Década de 90 (III)
Por uma antologia imaginária




Dias Melhores Virão

Em artigo intitulado paradoxalmente "A permanente memória do cinema" (Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 15 de dezembro de 1996), o crítico de cinema Rudá de Andrade narra de modo conciso os primeiros passos e acontecimentos que culminaram com a constituição da Cinemateca Brasileira, situada oficialmente em São Paulo há 44 anos. Reconstitui, oportunamente, a trajetória histórica cujo caráter político remete a um problema bastante familiar para estudantes, pesquisadores e artistas envolvidos com o cinema nacional. Em primeiro lugar, busca lembrar passo a passo os caminhos e descaminhos desses primórdios, desde o Clube de Cinema --- projeto capitaneado por Paulo Emílio, que perdurou após sua prisão e exílio --- até a fusão com o MAM/SP, momento a partir do qual o projeto passou a se chamar Sociedade Civil Cinemateca Brasileira. Assim, Rudá nos conduz pelos acontecimentos de uma época em que a crítica cinematográfica e o público encaravam a militância e divergiam claramente com o poder estabelecido, cuja intenção sempre esteve a serviço de interesses estrangeiros. Não é à toa que o subtítulo do ensaio diz que "a criação da cinemateca foi parte da onda de superação do provincianismo", pois, de fato, houve uma tomada de consciência aliada à prolíficos encontros habituais em torno de uma questão, por assim dizer, inglória para um país de "terceiro-mundo". Em segundo lugar, mesmo de modo indireto, nos mostra que nem a própria Cinemateca Brasileira possui sua história preservada e divulgada. Quando muito, um utilíssimo e antológico artigo de jornal nos esclarece: o que é a Cinemateca Brasileira? Quais suas atividades? Quando e por que nasceu? Sabemos muito pouco a respeito. O incêndio ocorrido em 1957, que destruiu boa parte de seu acervo, não é o inteiro responsável por este "estado". De um lado, a dificuldade de se desenvolver um Clube de Cinema, já nos idos de 1941, revela a persistente e longeva barreira imposta pela maioria dos distribuidores, produtores e governantes à cinematografia nacional. De outro lado, a ausência de relatos e análises referentes a esta e outras passagens do cinema brasileiro reflete o descaso com a nossa história. Entendemos que estes dois problemas, embora se encontrem separados por natureza --- um é relativo à exibição e arquivamento, outro à história --- revelam en bloc o fardo do cinema nacional em busca de sua identidade e, sobretudo, de sua capacidade de existir. Deste modo Rudá, realiza um corte específico na história da cinematografia nacional que se amplia como problema intrínseco a esta história: nossa memória fílmica, isto é, nossa possibilidade de formar uma cinemateca nacional, nossa capacidade de reconstituir fatos e análises críticas, nossa vontade de afirmar o cinema brasileiro como produto auto-suficiente. A memória fílmica está imbricada na memória política. Conhecer a história do cinema brasileiro é o primeiro passo efetivo em direção a uma consciência mais livre dos padrões impostos pela metrópole, tanto na questão da produção de filmes, como na exibição e na produção intelectual. A tão festejada — para o bem e para o mal — década de 90 não trouxe modificação a nenhum dos termos mencionados.

Se pudéssemos reconstituir todos os esforços em prol da memória fílmica brasileira obteríamos um painel de relações que expressariam duas forças simétricas. A primeira corrente, sempre em busca da preservação de filmes e dados históricos, se mostra atenta às intempéries da produção terceiro-mundista e se apresenta de modo concentrado, isto é, podemos identificá-la no trabalho das cinematecas, dos cineclubes e, sobretudo, dos críticos interessados, pois formaram e formam opiniões. Nesta lista se inscrevem tanto os trabalhos primordiais de Paulo Emílio Salles Gomes e Vicente de Paulo Araújo, entre outros, quanto os êxitos relativos, porém dignos de nota, da Cinemateca Brasileira e da Cinemateca do MAM/RJ. Na década de 90, Xavier, Bernadet e uma geração posterior representada por Inácio Araújo e Ivana Bentes, permaneceram na imprensa e isto já nos foi muito útil. Adhemar Oliveira e todo o núcleo Estação obviamente também fazem parte desta corrente.

A força de oposição ao movimento de preservação não se apresenta como força destrutiva, antes o fizesse pois reconheceríamos o inimigo. Contando com a colaboração de uma formação cultural que "se interessa pouco pelo próprio passado"1, age de forma direta e global e segue os passos do "avanço econômico" e os fluxos "inegáveis" da economia política. Direta e global porque conta com os meios de comunicação que "sanitizam" sua programação, estimulando um gosto único e distante, tornando a visita ao cinema "obsoleta" e a curiosidade histórica "desnecessária". Atentem para o número de filmes brasileiros que as redes oficiais de televisão exibem semanalmente e para a quantidade de programas cujo objeto é o cinema brasileiro. Se a questão é relembrar e, com olhos para o futuro, se interessar pelo passado, então a tv se apresenta como força de oposição a esta vontade, pois não reflete uma programação que a estimule. Do mesmo modo o governo federal não propõe soluções efetivas contra o "colonialismo" --- embora, ao longo de 104 anos, muitos artistas tenham contribuído para reverter parcialmente esta situação. Neste sentido, ainda vivemos da pertinácia destes artistas, pois o governo federal prossegue no longo caminho das leis paternalistas.

Tais leis que, ao longo dos anos, vem proporcionando "retomadas", a exemplo desta última, não resolvem o problema, pois a produção e distribuição permanecem nas mãos erradas, isto é, nas mãos de empresários e multinacionais em busca de impostos menores e monopólio de produtos. Como podemos ver, a força que contribui para o apagamento de nossa memória fílmica se faz sentir em todos os níveis sociais, graças ao alcance da tv e à obediência dos governos devidamente adequada às exigências da metrópole.

Isto nos traz, paradoxalmente, a lembrança de que nada podemos lembrar, porque nada podemos rever, e isto ocorre não porque o tempo nos separa (afinal o cinema é, de certo modo, a permanência). Ocorre porque o cinema nunca foi objeto de cuidado dos governos. E quando ele encontrou boas condições de desenvolvimento, nem os comerciantes estrangeiros responsáveis por seu advento, nem os empresários paulistas por sua "pequena industrialização", muito menos os cinemanovistas que revelaram o poder de sua poesia souberam ou tiveram oportunidade de conservar sua memória, através do arquivamento adequado e dos relatos minuciosos. E isto nos obriga, consciente que estamos da nossa história, a elaborar uma antologia imaginária como forma de afirmação da sólida moral que goza nosso cinema e que seus desatentos críticos não querem ver. Começaríamos com as imagens tiradas por Paschoal Segretto em abril de 1898, ao adentrar de paquete a Baía de Guanabara, certidão de nascimento do cinema brasileiro, para sempre perdida. Talvez esta antologia imaginária possa dar conta de um pedaço que falta para o entendimento parcial da nossa profunda questão cultural. E a pesquisa histórica, por sua vez, em mútua relação com a memória fílmica, se apresenta como dado fundamental que fornece as condições para a elaboração desta antologia.

Bernardo Oliveira




1. Paulo Emílio Salles Gomes, Pequeno Cinema Antigo, artigo publicado na revista italiana Aut Aut, março de 1969, Milão.