Década de 90 (II)
A experiência como dado político





Mal a década começava e a TVE exibiu Os sermões num sábado de carnaval, se não me engano. Se me engano, tanto faz: a proeza não esmaece. Bressane ainda não era ainda o cineasta que hoje goza de uma relativa estabilidade de produção. Perdurava em sua imagem o fardo "maldito", "difícil", etc e, de fato, Os sermões se apresentou como um enigma que, na melhor das hipóteses, fez dormir o espectador desavisado. Ao espectador "avisado", uma dupla surpresa: filme novo de Julio Bressane... estreando na TV! Lembrem: era pré-Collor, Embra em frangalhos... Como pôde Bressane, o "maldito", sobreviver em condições rarefeitas? A resposta revela a segunda surpresa para o espectador atento: o elemento TV. A TVE não bancou o filme, mas ofereceu seu espaço para a avant-premiére. Hoje está "fora de moda" mas à época muitos falavam de uma colaboração efetiva entre cinema e TV. A conversa ficou no meio do caminho, talvez por uma sábia malandragem que prefigurou os termos desta relação e constatou que o cinema não sairia tão fortalecido da parceria. Bressane, por iniciativa própria, experimentou a TV para divulgar seu cinema "maldito". O contrato com a TVE, sobre o qual prefiro calar por não conhecer seus termos, elevou o carisma do diretor perante o público e, a olhos vistos, reajustou sua produção no "mercado" nacional. A partir de Os sermões, enveredou por um estilo que primou, entre outros detalhes, pela exploração de signos culturais brasileiros e pela experiência autobiográfica e que, nem por isso, deixou de alcançar merecido "sucesso". Não que os três filmes subseqüentes (O mandarim, Miramar e São Jerônimo), êxitos relativos de crítica e público, necessitassem crucialmente da exibição pela TV. Mas, vejamos: quando um filme brasileiro — "experimental", que se diga — gozou de tal privilégio? E quando este procedimento arriscado resultaria, de certo modo, em uma década fecunda para o autor? Há condições para que isso se repita? Assim, a surpresa de uma década atrás se converte em pesar pela época atual, presa que está a seus trejeitos pseudo-democráticos.

Quando Cacá Diegues repetiu a dose, desta vez com uma produção maior e subsídios "globais", muitos — e quando falamos "muitos", falamos da imprensa — reclamaram, como se ele não tivesse o direito de utilizar a pioneira iniciativa bressaniana. No fim, Dias Melhores Virão causou seu burburinho. Concordo com Adhemar Oliveira, que à pergunta "por que caiu o investimento no cinema brasileiro?" respondeu: "é preciso jogar xadrez". Jogar xadrez, e não dama, porque xadrez é a malha fina do raciocínio, o estímulo para pensar estrategicamente o amanhã com as provisões de hoje. Então a questão é clara: se a parceria vai dar certo ou não, não interessa, pois sabemos amplamente que a TV sempre levará a melhor. Então, ajustadas às condições menos onerosas, adotar a perspectiva "parceira" como forma de: a) democratizar a experiência da fruição cinematográfica (o cinema é caro, mas todos têm um aparelho de TV); b) diversificar a fruição cinematográfica (Dias melhores virão e Os sermões exemplificam tal diversidade); c) viabilizar a realização de filmes junto aos canais de TV detentores dos "meios de produção" (não é delírio, se realmente forem ajustados os termos acima mencionados).

Uma experiência válida, porém de outra natureza foi Carlota Joaquina, de Carla Camurati. O filme pode ser considerado um marco no cinema brasileiro. Se nossa produção sempre redundou em ciclos "degenerativos", isto é, sempre definhou nas mãos "limpas" da legalidade aparente, encontramos em Carlota o inverso: renascimento do cinema nacional junto ao público. E, se já vemos de perto seu estrangulamento, este não será por meio de seus realizadores, como o quer o governo, por "reajuste fiscal", ou como o quer a imprensa especializada, por despeito ou conveniência. Nenhuma Norma Benguell justifica o ataque ao inalienável direito do cinema brasileiro de existir. E se hoje afirmamos estas palavras com razoável grau de certeza, não podemos deixar de atribuir devida importância ao Carlota Joaquina. Tanto para a cinematografia nacional quanto para o entendimento de que o público do nosso cinema não era somente uma abstração. Um público efetiva e potencialmente promissor. No Rio e em São Paulo as filas dobravam esquina. Todos disciplinadamente dispostos para ver um filme nacional, com enredo histórico, linguagem sofisticada e excelentes atores. Perguntem à Carla quanto ela tirou do bolso? Trabalho, muito trabalho. E a grana veio em forma de cooperativa, através da famigerada Lei Sarney. Observem os créditos finais do filme e confiram quantos patrocinadores ela conseguiu "captar". A questão é: Carla Camurati é uma realizadora sagaz e uma empresária convincente, que não pode ser confundida com as tristes histórias do cinema nacional. No caldeamento de duas rigorosas diretrizes, Carla cunhou uma fórmula admirável para o cinema brasileiro: a forma simples e a lógica do baixo custo. No seu caso, a lógica do baixo custo foi o dado mais interessante porque fugiu da dependência generalizada da iniciativa estatal e, assim, obteve uma grana razoável para os padrões atuais. Eis uma boa filosofia para a produção nacional. É claro que esta proposta é por demais otimista, mas vejamos: trata-se, mais uma vez, de ajustar as provisões às necessidades. Carla nos deu um indicativo por seu trabalho, e ele nos diz que a produção nacional necessita de novos padrões de produção, mais simples e baratos. Exemplos: um colega, Pablo, estudante da UFF e da Esdi/UERJ, filmou Osmundo, uma película feita em conjunto com a comunidade do Morro do Juramento, que custou merreca e é um filme muito bom. Pablo exibiu o filme para a comunidade obtendo resultados positivos. O pessoal do Mafuá do Malungo, uma espécie de cooperativa arquivista em Niterói/RJ, gravou um documentário-entrevista com o sambista João Nogueira que, só pela intenção, já tem seu valor. Outros tantos exemplos de empreendimentos guerreiros nos mostram que fazer cinema no Brasil é uma questão de reajustar padrões. É claro que nosso esforço somente não basta e nadamos contra os governos. Mas a modificação de alguns traços preconceituosos gerados por problemas, estes sim, reais, tais como distribuição e exibição, é uma incumbência social. Um medo endêmico nos leva à perguntas pertinentes: quem vai distribuir minha iniciativa? quem assistirá um filme em VHS? como exibi-lo? Carla visou o grande público porque é uma figura pública. Devemos visar nossa comunidade, como fizeram os colegas mencionados, e a experiência do cinema brotará nas mais diversas formas.

E a questão formal do filme também se apresenta como dado político quando pensamos na lógica do faz-com-quanto-tem. Porque, se admitimos por um lado, que a parceria com a TV estimula o consumo do filme brasileiro, e de outro, os custos da produção devem se adequar às possibilidades, (talvez através de cenários e roteiros mais enxutos), pressupomos uma conseqüência que efetivamente diverge com a política vigente. O tipo de filme muda, porque o estímulo à produção já não obedece aos padrões tão rígidos do grande mercado. Filma-se com as provisões possíveis. Foi assim com Eduardo Coutinho, Carla Camurati, Rogério Sganzerla, Beto Brant, Aluízio Abranches, Júlio Bressane, Neville de Almeida e Ozualdo Candeias. Isto porque muitos souberam compreender nas primeiras iniciativas como atalho, linha de fuga. Tais procedimentos prepararam psicologicamente a volta do público às salas de cinema. A Globo, com seu poder magistral, promoveu Orfeu e Tieta, e não importa se a prerrogativa para espinafrar o cinema nacional é a "falta de qualidade", porque nem mesmo os cinéfilos americanófilos podem admitir de bom grado, a total qualidade da produção que defendem em detrimento da produção nacional. Importa somente que o cinema exista, para expressar o Brasil em diversos modos e... experimentar. Tieta, O quatrilho e Central do Brasil são filmes que o gosto pessoal de quem escreve não tolera, mas defende até a morte o direito de existirem. Por quê? Porque, para que os cineastas que tanto admiro continuem a filmar, eles dependem tão somente de um mercado interno fortalecido, sem que nisso haja pretensões roliudianas ou extravagantes. Dependem apenas de soluções adequadas e isto implica buscar uma forma diferente, que não precisa deslocar-se totalmente do formato roliudiano, mas que, com certeza não precisará adestrar sua imagem, e sim, criá-la. Assim, o modo de produção determina uma nova consciência e o cineasta passa a apresentar a experiência formal como dado político. É claro que esta "nova consciência" não tem nada de nova. Toda a história do cinema brasileiro deve a esta consciência (melhor seria contingência) sua originalidade, mas, que logo se entenda: proponho um "pensamento para a prática do cinema", como tão bem formulou Cacá Diegues. E isto é um dado da atualidade que não pode escapar de nossa análise.

Todas as experiências relatadas fazem referência aos mais variados momentos da produção cinematográfica: a produção, a experimentação formal, a adequação à condição econômica, a precisão do roteiro, o cumprimento do prazo, organização interna e, sobretudo, os dois fatores primordiais: o amadorismo e a exibição democrática como forma de inserção social, na fruição cinematográfica, na manipulação e criação da imagem. Antes, Andréa Tonacci, autor da obra prima Bang Bang, realizava experiências com índios, a partir do formato Beta. Atualmente, Eduardo Coutinho é o contundente teórico que conduz no Cecip (Centro de Criação da Imagem Popular) uma turma afiada nas técnicas, realizando algumas das obras-primas desta década que já vai, jóias de reflexão e sensibilidade.

Obs.: Ivana Bentes merece menção porque conduz um dos melhores ¾ e únicos ¾ programas da tv: o Curta Brasil, que mostra tanto trabalhos antigos quanto recentíssimos e entrevista seus diretores ou críticos especializados. Projeto louvável apesar do horário pesado.

Bernardo Oliveira