos trabalhadores ¾
é dificilmente uma prerrogativa para transformar o evento na
forma que resultou. Esta cena do massacre não foi preparada para
auxiliar a segunda linha de ação, tornando a cena incompleta
como é.
Há no Encouraçado
Potemkim um exemplo de aplicação correta de associação
é a cena em que o doutor "pince-nez", que trabalha no navio,
pende numa corda. Enquanto a cadência da ação é
precisa e única nesta cena, observamos, paralelamente, as conexões
lógicas das associações.
É bastante inconveniente
discutir as barricadas ¾
o abrigo dos resistentes ¾
e a excentricidade dos gatos enforcados depois da sessão. Depois
de The Wise Man é desculpável que um diretor teatral
não seja completamente cinemático, especialmente se a
cena em questão é uma das melhores em nossas telas. O
Encouraçado Potemkim é um filme de indiscutível
significância e melhor que Greve. A questão principal
neste filme é sua verossimilhança e a forma completa que
adquire, um todo, que é capturado em filme pelo diretor.
Por isso é cativante;
mesmo a bandeira colorida não reproduzível em filme preto
e branco é apreendida mais e mais, não somente como símbolo,
mas também pela inesperada presença da cor.5
Geralmente é inconveniente colorir cenas, porque não demorariam
muito para reavivar o sangue ou a chama de um fogo. Um dos motivos do
sucesso deste filme se deve a comparações possíveis
com Greve.
Primeiramente é vital
constatar a melhora na qualidade da montagem. Mesmo mostrando partes
mal montadas, por exemplo, o fim da última parte ¾
o marinheiro lavando o prato vira-se, mas sem sincronismo com o movimento
de sua cabeça ¾
existe uma seqüência muito convincente como a do bombardeamento
do teatro Odessa com os leões surpresos. Teatralidade ¾
nos gatos enforcados e nas barricadas de Greve. No entanto, quando
começa o movimento das multidões e dos atores, este deveria
ser melhor e mais integrado. De fato, em seu futuro trabalho, Eisenstein
certamente será obrigado a aplicar-se com mais afinco ao elemento
ator e às cenas de massa, ainda não estruturadas o bastante,
e, ao estruturá-las, que não o faça obedecendo
à gramática. Este é o aspecto rudimentar, nos termos
do elemento técnico, que deveria ser analisado na valoração
do trabalho de Eisenstein.
A base do seu sucesso na arte,
a base que traz à tona um respeito particular, é seu desejo
na produção ¾
uma ênfase na habilidade de selecionar fazendo significar, servindo-se
dos temas.
Outros não poderiam
fazer melhor.
Em um curto período
de tempo, Eisenstein cresceu e tornou-se um mestre pois, excetuando
seu talento, ele é possuído por desejo, tenacidade e um
olho aguçado.
David Griffith e Charlie
Chaplin (1928)
Dois mestres mundiais deitam
seus ensinamentos na escola da cinematografia ¾
David Griffith e Charlie Chaplin.
Griffith trabalhou tanto com
a cinematografia pura quanto com o caráter histriônico
de seus atores fazendo-os comunicar seus estados psicológicos
por meio dos mais complexos movimentos e mecanismos.
No entanto, estes movimentos
não eram meros trejeitos elementares, mas foram trabalhados de
maneira reflexo-lógica e precisa, e é por isto que ele
atinge suas propostas. No caso de Griffith, os atores não esbugalhavam
simplesmente seus olhos em um momento de horror, mas desempenhavam outros
movimentos mais apurados, comunicando seu estado naquele momento.
O estalo dos lábios,
ruminação, o espalmar das mãos, um toque nos objetos
e tudo mais, são as características sígnicas da
performance griffitiana. Não é muito difícil
entender que estes signos emergem nos momentos de extremo sofrimento
e, mais ainda, nos momentos próximos da histeria.
Um filme não pode ser
inteiramente construído por emoções fortes, e é
por isso que Griffith ocupa os espaços entre as cenas de sofrimento
árduo com cenas de pura dinâmica cinematográfica.
Construindo seus filmes desta
maneira ele obtém resultados extraordinários e por muito
tempo, nem seu trabalho de diretor nem seus roteiros foram tão
bons.
Foi Chaplin quem sobrepujou
os roteiros clássicos com seu Woman of Paris. Em termos
de construção este roteiro pode ser considerado ideal
nos mostrou um novo método de trabalho. Chaplin apagou virtualmente
o retrato elementar da emoção comunicada facialmente.
Demonstrou o comportamento das pessoas em vários aspectos de
sua vida, por meio de suas relações com as coisas e os
objetos. Em relação à disposição
das coisas, o método onde o herói é colocado face
à mudança do seu ambiente e das pessoas que o cerca, o
faz mudar, bem como sua conduta.
Desta maneira tudo pode ser
resumido no estabelecimento de vários processos de trabalho,
desde que algo atue sobre os objetos: violando ou ordenando sua organização
comum, conduzindo-os tanto racionalmente quanto irracionalmente, o ator
manequim atua fora deste processo de trabalho. Este processo ¾
seu mecanismo; e seu movimento; e então, a vanguarda do cinema.
Assim o trabalho do roteirista deve assimilar a expressão da
fábula através da organização de pessoas
que interagem com objetos, facilitada pelo comportamento das pessoas
e seus reflexos. A woman of Paris foi bem-sucedido não
porque seu roteiro era bom: "Nós nunca teríamos mostrado
o roteiro para a produção". Uma resposta absoluta: o roteiro
de A woman of Paris é o que é excepcionalmente
bom.
Uma coisa segue a outra em
uma conexão lógica e ininterrupta: nada pode ser descartado
¾
e se isto ocorre, perdemos a significância cinedramática
ininterrupta.
Quando buscamos imitar o roteiro
chapliniano, uma intolerável sucessão de episódios
com pessoas e objetos irrompe para a platéia, de tal maneira
que qualquer um pode ser tanto eliminado como substituído. A
extraordinária qualidade do roteiro de A Woman of Paris
reside no fato de que nada deve ser retirado, pois cada episódio
é indispensável e obrigatório. Se o roteiro de
A Woman of Paris fosse dado para um diretor ruim seria ainda,
sem dúvida, um sucesso; nas mãos de Chaplin foi genial.
Tradução: Mariana
Mansur e Bernardo Carvalho.
1.
Film-ness é a palavra utilizada
por Levaco para designar a expressão cinematográfica independente,
isto é, sem vícios "literários" nem "psicologismos".
Optamos pelo "específico fílmico" para determinar este
corte entre o que nasce da expressão cinematográfica como
movimento, sem o qual não há cinema, e o que nasce do
"teatro filmado" e dos "dramas de conserva", que reiteram uma dependência
entre o cinema e as artes "maiores". (Nota dos Tradutores)
2. Na tradução em inglês,
"bread-and-butter". (Nota dos Tradutores)
3. Em inglês, agit-film. (Nota
dos Tradutores)
4. Na tradução em inglês,
"russian-style tea-towel". (Nota dos Tradutores)
5. Há uma variação
do Encouraçado, com cenas pintadas à mão.
(Nota de R. Levaco)