Vendo Jack Nicholson pela primeira vez




Jack Nicholson em
Five Easy Pieces
de Bob Rafaelson

Foi por bondade de Bert Schneider, que projetou o filme Five Easy Pieces para mim em seu estúdio, que eu cheguei a ver o incrível Jack Nicholson. Eu ouvira os membros desta casa falarem dele ad nauseam durante semanas e estava começando a odiar a menção de seu nome. Depois veio o inesperado convite para ver uma exibição privada do filme.

Eu estava preparado para qualquer coisa e para tudo, mas não para a coisa real. Lamento aborrecer apreciadores de cinema com uma crítica do filme, mas tentarei apenas falar de minhas reações a certas cenas, personagens e, naturalmente, Jack Nicholson.

Ele chega tão de mansinho que agarra a gente pelo saco antes que se perceba o que está acontecendo. Para ser honesto, eu teria sido capaz de sair sem assistir ao filme depois dos primeiros dez ou quinze minutos. Felizmente, agüentei tempo suficiente para ver uma porta abrir-se numa casinha em Vancouver Island, no Canadá. Então, as coisas começaram a acontecer. Em primeiro lugar, a casa que ele, Nicholson, estava revisitando era Lar em todo sentido do mundo. (Eu deveria acrescentar aqui que a casa fora remodelada de alto a baixo pela esposa de Bob Rafaelson, Toby Carr Rafaeison. Não fora coisa fácil encontrar aquela locação e, após o filme ter sido rodado, a casa foi vendida novamente três vezes, segundo eu soube.)

Não é de admirar. Mas que belo rasgo de gênio ouvir música saindo de cada aposento, enquanto Jack vagueia por todo lugar. O piano tocando e a decoração indicam Lar como raramente o conhecemos. Isso erradicou imediatamente as lembranças ácidas e amargas de um lar onde eu vivi na maior parte de minha mocidade - na "Rua das Primeiras Tristezas", como a chamei em meus livros.

De repente, vejo-me em um mundo de som e luz e de amor filial, E quando, a pedido de Susan Anspach, esposa de seu irmão, Jack senta-se inesperadamente ao piano e toca Prelúdio em Mi Menor de Chopin, é demais. As lágrimas saltaram de meus olhos. Entre tanta gente, para tocar Chopin - logo aquele Nicholson. aquele canalha, aquele patife. Não, não é possível. Naturalmente, quem tocava o prelúdio não era Jack, mas Pearl Kaufman, uma música distinta e suficientemente esperta para não tocar bem demais. De fato, eu estava muito cônscio da perspicácia dela e, quando Susan Anspach finge ficar profundamente comovida pela interpretação de Jack, pensei a princípio que ela estava exagerando muito. Refletindo mais tarde, porém, percebi que ela poderia muito bem ter-se comovido com sua interpretação simplesmente por causa da grosseria anterior dele.

Foi mais ou menos a essa altura que comecei realmente a apreciar sua natureza dupla ou esquizóide. Contudo, em lugar de ficar impressionado por um macaco esperto, como eu suspeitava que ele fosse, comecei a sentir algo muito mais profundo na interpretação de seu papel. Pode parecer forçado, mas comecei a pensar nele em termos dostoievskianos. -Àquele rude e despreocupado filho da pula do início começava então a assumir tonalidades russas.

Por um breve momento, associei-o a Herr Nagel dos Mistérios de Hamsun. Que ator senão Nicholson seria capaz de dizer à mulher que adorava e reverenciava, ao encontrá-la na mata: "Bom dia, Senhorita, hoje é permitido tocar seu pompom?" Menciono isso porque nunca imaginei algum ator americano capaz de desempenhar o papel de Herr Nagel. (Espero que todos os redatores de scripts que lerem isso aceitem a sugestão e ponham mão à obra.)

Adorável como ele é, e o é mesmo em seus piores momentos, ainda assim vibrei intensamente quando Susan Anspach lhe passa uma raspança. Que raspança! E em quem ele se desforra, senão naquela sua tola amante, Karen Black. Mais uma vez a gente lhe perdoa todas as suas maldades - e, no entanto. esta é, em certo sentido, sua maldade máxima. Ainda posso vê-la caminhando sozinha para o restaurante de beira de estrada a fim de comer alguma coisa e vê-lo abrindo de repente a porta do carro e indo para o lavatório. Eu devia estar alerta naquele momento, porque não era um mero toque de realismo o fato de ele ir dar uma mijada. Bastardo como é ele, poder-se-ia saber que tinha alguma coisa em mente. E, de fato, quando sai do lavatório abotoando a calça, a gente o vê andando despreocupadamente e1m direção a um grande caminhão que acaba de estacionar. Quando faz silenciosamente o negócio com o motorista e salta para o banco dianteiro, tem-se um sentimento maravilhoso. Sabe-se que ele está dizendo adeus a tudo aquilo, adeus a ela, a imbecil, adeus ao Buick ou fosse o que fosse, rodam-se todos vocês, inclusive o lanche rápido. Ou, como disse Céline certa vez: " Eu mijo sobre tudo isso de uma altura considerável.

Ele vem de nenhures e volta para nenhures. E a gente o inveja. Ainda que bastardo, é um homem livre, o que é uma grande coisa.

Só há um cara mais livre do que Jack Nicholson. É Bruce Dern, que contracena com ele em The King of Marvin Gardens. Bruce Dern faz Jack sumir. Contudo, ali ele não é apenas um cafajeste, mas também um pouco estúpido.

Sinto-me contente por ter assistido a esse segundo filme porque agora sei que criatura verdadeiramente protéica é Jack Nicholson. É um filme muito confuso, mas ainda assim estimulante por causa de Bruce Dern. A fotografia não é deste mundo! Atlantic City no inverno. Que maravilhoso o cenário não ter sido feito no estúdio, mas ser a realidade flua, mais super-real do que real.

Há em Five Easy Pieces uma cena e um personagem que eu deixei de mencionar. Acredito que para a maioria das pessoas este vai ser o grande momento de Jack. A cena em questão é a de quando ele dá uma volta perto da casa de seu pai para tomar ar e casualmente tirar um peso do peito. Suponho que com isso se pretendia mostrar que Jack não era completamente desprovido de sentimento. Todavia, eu sempre o considerei um filho da puta insensível, mas um filho da puta adorável. É uma grande diferença. A verdade é que ele é tão adorável porque se comporta da maneira como todos nós gostaríamos de comportar-nos, representa nossas fantasias. A nós faltam a coragem e o encanto para imitá-lo.

Eu deveria acrescentar, porém, que, apesar de todo seu carisma, ele não é exatamente o cara com quem você desejaria que sua filha ou sua irmã casasse.

Sua vida está completamente fora da ordem social e particularmente da vida familiar.

Embora possa cometer o delito de cobiçar a esposa de seu irmão1, ele não é o tipo capaz de estuprar uma criança, furtar a bolsa de uma velha ou matar um chinês a sangue frio. Que ele tem coração está evidente em numerosas nuanças durante todo o filme.

Colocá-lo em foco - na estrada aberta e sem que passe um único carro, enquanto ele abre o coração para seu pobre e velho pai, é quase shakespeariano. E Jack, apesar de todos os seus numerosos talentos, não é um ator shakespeariano. Ele poderia, sob direção adequada, interpretar o Príncipe Myshkin, Alyosha ou o Idiota, mas não Hamlet, Macbeth ou Ricardo III. Quando digo que não seria capaz de interpretar papéis shakespearianos, quero dizer que ele é natural demais Para ele, interpretar Hamlet seria mudar sua natureza Seria forçado. Haverá sempre muitos atores shakespearianos neste mundo, mas não muitos Jack Nicholsons.

Antes que me esqueça, o pai, em minha humilde opinião, é o maior personagem do elenco. É monumental e salta diretamente da Bíblia. Seu semblante impossível registra mais sentimento do que a maioria dos atores é capaz de reproduzir com toda a sua dramatização. Nessa cena, em que ele é incapaz de proferir uma palavra ou de ouvir uma palavra, ele exige o máximo de Jack. Receio que sem Jack, nem o diretor, competente como é, tenha estado à altura daquilo. Em lugar de um homem descarregando alguma coisa do seu peito, Jack deveria ter sido reduzido a um idiota balbuciante, a uma criança, se quiserem. Seu monólogo deveria ser mais apaixonado, mais revelador de sua relação antiga. "Não se lembra, pai, de quando você me levava a caçar ou pescar?" "Não se lembra de quando me disse que um dia eu seria um concertista de piano?"2 E assim por diante, até desmoronar-se e começar a soluçar, pronto para dilacerar o coração da gente. E, no meio disso tudo, deveria ter havido alguma espécie de interrupção injustificada, por um vagabundo bêbado, alguém absolutamente quadrado ou um semi-idiota, que atenuaria a explosão sentimental e permitiria a Jack ser ele mesmo por um momento, chamar o intruso de nojento bastardo chupador de pau ou alguma coisa no mesmo sentido. Nesse monólogo, ele poderia ter dito alguma coisa no sentido de que nunca pretendera abandonar a família, que aquilo era bom demais, cômodo demais, belo demais, e que precisara arrancar-se dali para ir embora — que ele queria mais vida.

Espero que Bob Rafaelson me perdoe por redirigir essa cena. Talvez eu esteja exagerando.

Mas eu me senti um pouco frio observando esse grande momento, como se nosso Jack fosse deixado sozinho em uma larga charneca para lutar com sua alma, ao passo que já vinha lutando com sua alma durante todo o filme.

Henry Miller



1. Para ser honesto, mais do que pura lascívia inspira sua paixão pela esposa de seu irmão. Ele realmente a ama — à sua moda. Sente-se neste ponto do filme que ele talvez possa sofrer uma radical mudança de caráter. Ou, em outras palavras, que ele possa vir a amar. A verdade é que ele demonstra verdadeiro amor no que se refere a sua irmã (Eu achei que ela desempenha bem seu papel).

2. Lembrando cenas ternas de sua juventude, a gente percebe mais facilmente qual era a verdadeira relação com seu pai.