Arraial do Cabo
de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro
O documentário brasileiro também não
existe. Se quisermos uma retrospectiva, teremos no passado uma meia
dúzia de filmes impressionistas realizados por amadores, com
técnica sofrível e alguns momentos plásticos, Quando
não encontramos reportagens sobre índios e etc., temos
aquelas seqüências de câmara baixa, contraluz,
mostrando enterros de jangadeiros ou fatos semelhantes que, à
primeira vista, oferecem boa matéria fílmica. Mas sempre
ficamos no desastre. O nosso material é tão bom quanto
aquele que Eisenstein encontrou no México. Mas os nossos documentaristas
do passado foram apenas fotógrafos acadêmicos da escola
Figueroa que pretenderam muito sem mesmo saber ajustar o foco no segundo
plano. E, da montagem, não falemos sequer do mais primário,
que seria a coordenação narrativa. Mesmo assim devemos
a Humberto Mauro trabalhos que denotam um cineasta atrás da câmara.
Só isto.
O mal foi sempre o da pobreza imaginativa, o da pretensão
exagerada e da burrice excessiva. Isto, aliado ao descaso dos órgãos
culturais que nunca deram apoio ao filme curto, contribuiu para que
nossa tradição fosse praticamente nula, Na chamada fase
moderna do nosso cinema, aquela iniciada na Vera Cruz, o documentário
explodiu duas vezes nos filmes de Lima Barreto, Painel e Santuário.
Ofereciam, apenas, avanço técnico. A montagem, em Painel,
é toda ela de efeito e descontínua sobre as duvidosas
imagens de Portinari. A recuperação da tragédia
de Tiradentes ficou na intenção. Em Santuário,
o desastre foi maior, e isto verificamos hoje quando revemos o filme.
A narrativa linear, trazendo o leit-motiv de um velho que vai pagar
promessa na cidade talhada pelo Aleijadinho, cansa o espectador e não
alcança o sentido desejado. Além disto, a narração
verbal é de uma infâmia sonora absoluta, formando no mesmo
plano com a partitura de opereta que ambienta o filme. Em todo o caso,
existe qualquer coisa de positivo no conjunto dos filmes: a isto chamaríamos
o talento de Lima Barreto, um talento ainda não revelado totalmente
e que agora pode surgir com toda sua força em Primeira Missa.
Depois da falência da Vera Cruz, e da falência
de outras companhias, alguns italianos meteram câmaras a tiracolo
e invadiram a Amazônia. O material recolhido, em bruto, resultou
em Magia Verde, por exemplo, cuja montagem é tão
errada como uma redação infantil. O filme fez sucesso
comercial mas esteticamente irritava pelo que seria caso a tesoura do
montador fosse guiada pela inteligência e pelo conhecimento. O
fato foi repetido: o aventureiro Mário Civelli investiu muitas
vezes e continua investindo. Máximo Sperandeo foi em busca dos
xavantes e trouxe novo desastre, com fotografia invisível e montagem
inexistente. O documentário comercial ganhou impulso, quando
os nossos melhores profissionais foram obrigados a ganhar o pão
de cada dia. Mas nenhum destes filmes, produzidos em São Paulo,
conseguiu vencer o rush de Jean Manzon organizado, forma mais anticultural
possível. Falar em cultura a propósito de um produtor
como Jean Manzon é quase absurdo, mas acontece que sua pseudo-escola
de filmes seria fundamental dentro do Brasil, caso ele fosse dono de
um cérebro como o de John Grierson.
Manzon sempre oferece boa qualidade a seus fregueses.
Mas é uma qualidade falsa: pretensioso, faz filmes que
imitam mal os documentários europeus, filmes com fotografia e
montagem de efeito, acadêmicas e monótonas.
O brilho de seus filmes está na riqueza da técnica
empregada. Jean Manzon criou um pequeno truste: para ele não
interessa que o filme curto de arte se desenvolva no Brasil, pois isto
apagaria a sua qualidade defendida por certos jornalistas reacionários,
como Rubem Braga, que encontra no combate ao cinema brasileiro uma boa
válvula de escape para suas frustrações artísticas.
Incrivelmente, o Instituto Nacional de Cinema Educativo
não tem verba para se desenvolver, apesar dos esforços
de Humberto Mauro. Aliás, no INCE, apenas Humberto Mauro deveria
trabalhar, criando condições de colaboração
aos novos cine-documentaristas, como no caso de Aruanda. Para
as instituições especializadas há falta de verbas,
embora haja dinheiro para teatro, música, pintura e dinheiro
a rôdo para prêmios literários. Não que cinema
seja fonte de renda e que no Brasil todos nós desejemos fazer
best-sellers.
O problema é primário e ao mesmo tempo grave:
um poeta pode escrever seu poema numa folha de papel que encontra na
redação do jornal. E depois ainda recebe quinhentos cruzeiros
pelo ato publicado. O cinepoema custa trezentos mil cruzeiros, quinze
ou vinte dias de filmagens, outro tanto nos laboratórios, grande
luta para exibição e nem um cruzeiro de volta. Entenderam
o drama do cineasta no Brasil? Então, se o sujeito é íntegro
e não se entrega:
a) à demagogia nacionalista, arregimentando incautos
entusiasmados para o sacrifício gratuito na equipe, onde muitos
dão até o sangue "por amor febril ao cinema brasileiro";
b) aos filmes publicitários, onde tem cinqüenta
mil cruzeiros mensais e onde engavetamos compromissos culturais em troca
do pagamento certo do aluguel, prostituindo a linguagem cinematográfica
até mesmo em chantagens políticas;
c) às co-produções internacionais
de picaretagem — Brasília — Inc., levando estrangeiros desonestos
tipo Camus para os mais belos e misteriosos cantos dos brasis, abrindo
nossa virgem matéria para a produção estrangeira,
entregando uma divisa industrial como quem exporta areia monasítica
de contrabando;
ele é obrigado a disputar uma produção
em bases honestas. E, para início, tenta o curta-metragem, patrocinado
ou por conta própria. Se o filme servir de alguma coisa, serve
de cartão de visitas: o maior ridículo de hoje no Brasil
é o rapaz se apresentar como diretor de cinema. A praça
está cheia e os trabalhos do sr. Tanko são os mais evidentes
exemplos do que produzimos com intensidade. Por isto, é preciso
ter o curta-metragem debaixo do braço para conversar com mais
segurança. Estamos, ridículos e impotentes, na fase do
mais primitivo pioneirismo e somente um levante de consciência
intelectual (o que é impossível) poderia determinar os
seguintes impedimentos:
a) que um diretor de cinema abandone uma sala de montagem
e venha para o Rio tratar pessoalmente da publicidade, convencer jornalistas
que não se interessam pelo cinema brasileiro, salvo dois ou três
exemplos. Luta o cineasta no centro de um problema, salientado por Ely
Azeredo como fundamental numa produção. Mas jamais um
repórter é designado pela redação de qualquer
jornal para entrevistar um cineasta brasileiro, mesmo se ele chega em
Cannes e é convidado a dirigir uma novela de Georges Simenon
na Suíça, pelo produtor Westhler, que lançou o
nome de Fred Zinneman; este cineasta chama-se Roberto Faria, diretor
de Cidade Ameaçada, considerado na Europa rebento dos mestres
do policial, John Huston & Hitchcock, sem nunca ter vistado uma
cinemateca, do que muito se lamenta e do que vai cuidar de agora em
diante, caso algum crítico se disponha a auxili -lo.
b) que um filme de curta-metragem seja imposto ao exibidor
mediante pagamento de cem mil cruzeiros, embora haja uma lei de proteção
ao filme brasileiro. O que h de mais grave, porém, é
que o reinado do jagunço desceu na praça carioca e alguns
exibidores carregam capangas armados a tiracolo, a fim de evitar discussões
com os produtores.
Vemos, então, porque um jovem cineasta faz seu
filme de curta metragem e qual o destino deste filme: a prateleira e
o prejuízo. Vimos, no início, que o documentário
no Brasil, salvo Humberto Mauro, não existe. Veremos agora que
ele nasce, fruto do trabalho atual de dois grupos de novíssimos
cineastas, um do Rio e o outro da longínqua e árida Paraíba
do Norte. Não vamos considerar nesta análise, outros filmes
curtos de importância como Rampa, de Luiz Paulino dos Santos,
ou Manuel Bandeira, de Joaquim Pedro. Estes rapazes também
pertencem ao mesmo grupo, cuja sede é no Rio e para o qual convergem
as colaborações do movimento que nasce na Bahia, em Minas,
Paraíba e mais cedo ou mais tarde no Rio Grande do Sul. Mas passemos
aos documentários, Arraial do Cabo e Aruanda, como
fatos fílmicos, fatos formais, o que é mais importante
no resultado final de todos os sacrifícios. E, colocando de vez
a situação: que, em projeção, pouco nos
interessam mais as condições de trabalho, já que
ao crítico e ao espectador vale apenas o filme enquanto filme,
arte. Mais uma vez, diante do ponto-de-vista verdadeiramente crítico,
o cineasta sofre outra pressão no Brasil: não realiza
o que prevê no roteiro. O poeta realiza, o cineasta nunca. Mas,
como dissemos, não nos importará agora que Paulo Saraceni
& Mário Carneiro (Arraial do Cabo), ou Linduarte Noronha
& Rucker Vieira (Aruanda) tenham passado fome e frio em Cabo
Frio e Serra da Talhada, respectivamente. Vamos, diretos, aos primeiros
sinais de vida do documentário brasileiro.
ARRAIAL DO CABO (Saga Filmes)
Ficha técnica: Arraial do Cabo, realização
de Mário Carneiro (fotografia) e Paulo Saraceni (direção);
texto de Cláudio Mello e Souza, narrado por Ítalo Rossi;
produtores associados: Joaquim Pedro, Sérgio Montagna e Geraldo
Markan; letreiros sobre gravuras de Goeldi; produzido sob patrocínio
do Museu do Índio. Condição: documentação
antropológica. Tema: Arraial do Cabo, cidade de cultura pesqueira,
tomada de súbita industrialização. Conflito de
trabalho: operários versus pescadores. Material: a cidade primitiva,
o mar, os peixes e os homens.
Embora, em tese, Mário Carneiro tenha sido o cinegrafista
e Paulo Saraceni o diretor, verdade é que Arraial do Cabo
é um produto conjunto dos dois cineastas amadores. Mário
Carneiro não é somente um fotógrafo. mas um arquiteto
& gravador com sensibilidade acima de um simples técnico.
Havia realizado alguns filmes em 16mm, sem maiores pretensões.
Paulo Saraceni realizou uma curta-metragem experimental, Caminhos,
de efeitos desastrosos, mas que possuía, em algumas seqüências,
aquela denúncia básica do cineasta: a imagem-expressão
e a montagem criativa. Quando tomou o encargo de Arraial do Cabo,
Paulo Saraceni buscou, imediatamente, as mesmas coisas: a imagem sem
narrativa, sem literatura, sem descrição. Evitou a panorâmica,
recurso discursivo, e optou pela câmara fixa, para registro direto
do material que seria trabalhado na montagem.
Arraial do Cabo, porém, tem um defeito estrutural:
contém três filmes no mesmo filme. São três
fases distintas, excedentes em si, como filmes isolados, mas que, em
conjunto, resultam falhos porque condicionam a monotonia ao máximo.
a) o início: gravuras de Goeldi, pescadores e peixes.
Em cortes rápidos, a cidade, reambientada na montagem e não
discursada em panorâmicas. Planos de conflito, um pequeno universo
surge e é subitamente invadido pelos ruídos da fábrica,
quando caminhões pesados invadem as ruas primitivas. O conflito
nasce em seqüências precisas e o operário cresce no
elevador que sobe entre sinistras arquiteturas da fábrica. Eis
o primeiro filme.
b) o segundo filme, um cine-poema total, é a pescaria.
O impacto é a morte dos peixes, quando os primeiros planos ultrapassam
novamente o caráter ilustrativo e ganham condição
de conhecimento. O peixe é salgado por uma velha, cujas faces
estão cortadas pelas rugas do sal e do mar. No tempo exato de
morte, os peixes pulam no mesmo plano, entre as redes, e morrem tragicamente.
A criança anda entre as pernas dos pescadores, dissolvida em
long-shot.
O mar é um desafio aos homens. O que, tradicionalmente,
é uma epopéia, reverte-se em lirismo. É um ponto
dúbio, na intenção, na idéia central: a
insistência nos homens e no mar ganha universo poético,
embora nos pareça que a câmara procura apenas uma analítica
antropológica dos pescadores. Todavia a excelência dos
recursos visuais, inventivos em cada take, e a montagem cujo ritmo não
se deixa levar pela demagogia do corte-efeito plasmam o novo mundo marítimo.
Erra porém o realizador na música. Um violão monocórdio
arrebenta os nervos depois de cinco minutos de mar e segue por mais
oito minutos, para só quebrar a melodia na seqüência
da morte dos peixes. O que liquida também a seqüência
são alguns atores (ou pescadores), evidentemente mal dirigidos:
um homem olha o mar em três tempos, com os olhos aos trancos e
barrancos. O plano deve ser cortado. E, outros, andam duros, como se
andassem sobre uma linha de gás, aliás o método
natural da maioria de nossos diretores de teatro e de cinema, que colocam
o ator em função mecânica, quando sua existência
é orgânica, quer em uma ou outra modalidade de histrionismo.
Indiscutivelmente é o domínio sobre o mar
que marca o trabalho de Mário Carneiro e Paulo Saraceni. Um mar
que deixa de ser decorativo, que deixa de ser limite, que se liberta
da câmara. Não encontramos filiação de nenhuma
escola de documentários clássicos e identificamos como
pré-disposição teórica o desejo de romper
com o academismo, de não respeitar a continuidade tradicional.
Caso o filme volte à moviola e seja cortado no que há
de ruim (os atores andando e a repetição de dois ou três
ângulos) a obra-prima estará confirmada. A montagem — isto
não mais se discute —, é a criação do filme.
E o material recolhido por Mário Carneiro, cuja plasticidade
é moderna e depurada, longe de Figueroa e dos crepúsculos
silhuetados, resiste ainda a muitos e muitos cortes.
c) o terceiro filme é o encontro dos operários
com os pescadores. É o melhor de todos. É certo que os
atores continuam ainda mal dirigidos, mas já então o homem
está organicamente ligado ao fato e a câmara está
livre de compromissos. Enquanto os homens dançam no bar, um corte
mostra em long-shot um homem que, sozinho, discursa na praça.
Sua voz é dissolvida pelos ruídos e pela música.
Mas sabemos que ele concentra em sua anomalia o drama da cidade, o pathos
da civilização primitiva, invadida pela máquina.
É um clima fantástico que, por si só diploma Paulo
Saraceni como cineasta.
Mas o desastre incompreensível é quando
estas três partes resultam montadas no mesmo filme. O erro está
na segunda parte, a pescaria. O corte do operário subindo o elevador
da fábrica prevê que entre peixe e máquina será
criado o conflito. Mas o mar seduz o cineasta e ele prefere a reverberação
plástico-rítmica, abandonando a espinha dorsal. Embora
o mar esteja sem compromissos, porque é válido esteticamente,
não funciona na dramaturgia. Surge então uma contradição:
os valores estéticos existem no mar mas não funcionam
no filme. Enquanto o cineasta se realiza como poeta, fracassa como documentarista
antropológico. Isolada, a seqüência do mar, é
como já dissemos. No miolo do filme é cansativa e logicamente
sem maior sentido. Não que aqui desejemos um filme-funcional,
segundo a cartilha acadêmica, o que seria absurdo. Mas o filme-moderno
jamais será o filme gratuito. A câmara é um instrumento
aparentemente de fácil manejo. Hoje, um cineasta amador julga
que a câmara torta ou de cabeça para baixo é vanguarda.
Ou que o máximo de primeiros planos chocantes seja montagem.
O melhor em Arraial do Cabo é a economia de close-ups
e a rigidez arquitetônica do enquadramento e da composição.
Os amadores não são mais experimentais, embora o segundo
ato seja longo demais por lirismo e termina prejudicando a força
total do filme, como elo do primeiro e do último. A modernidade
em Arraial do Cabo está na inventiva em progresso, na
autenticidade dos criadores que esqueceram os mestres (e não
se faz filmes com modelo de A, B ou C junto ao plano de produção),
apesar de Paulo Saraceni, como cada um de seus colegas, ter seus mestres
de cinemateca, que não interessam no caso, uma vez que foram
engavetados. E é desta independência cultural que nasce
o filme brasileiro. Não porque tem temas nacionais, conforme
ditam teóricos do nacionalismo, repetindo as fórmulas
que vêm desde o passado indianismo de Gonçalves Dias. A
estes reformadores, que desconhecem a revisão histórica
da cultura brasileira, gostaríamos de lembrar que hoje José
de Alencar escreveria sobre favela, se em seu tempo escreveu sobre Iracema.
E que favela não é bossa nova. Para isto, basta se ter
Lima Barreto e Aluísio Azevedo. A arte brasileira precisa se
nacionalizar através de sua linguagem, de sua forma, de sua expressão,
porque os temas nacionais são logicamente os temas que envolvem
o artista. É preciso ainda saber fazer um bom take, um bom verso,
uma boa prosa para criar coisas novas e nacionais. Em teatro, seria
o caso dos autores saberem a língua desde o tempo de Anchieta
para não cometer sandices verbais. Mas estamos falando de cinema
e passemos a Aruanda.
ARUANDA (NORONHA E VIEIRA)
Ficha técnica: Aruanda, realização
de Linduarte Noronha (roteiro e direção) e Ruecker Vieira
(fotografia e montagem); realizado na Serra da Talhada, Paraíba
do Norte, no antigo quilombo que hoje vive da cultura cerâmica,
absolutamente primitiva. Produção sob o patrocínio
do Instituto de Pesquisas Sociais Joaquim Nabuco, Recife, em colaboração
com o Instituto Nacional de Cinema Educativo e da Associação
de Críticos Cinematográficos da Paraíba. Condição:
documentação sociológica. Tema: o Quilombo da Talhada
e a vida na paisagem árida. Música original popular escolhida:
tambores e gaita. Na Paraíba, ao que sabemos, nunca houve cinema.
Mas há cineclubes, críticos e círculos de estudos
cinematográficos. A Paraíba vive culturalmente ligada
a Pernambuco, onde existem muitos poetas, um teatrólogo respeitável
(Ariano Suassuna) e muitos estudiosos de Ciências Sociais. Em
Pernambuco já houve cinema no passado. Mas tudo morreu. Linduarte
Noronha e Ruecker Vieira não parecem ser rapazes de cinemateca.
Desconhecem as leis gramaticais da montagem e devem ter assistido a
alguns documentários, mas talvez nenhum de grande importância.
São dois primitivos, dois selvagens, diríamos, com uma
câmara na mão. Mas Aruanda é um documentário
de grandes qualidades, é um filme de criação, é
um filme. Não traz um grande momento que possa ser comparado
a Arraial do Cabo. Mas possui a organicidade que outro deixou
de ter. Aruanda não é nem acadêmico nem revolucionário.
Vai sendo uma coisa e outra e resulta em filme. Começa com ficção.
Vejamos como Noronha passa da ficção à realidade
e como arma um documentário inédito na história
do cinema brasileiro. E, como prova, que pobreza de materiais é
mito. Embora as deficiências técnicas não possam
levar o filme a festivais ou mesmo a uma carreira comercial, tudo isto
deixa de existir. Comparemos os dois nortistas a dois cantadores populares,
que são poetas melhores que a maioria dos vates nacionais.
O Quilombo da Talhada restou dos antigos quilombos. Um
preto e sua família, Zé Bento, chegou lá e construiu
uma aldeiola. As gentes que vieram depois fizeram e continuam fazendo
cerâmica. Vendem nas feiras próximas. É uma civilização
na idade do barro, com trezentos anos de atraso.
As origens de Aruanda, a cidadezinha, foi encenada num
flash-back dentro do próprio documentário e que
surge logo no começo do filme, com atores e tudo de um filme-ficção.
Toda a caminhada é feita através de uma terra ensolarada
e remota. Os cortes são descontínuos, os travellings
são balançados, a fotografia muda de tonalidade todo segundo
mas Noronha e Vieira levam Zé Bento até o local da antiga
Aruanda. Uma força interna nasce daquela técnica bruta
e cria toda hora um estado fílmico que enfrenta e se impõe.
Depois deste flash-back, temos a vida da cidade. E a construção
dos potes de barro que serão vendidos. É o mesmo tema
de pescaria em Arraial do Cabo. Mas o que é lirismo no
primeiro documentário não passa de angústia em
Aruanda. A moça faz o pote com suas mãos. Os cortes
são ajustados ao tempo-ação. Quando pronto, significa
outra árdua luta na aldeia longínqua à feira, onde,
entre ruídos de mercadores, aquele produto é vendido.
A semana seguinte é o estabelecimento do ciclo de séculos
a séculos, descoberto pelos cineastas da Paraíba do Norte.
A montagem é desastrosa e temos a impressão
de um Paisà no Nordeste.
Os rapazes estão próximos àquele
fantástico Rossellini de Paisà e Roma, Cidade
Aberta, o neo-realismo trágico, da miséria material
como ela mesma, em seu caráter poluído das superfícies
na terra e na cara dos homens. De uma coisa, porém, ficamos certos:
Aruanda não quis ser academia e a narrativa está
em último plano, como em Arraial do Cabo.
Noronha e Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua,
no filme incompleto. Aruanda, assim inaugura também o
documentário brasileiro nesta fase do renascimento que atravessamos
apesar de todas as lutas, de todas as politicagens de produção.
Pela primeira vez, sentimos valor intelectual nos cineastas que são
homens vindos da cultura cinematográfica para o cinema, e não
do rádio, teatro ou literatura. Ou senão vindos do povo
mesmo, com a visão dos artistas primitivos, criadores anônimos
longe da civilização metropolitana, como no caso dos dois
paraibanos.
Então, quando nascem novos filmes de longa-metragem,
das mãos e do talento de Khouri, Lima Barreto, Trigueirinho,
Roberto Santos e Roberto Faria, Nélson Pereira dos Santos e mais
outros, os filmes curtos começam a surgir de Paulo Saraceni,
Mário Carneiro, Vieira e Noronha, Luís Paulino dos Santos,
Joaquim Pedro, Marcos Farias, Gerson Tavares etc. O curto cresce e,
por mais que sejamos visionários, afirmaremos que a cultura brasileira
está entrando na idade do cinema, quando o velho mundo consome
o último pensamento de uma débil nouvelle-vague. Isto
será um bem ou um mal?
Glauber Rocha
(publicado originalmente no Suplemento Literário do Jornal do
Brasil)