Abbas Kiarostami
fala sobre os filmes italianos que via quando jovem





Abbas Kiarostami filma Onde Fica a Casa do Meu Amigo?

Para evitar todo equívoco, eu devo logo confessar que não sou impressionado por nenhum cineasta nem por nenhum filme. Meus filmes são antes influenciados pelos acontecimentos da vida corrente, dos quais, sem muito me dar conta, guardo por muito tempo a lembrança antes de vê-los aparecer num filme novo. Há muito tempo que eu não vejo filmes, não sei por quê, mas perdi o hábito. Nesses últimos anos, venho querendo me reconciliar com o cinema, mas tenho me decepcionado muito.

Não era mais o "cinema" que eu havia abandonado há alguns anos. Encontrei um cinema vazio, violento e, no mais das vezes, sem identidade. Entretanto, vi bons filmes em vídeo, mas infelizmente a gravação era de tão má qualidade que foi difícil suportar.

Conheço somente de nome os realizadores contemporâneos. Me perguntam se eu vi os filmes de Kieslowski ou de Angelopoulos, mas eu devo dizer que não. Mas eles despertam a minha curiosidade. Eu adoraria ver também os filmes do português Botelho ou do Espanhol Almodóvar, mas eu não tive ocasião propícia, e eu não imagino que esses artistas gostariam que eu descobrisse suas obras numa má gravação em vídeo.

Devo então confessar que vou raramente ao cinema e que isso não se deve somente à medíocre qualidade das condições de assistir. Eu não suporto nem meus próprios filmes, nem em vídeo nem no cinema, com exceção, apenas, de Close-Up. Em geral, eu saio da sala de cinema no meio do filme porque eu não posso ficar muito tempo no mesmo lugar, e isso não tem propriamente a ver com o filme.

Então, de deve-se falar de uma influência qualquer do cinema em mim, eu a devo provavelmente aos primeiros filmes que eu vi na minha juventude, há trinta anos.

É preciso que eu fale primeiramente dos meus primeiros anos. Antes mesmo de conhecer o cinema propriamente dito, eu já conhecia a película. Nessa época, nós estudantes colecionávamos pedaços de película e fazíamos álbuns como para selos. Houve momentos que eu tinha imagens de homens ou de mulheres sem que eu soubesse de que atores se tratavam. Por exemplo, eu conhecia Tarzan, mas só anos depois eu soube quem era Johnny Weissmuller. Eu tinha também a imagem de um homem cuidadosamente penteado, com um belo bigode e um belo sorriso, e mais tarde eu soube que seu nome era Clark Gable. Da mesma forma, eu reconheci Susan Hayward depois de ver seus filmes.

Essas imagens — no mais das vezes closes dos atores — circulavam de mão em mão antes de encontrar o caminho dos nossos álbuns. Mas a única diferença dos álbuns de selos, era que, para ver essas películas, era preciso colocá-las diante de um faixo luminoso.

Entre essas atrizes, tinha uma mulher única, Sophia Loren, e foi ela que me despertou, antes de tudo, para o cinema. Eu ia unicamente para vê-la. O resto do filme não contava. Tudo se eclipsava diante do seu esplendor. Ela preenchia o universo da minha adolescência. Ela não parecia com ninguém, ela era ao mesmo tempo mãe e mulher.

Quando eu tinha onze anos, minha irmã mais velha, seguindo o conselho de um amigo, me levou pela primeira vez ao cinema. A primeira imagem que eu vi foi o leão da MGM. Ele rugiu, foi terrível e eu tive medo. Na obscuridade, eu procurava a mão da minha irmã para segurá-la. Eu me lembro que nesse filme havia um homem com um nariz grande que tocava piano. Eu o reconheci mais tarde, era Danny Kaye, mas eu não me lembro mais do título do filme. Eu também não sei por quê eu comecei a dormir antes do fim da projeção.

Foi pelos dezesseis ou dezessete anos que eu comecei a freqüentar seriamente os cinemas. As salas escuras, os filmes italianos, as meninas e os jovens, as vespas, as ruelas longas e estreitas, as frivolidades, os turistas americanos se misturavam às exaltações de minha juventude. Ou ainda filmes heróicos cheios de emoção como os de Ulisses e Macisto...

Eu ia ao cinema unicamente para me distrair. Durante esse período, eu não me lembro de ter visto um filme inteligente ou excepcional a não ser, certamente, um único que me impressionou diretamente. Uma impressão completamente diferente e profunda. Esse filme não figura, sem dúvida, entre os melhores de seu realizador, e eu sei que ele não figura na lista dos dez melhores filmes da história do cinema. Mas ele me influenciou enormemente. Pela primeira vez eu me interessei no diretor de um filme, e eu compreendi o papel que ele exercia na sua realização. Pela primeira vez, o brilho de atores como Mastroianni — o "Marcello" dessa época — ou a bela Anita Ekberg desapareciam diante da beleza da obra. O filme era de seu realizador. Durante a projeção, minha companhia resmungava o tempo todo e queria sair da sala. Ela dizia que a história não tinha pé nem cabeça. Ela pensava talvez que a atenção que eu dedicava ao filme provava que eu me separava dela. Essa reflexão era provavelmente devida à nossa idade porque o cinema tinha uma significação absolutamente diferente para nós. Nós saímos da sala e eu andei por muito tempo sozinho pelas ruas.

Tornou-se um hábito: cada vez que eu vejo um belo filme, eu me perco nas ruas. Hoje, trinta anos mais tarde, eu adoraria saber em que eu pensava naquele dia e o que eu achei do filme durante essa longa marcha...

Por que esse filme era tão diferente? O que o distinguia dos outros? Infelizmente, eu não me lembro mais. Eu me lembro somente de algumas imagens ambíguas. Eu vi La Dolce Vita quando tinha vinte e um anos. Nessa época, eu nem mesmo sonhava em fazer cinema, mas eu me lembro de ter pensado muito em Fellini, o autor do filme. Eu teria adorado conhecê-lo, saber como um cineasta pôde transformar uma história aparentemente incoerente em um filme tão impressionante que permaneceu gravado na cabeça de seu espectador para nunca mais sair.

Na minha opinião, La Dolce Vita é a própria imagem da decadência dos valores morais e sociais. Os seres, que procederam a uma verdadeira autodestruição, observam sua decadência e passam seu tempo na mais total passividade. La Dolce Vita é o espetáculo do desespero e da impotência. Os homens correm sem esperança depois de aventuras sem resultado e Fellini, como antes dele Dante, previu através dessa incoerência poética um futuro incerto e obscuro. Trinta anos depois, nós podemos senti-lo. Ele anunciava a decadência da civilização contemporânea e a dissolução dos modos no mundo burguês e intelectual. É essa a minha presente interpretação do filme. Mas eu ficaria curioso de saber qual tinha sido a minha quando eu era jovem. Bem entendido, naquela época, eu não podia analisar um filme, mas eu adoraria conhecer o papel que esse filme desempenhou na evolução do jovem que eu era, freqüentando as salas escuras à procura da emoção e da imaginação.

Em La Dolce Vita, Fellini sente-se responsável pela vida desse homem. Seu filme é a autobiografia do artista que é incapaz de continuar a viver pois encontrou uma força motriz para sua existência. A seqüência final é uma resposta do diretor que tenta encontrar um meio de respirar e de viver. É justamente a única seqüência de que me lembro. Nessa manhã triste e úmida, na orla da praia, uma menina pura e inteligente resiste aos atores e intelectuais do filme, e é toda a esperança que o diretor nos promete. Essa esperança ideal e irreal constitui meu universo ideal, não somente como cineasta, mas como homem. Eu penso que nós homens não temos o direito de viver dessa forma lúgubre, nem de ter um olhar tão sinistro do mundo. Eu creio ter lido em algum lugar, como vindo do próprio Fellini, que esse filme é um "acontecimento de ternura". E eu creio nisso. É preciso ser dotado de um poder qualquer para chegar a analisar uma obra? Ou basta ter sentimentos e experiências análogas aos de seu criador para fora das pertinências étnicas, religiosas, lingüísticas ou geográficas? Sentimentos e experiências que associam o presente ao passado e ao futuro e reúnem seres diferentes uns dos outros.

Em La Strada, que é meu filme preferido, Fellini para mim era Deus. Esse filme era mais forte que uma obra neo-realista. Com La Strada, Fellini compôs um poema lírico, a grande epopéia das felicidades e das dores do homem.

Abbas Kiarostami
(publicado originalmente na edição comemorativa nº400 da revista francesa Positif)