O diálogo da revista com
um fantasma de carne e osso





Talvez pela primeira vez em Contracampo tenhamos que estabelecer um diálogo interno. Não se trata de lavar a roupa suja, mas de ajustar o campo de reflexão. Não se trata de querelas pessoais, mesmo porque elas não interferem na produção da revista. O leitor talvez tenha uma idéia mais clara do que proponho na medida em que possui visão de conjunto dos artigos da revista. Internamente conhecemos muito pouco uns aos outros. Em verdade, minha experiência pessoal circunscreve os nomes de Ruy Gardnier, Alfredo Rubinato, Eduardo Valente e Luiz Rezende. Tenho uma vaga idéia de suas concepções e, inversamente, algum papo acumulado. Conservo, pois, uma impressão predominantemente oral das idéias de meus colegas. E pior: nada sei de vocês que acompanham a revista com a regularidade que não temos. Nem público nem crítica, portanto. Assim, constato com certo desespero que, se me proponho a criticar e pensar o cinema nas diversas esferas de sua influência, me faltam duas pernas, pois desconheço o outro.

"Cinema é a maior diversão": uma boa filosofia porque exprime a necessidade intrínseca do outro na relação entre o filme e o espectador. E o cinema surge como arte de massas. Como posso optar por uma fruição solitária? Se, impossibilitados, de fato, a uma "fruição ideal", mesmo porque não há "filme ideal", temos a fruição solidária como boa alternativa a quem acredita na fruição solitária. Esta não se sustenta quando o assunto é cinema, mas não por uma questão essencial, e sim por uma questão política.

Escrevo por um interesse pelo outro e serei contemplado única e exclusivamente por leituras mútuas e não por opiniões solidárias. Os redatores e os leitores devem entrar no debate. E qual debate? Pergunta número 1: para que elaborar uma revista de cinema? Amadorismo diletante? Conservação? Divertimento? Egoísmo?...

Ajustado os propósitos, isto não implicando na mesma orientação crítica, mas no incondicional abraço ao mesmo motivo, podemos prever um novo tempo para Contracampo. Isto não denota, de modo algum, pompa; nem queremos com isso fomentar delírios solitários de classe média. O leitor que interfira, que escreva, que meta o bedelho em tudo que está sendo dito. Que estabeleça discussões e que de fato apareça como o membro constitutivo da revista que de fato é. E não me parece coerente que isto não esteja bem compreendido entre os amigos de Contracampo, bem como a necessidade de um maior intercâmbio entre nossas idéias.

Divagar não é prolífero e é bom que se esclareça. O estímulo para escrever este texto partiu de um artigo de meu amigo Ruy Gardnier. Em nossas conversas falamos sobre o cinema brasileiro. Fica clara a distinção entre um pensamento que busca o político como objeto de reflexão e outro, analítico, que não exclui o político, mas que se orienta por uma cartilha "francesa", o Cahiers. Minhas preocupações buscam, na compreensão histórica e na revisão das leis de incentivo vigentes, desvelar os mecanismos que engendram condições de produção desiguais. Deseja olhar a crítica e o seu papel. Quer, enfim, analisar o cinema como manifestação de condições políticas. Além disso, me interesso pelo valor da imagem, seus diversos matizes. Meu campo de reflexão, ou pelo menos o que busco constituir ao longo de quase dez anos, tange, mesmo que em última hora, uma interpretação deliberadamente marxista e marcusiana, mas não admite confusões: não é filosófico. Falo de cinema, mas entendo os seus diversos processos, sua história e diversidade, como resultado de condições sócio-econômicas. Alguns amigos consideram uma visão limitada e eu gosto das objeções que me fazem. Também aprecio idéias que primam por certa distância do real concreto (ops!), certa crítica literária, Paul Valéry, por exemplo, mas seus fins não me seduzem. Sou partidário contumaz de uma teoria às avessas de Sérgio Buarque, que diz:

Se o intelectual tem, com efeito, uma sagrada missão a cumprir, será esta de elucidar os que não sabem ver por inocência e denunciar os que não querem ver por conveniência.1

Ruy conhece minhas opiniões. Sabe que no bojo da discussão política, emerge o nome de Walter Salles como resultado de uma política desonesta e excludente que finge que dá ao profissional de cinema quando na verdade o deixa numa sinuca de bico. E eis que, numa inusitada visita virtual à Contracampo me deparo com o seguinte trecho:

"Segundo fantasma — búúúú. O segundo fantasma vem de Berlim. É um prêmio mais que um filme. Central do Brasil, depois da premiação na Alemanha, passou a ser o fantasma-mór do cinema brasileiro. Para uns é o modelo que o cinema brasileiro deve seguir; para outros é o modelo infame do grande capital. Central do Brasil povoou todos os sonhos e pesadelos da "classe" cinematográfica para bem e para mal. Poucos, os mais sóbrios, souberam realizar a operação psicanalítica e se livrar do fantasminha camarada que foi Walter Salles com seu Central. Muito se correu atrás de erros no filme, muito se falou de populismo, de violência amenizada, de covardia política; e inversamente, muito se falou de "saída" para o cinema brasileiro, de importarmos de vez uma forma de cinema que "é a certa". Assim, discutiu-se muito pouco o filme e sim o que representava sua ascensão ao título de "obra exemplar" do cinema brasileiro. Ora, filme nenhum consegue se sustentar como "obra exemplar", porque cinema (e arte, de um modo geral) necessita de variedade. Se nem Cidadão Kane pode ser obra exemplar, quem dirá Central do Brasil. Segunda saída pragmática da esfera do fantasma: Alma Corsária de Carlos Reichenbach, o filme mais livre da década, o filme mais pessoal e sem superego, pouco se importando com obras exemplares ou modelos prévios de organização. Um cinema impuro e belo como a vida."

Os grifos são meus. No meio de uma saudável e inteligente brincadeira com fantasmas que assombraram e assombram o cinema brasileiro, onde a cada fantasma Ruy apresenta uma "saída pragmática" (e afinal o que seria uma saída pragmática senão um exemplo?), encontrei o segundo fantasma acima reproduzido. Qual não foi minha surpresa ao identificar no meio do preciso diagnóstico, um fantasma de carne e osso. Isto é ruim porque a crítica não deve partir de pressupostos equivocados. Um real problema do cinema brasileiro é a panelinha. E acusar esta panelinha não mostra inveja ou qualquer tolice que se diga a respeito, mas respeito com o dinheiro público, no caso da Embrafilme, e respeito ao profissional de cinema, no caso das leis de incentivo fiscal. Nos dois momentos citados observamos a presença das mesmas figuras. É claro: a turma se renova, mas o problema não é a turma e sim o que depreende dela. E o que vemos, não é a presença de inofensivos "fantasminhas camaradas", mas a manutenção coerente de uma política desigual e injusta. Enquanto o cinema brasileiro reagir através de seu talento natural para o rebolado (Santo Forte, Um copo de cólera, São Jerônimo, Nós que aqui estamos...) não será sem tempo lembrar que este esforço é quase solitário. Os incentivos geram trabalhos e filmes, mas não geram igualdade, ao menos relativa, na produção e, além disso, não resolvem reais problemas. Ruy considera Um copo de Cólera, Santo Forte, Tudo é Brasil e outras saídas pragmáticas para problemas gerais sem se dar conta de que esses filmes-resposta não encarnam o padrão necessário, isto é, aquele que "larga na frente" na captação de recursos. São filmes que se opõem às características que as leis Rouanet e do Audiovisual reforçam de mãos limpas. Algo de substancial? Nada.

Como realizar uma "a operação psicanalítica" que me livrará do "fantasminha camarada" se ele não é camarada e se, como relatei no início, minha orientação busca encontrar motivos para desigualdade? "Discutiu-se pouco o filme"? Foi exatamente o que não aconteceu em Contracampo. Eu mesmo escrevi, à época do lançamento:

"Sem dúvida, Central Station entrou para aquela lista de filmes-símbolo do cinema brasileiro, da qual constam Terra em Transe, Limite, O Cangaceiro, Dona Flor e seus dois maridos, Carlota Joaquina, e tantos outros. Como tal possui várias portas de entrada, entradas-interpretação, cujo acesso só será possível através de perguntas "impertinentes". A impertinência dessas questões será suplantadas em breve, quando voltarmos à nossa realidade cultural, tão indefinida quanto rica, quanto complexa.

"Temos que pensar Central do Brasil!! Não devemos deixar nossa profunda questão cultural fora do assunto (o próprio Walter não o faz) como se ela fosse mero capricho intelectual. Ora, quem considera pensar, mero capricho intelectual, este sim, é impertinente. Milhões de brasileiros viram e verão Central do Brasil. Impertinente é acreditar que todos devem achar o filme tudo de bom para o cinema brasileiro. Isso é barbárie! FHC já mandou avisar: "quem não acredita no plano real, é um fracassômano!" Então, quem colocar Central do Brasil na roda das discussões é o que? É o mundo da qualidade total? E quem não considerar a qualidade total um parâmetro total?(...)

"Mas, atentemos para os perigos dos eufemismos "qualidade total" e "globalização". Serializar uma produção dentro dos padrões exigentes da World New Order (slave new world?) não é tarefa para qualquer país, sobretudo o Brasil, cuja frágil memória cultural, se dissolve no ar. Como produzir cinema brasileiro como se ele estivesse nascendo agora? Vamos esquecer sumariamente Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Peixoto, Lima Barreto, Edgar Navarro, Anselmo Duarte, Paulo Saraceni, Carlos Manga, Arnaldo Jabor, Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso, Ozualdo Candeias, José Mojica, Julio Bressane, Miguel Torres, Luiz Rosemberg, Andrea Tonacci?...Múltiplos esforços para constituir uma identidade cinematográfica brasileira, filha do subdesenvolvimento, empurrada por uma barriga faminta, filha da puta, filha de uma cultura sufocada a desenvolver seus malabarismos, frágil potência de invenção, criadora e... submissa. Desprezar silenciosamente este legado não é sinal de desenvolvimento."

Não concordo que haja falta de sobriedade nestes trecho, bem como no resto dos artigos. Poderíamos divergir se o papo fosse estética. Não é, é política e em política não há nada que não deva ser discutido. Por isso não entendo o que significa "discutiu-se muito pouco o filme"? O que seria discutir o filme senão esmiuçá-lo nos seus mais diversos aspectos? O que podemos falar a mais sobre Central Station que não friccione o político, já que o próprio filme carrega esses ares? Um filme que pode ser analisado nele mesmo não se revelaria, por fim, um filme exemplar? É isso que Ruy Gardnier deseja? Não sei, mas arrisquei em outra oportunidade, algumas palavras por uma análise mais contundente desses filmes:

"A construção da temática do cinema de Walter Salles obedece a dois pilares básicos e facilmente identificáveis, a saber: o Brasil, seu povo e os paradoxos de sua formação; e o drama que daí emerge, entendendo a palavra drama no seu sentido mais amplo, isto é, o drama como acontecimento. Portanto, acreditamos que ao criar seus filmes WS busca extrair dos acontecimentos da "realidade" brasileira toda a carga dramática necessária para preencher a tela e assim manter o espectador na trama. O problema é que a relação entre estes dois pilares não é uma relação "toma-lá-dá-cá", mas que termina com um déficit para o fator Brasil, visto que, obviamente, o objetivo principal é o drama. Como resíduo desta ‘extração’, WS faz emergir uma idéia visão de Brasil. Parece que se utiliza um Brasil como pano de fundo e então, mesmo que a reboque, mesmo que inaudita, imperceptível, sub-reptícia e camaleônicamente emerge a idéia de um Brasil que obedece a reduções problemáticas. A miséria, a desigualdade social, e outras ‘saúvas’ nunca foram tão estilizadas como nesses filmes. E o que caracteriza tal estilização é a construção de um Brasil ‘ideal’ através de uma extração desigual, onde o drama serve-se de pressupostos preconceituosos e paternalistas, que somente poderiam ser encontrados no imaginário de quem vê a pobreza do alto de seus privilégios. Mesmo assim, a eficácia de tal movimento é inegável, pois os filmes de WS possuem o tempo necessário do drama e com isso atraem o público. E não poderia ser de outra forma: estamos falando de cinema."

Vejamos: não se trata de condenar Walter Salles ao limbo, mesmo porque não passaríamos da vontade. O exercício da crítica carece de uma compreensão diversa do "deixa disso". Ela não deve, com certeza, se confundir no fogo das amizades e das conveniências. Mas deve ser rigorosa e extrair da queixa e do deslumbre seu material. Não importa: a pertinência está em Godard e Walter Salles. Tanto faz falar bem de Godard ou falar mal de Walter Salles, se não há uma razão muito forte que impulsione o motor crítico. Ela não precisa fazer elogios para criar e ser útil, mas preencher o postulado às avessas de Sergio Buarque.

Toda a questão do diálogo que me forcei a construir inicialmente foi pensando: o desconhecimento do outro gera certa autonomia que nada mais é do que alienação. Não se trata de pensar igual mas de conhecer o outro. Volto à pergunta número 1: para que elaborar uma revista de cinema? E a enriqueço: para que serve uma revista de cinema? Estamos na internet e não estamos conectados? A resposta não virá sob a forma de um ensinamento, mas de um apelo contundente do professor Francisco de Oliveira, publicado pela revista de estudos marxistas da USP, Praga, em 1997:

"Em quadras históricas como a que atravessamos, o compromisso do intelectual é o de radicalizar a crítica. Sem otimismos ingênuos, até mesmo porque a avalanche neoliberal não é apenas uma retórica, mas um processo com fundas raízes em nossas sociedades. (...) Um outro grande clássico, Gramsci, aconselhava, nas crises, a afiar o "pessimismo da razão", para ajudar o "otimismo da vontade", que só pode surgir da práxis das classes dominadas, para responderem e derrotarem esse holocausto sem (?) câmaras de gás."

Contracampo não deve reproduzir células subjetivas encharcadas de cultura nem queimar no fogo das vaidades acadêmicas. Acima de tudo, Contracampo deve atentar para seus problemas e suas virtudes. E este artigo se dirige aos leitores-redatores (ou, como queiram, redatores-leitores) na esperança de maior intercâmbio. Afiado e problemático (no bom sentido!) intercâmbio.

Bernardo Oliveira

 




1. Sérgio Buarque em "O Espírito e a Letra"