A Indústria não banal
sobre a obra de Tim Burton





A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça de Tim Burton

A produção de cinema industrial é sólida e não abre muito espaço para criação e evolução pessoal. Fazer filmes, dentro desse esquema, deve ser um jogo de concessões onde ambas as partes envolvidas — a indústria e o diretor/criador — tentam ganhar mais direcionando o resultado final através de negociações mesquinhas. Visão artística quase sempre está totalmente desatrelada da ambição de mercado. E é essa, que na maioria das vezes, ganha.

Trabalhar dentro da indústria, aceitar seus métodos e seus objetivos pode ser uma prova de fogo para um talento mostrar o seu valor. Conseguir impor a vontade criadora e contestar as regras, sem abrir mãos delas, é característica de poucos iluminados que fazem obras pessoais e intrigantes. Definir um padrão próprio para os filmes, em um ambiente hostil à revolução, em um meio de propagação de idéias gastas e facilmente compreensíveis, é mostrar para quem quiser ver o seu valor como artista independente e capaz.

Não deixar a indústria cinematográfica sufocá-lo, mas, abusando dela, de todo o seu aparato tecnológico e todo o seu poder de fogo e de penetração, fazê-la de escada para sua obra. Obra única com assinatura bem definida e reconhecível de longe.

Sem intenção de caracterizar o que é ser bom ou mal ou impor um gosto pessoal em relação aos filmes de diretores reconhecidamente importantes, cabe aqui dizer que o que Tim Burton fez e tem feito está colocado na galeria das grandes criações.

Bem poucos diretores conseguiram driblar as armações do cinema comércio tão bem para consolidar uma característica própria em cada filme realizado. Muitos de seus filmes contam com atores consagrados, efeitos caros, produção bem cuidada, e o resultado final sempre permanece sob o seu controle. Segurando as rédeas da indústria, Tim Burton a leva para onde sua vontade manda.

Talvez a forma como pense o cinema seja bastante adequada à essa maneira de se produzir em grandes esquemas. O que é verdade é que os filmes de Burton são, além de únicos, fáceis.

Antes de ser atacado por fãs ou críticos favoráveis, digo que ser fácil não é problema para nenhuma criação artística. No caso de Tim Burton, a característica pessoal de sua obra, o que faz dela desejável, apreciável e interessante é justamente essa facilidade de consumo. Não que sejam filmes banais, mas são, com certeza, filmes que trabalham com um imaginário estabelecido, e fazem isso com extremo cuidado e beleza.

O mundo cinematográfico criado por Burton não tem avessos, contestação ou situações incompreensíveis. Entendê-lo é apenas mais uma possibilidade do nosso próprio olhar e de nosso próprio sistema de valores. É um mundo fechado, bem elaborado, como toda boa arte deve criar. Um mundo de realidade exagerada, de cores pintadas e de personagens fechados que se movimentam apenas onde já existem. Um cenário irreal que diz mais sobre o nosso real do que uma pintura super realista. Burton não gosta do mundo de verdade e precisa criar outro para mostrar o que deseja e da maneira como deseja. Por isso a atmosfera de estúdio presente em vários filmes e a impressão de perfeição que esconde uma desordem social escondida atrás de beleza e organização. É o mais que o real mostrado em um céu azul sem máculas e carros coloridos e decoração kitsh. Ou em um bosque sombrio de árvores escuras, retorcidas e velhas. É também a animação macabra e a solidariedade humana sem interesses e os aparatos científicos modernos que remetem, em plena pós-modernidade, à própria modernidade.

Esse excesso de mundo encontrado em sua obra, não agride. Compreendemos o que Burton nos mostra. Reconhecemos o exagero e analisamos o que está ao nosso redor imediato através dessa pintura de real. A correlação é imediata.

Fruto de uma insatisfação com o verdadeiro que tem semelhança com o expressionismo alemão. Lá, o desejo de construir uma realidade mais justa foi trabalhado em cenários que reorganizavam o mundo e o tornava mais "verdadeiro", e em situações dramáticas que buscavam retratar o indivíduo em uma sociedade que não o compreendia inteiramente e não o aceitava. Esse trabalho de redefinição do mundo, era feito de acordo com seus conceitos conhecidos. O significado tinha uma relação direta com o que se desejava representar e sempre se referiam quase que diretamente ao real, só que de forma mais escamoteada. Mas o resultado era facilmente compreendido.

O que acontece nos filmes de Burton é parecido. A estratégia adotada para nos fazer refletir sobre os rumos de nossa vida é transfigurá-la em situações e ambientações remodeladas para que com o reconhecimento excessivo nós possamos identificar nossos erros e os erros de nossa existência social.

Pensando assim, sem intenção de julgar, a validade da cinematografia de Burton é indiscutível. Liberto da aura de banalidade do cinema norte-americano, ele, sem ligar muito para convenções, se fez ser reconhecido e diferenciado, e suas motivações nobres o fazem um ser humano preocupado com o que vive. Escolheu o cinema para aprofundar reflexões, e aumentou a oferta de bons filmes no mercado.

João Mors Cabral.