Mal a década começava e a TVE exibiu
Os sermões num sábado de carnaval, se não
me engano. Se me engano, tanto faz: a proeza não esmaece. Bressane
ainda não era ainda o cineasta que hoje goza de uma relativa
estabilidade de produção. Perdurava em sua imagem o fardo
"maldito", "difícil", etc e, de fato, Os sermões
se apresentou como um enigma que, na melhor das hipóteses, fez
dormir o espectador desavisado. Ao espectador "avisado", uma dupla surpresa:
filme novo de Julio Bressane... estreando na TV! Lembrem: era pré-Collor,
Embra em frangalhos... Como pôde Bressane, o "maldito", sobreviver
em condições rarefeitas? A resposta revela a segunda surpresa
para o espectador atento: o elemento TV. A TVE não bancou o filme,
mas ofereceu seu espaço para a avant-premiére.
Hoje está "fora de moda" mas à época muitos falavam
de uma colaboração efetiva entre cinema e TV. A conversa
ficou no meio do caminho, talvez por uma sábia malandragem que
prefigurou os termos desta relação e constatou que o cinema
não sairia tão fortalecido da parceria. Bressane, por
iniciativa própria, experimentou a TV para divulgar seu cinema
"maldito". O contrato com a TVE, sobre o qual prefiro calar por não
conhecer seus termos, elevou o carisma do diretor perante o público
e, a olhos vistos, reajustou sua produção no "mercado"
nacional. A partir de Os sermões, enveredou por um estilo
que primou, entre outros detalhes, pela exploração de
signos culturais brasileiros e pela experiência autobiográfica
e que, nem por isso, deixou de alcançar merecido "sucesso". Não
que os três filmes subseqüentes (O mandarim, Miramar
e São Jerônimo), êxitos relativos de crítica
e público, necessitassem crucialmente da exibição
pela TV. Mas, vejamos: quando um filme brasileiro — "experimental",
que se diga — gozou de tal privilégio? E quando este procedimento
arriscado resultaria, de certo modo, em uma década fecunda para
o autor? Há condições para que isso se repita?
Assim, a surpresa de uma década atrás se converte em pesar
pela época atual, presa que está a seus trejeitos pseudo-democráticos.
Quando Cacá Diegues repetiu
a dose, desta vez com uma produção maior e subsídios
"globais", muitos — e quando falamos "muitos", falamos da imprensa —
reclamaram, como se ele não tivesse o direito de utilizar a pioneira
iniciativa bressaniana. No fim, Dias Melhores Virão causou
seu burburinho. Concordo com Adhemar Oliveira, que à pergunta
"por que caiu o investimento no cinema brasileiro?" respondeu: "é
preciso jogar xadrez". Jogar xadrez, e não dama, porque xadrez
é a malha fina do raciocínio, o estímulo para pensar
estrategicamente o amanhã com as provisões de hoje. Então
a questão é clara: se a parceria vai dar certo ou não,
não interessa, pois sabemos amplamente que a TV sempre levará
a melhor. Então, ajustadas às condições
menos onerosas, adotar a perspectiva "parceira" como forma de: a) democratizar
a experiência da fruição cinematográfica
(o cinema é caro, mas todos têm um aparelho de TV); b)
diversificar a fruição cinematográfica (Dias
melhores virão e Os sermões exemplificam tal
diversidade); c) viabilizar a realização de filmes junto
aos canais de TV detentores dos "meios de produção" (não
é delírio, se realmente forem ajustados os termos acima
mencionados).
Uma experiência válida,
porém de outra natureza foi Carlota Joaquina, de Carla
Camurati. O filme pode ser considerado um marco no cinema brasileiro.
Se nossa produção sempre redundou em ciclos "degenerativos",
isto é, sempre definhou nas mãos "limpas" da legalidade
aparente, encontramos em Carlota o inverso: renascimento do cinema
nacional junto ao público. E, se já vemos de perto seu
estrangulamento, este não será por meio de seus realizadores,
como o quer o governo, por "reajuste fiscal", ou como o quer a imprensa
especializada, por despeito ou conveniência. Nenhuma Norma Benguell
justifica o ataque ao inalienável direito do cinema brasileiro
de existir. E se hoje afirmamos estas palavras com razoável grau
de certeza, não podemos deixar de atribuir devida importância
ao Carlota Joaquina. Tanto para a cinematografia nacional quanto
para o entendimento de que o público do nosso cinema não
era somente uma abstração. Um público efetiva e
potencialmente promissor. No Rio e em São Paulo as filas dobravam
esquina. Todos disciplinadamente dispostos para ver um filme nacional,
com enredo histórico, linguagem sofisticada e excelentes atores.
Perguntem à Carla quanto ela tirou do bolso? Trabalho, muito
trabalho. E a grana veio em forma de cooperativa, através da
famigerada Lei Sarney. Observem os créditos finais do filme e
confiram quantos patrocinadores ela conseguiu "captar". A questão
é: Carla Camurati é uma realizadora sagaz e uma empresária
convincente, que não pode ser confundida com as tristes histórias
do cinema nacional. No caldeamento de duas rigorosas diretrizes, Carla
cunhou uma fórmula admirável para o cinema brasileiro:
a forma simples e a lógica do baixo custo. No seu caso, a lógica
do baixo custo foi o dado mais interessante porque fugiu da dependência
generalizada da iniciativa estatal e, assim, obteve uma grana razoável
para os padrões atuais. Eis uma boa filosofia para a produção
nacional. É claro que esta proposta é por demais otimista,
mas vejamos: trata-se, mais uma vez, de ajustar as provisões
às necessidades. Carla nos deu um indicativo por seu trabalho,
e ele nos diz que a produção nacional necessita de novos
padrões de produção, mais simples e baratos. Exemplos:
um colega, Pablo, estudante da UFF e da Esdi/UERJ, filmou Osmundo,
uma película feita em conjunto com a comunidade do Morro do Juramento,
que custou merreca e é um filme muito bom. Pablo exibiu o filme
para a comunidade obtendo resultados positivos. O pessoal do Mafuá
do Malungo, uma espécie de cooperativa arquivista em Niterói/RJ,
gravou um documentário-entrevista com o sambista João
Nogueira que, só pela intenção, já tem seu
valor. Outros tantos exemplos de empreendimentos guerreiros nos
mostram que fazer cinema no Brasil é uma questão de reajustar
padrões. É claro que nosso esforço somente não
basta e nadamos contra os governos. Mas a modificação
de alguns traços preconceituosos gerados por problemas, estes
sim, reais, tais como distribuição e exibição,
é uma incumbência social. Um medo endêmico nos leva
à perguntas pertinentes: quem vai distribuir minha iniciativa?
quem assistirá um filme em VHS? como exibi-lo? Carla visou o
grande público porque é uma figura pública. Devemos
visar nossa comunidade, como fizeram os colegas mencionados, e a experiência
do cinema brotará nas mais diversas formas.
E a questão formal do filme
também se apresenta como dado político quando pensamos
na lógica do faz-com-quanto-tem. Porque, se admitimos
por um lado, que a parceria com a TV estimula o consumo do filme brasileiro,
e de outro, os custos da produção devem se adequar às
possibilidades, (talvez através de cenários e roteiros
mais enxutos), pressupomos uma conseqüência que efetivamente
diverge com a política vigente. O tipo de filme muda, porque
o estímulo à produção já não
obedece aos padrões tão rígidos do grande mercado.
Filma-se com as provisões possíveis. Foi assim com Eduardo
Coutinho, Carla Camurati, Rogério Sganzerla, Beto Brant, Aluízio
Abranches, Júlio Bressane, Neville de Almeida e Ozualdo Candeias.
Isto porque muitos souberam compreender nas primeiras iniciativas como
atalho, linha de fuga. Tais procedimentos prepararam psicologicamente
a volta do público às salas de cinema. A Globo, com seu
poder magistral, promoveu Orfeu e Tieta, e não
importa se a prerrogativa para espinafrar o cinema nacional é
a "falta de qualidade", porque nem mesmo os cinéfilos americanófilos
podem admitir de bom grado, a total qualidade da produção
que defendem em detrimento da produção nacional. Importa
somente que o cinema exista, para expressar o Brasil em diversos modos
e... experimentar. Tieta, O quatrilho e Central do
Brasil são filmes que o gosto pessoal de quem escreve não
tolera, mas defende até a morte o direito de existirem. Por quê?
Porque, para que os cineastas que tanto admiro continuem a filmar, eles
dependem tão somente de um mercado interno fortalecido, sem que
nisso haja pretensões roliudianas ou extravagantes. Dependem
apenas de soluções adequadas e isto implica buscar uma
forma diferente, que não precisa deslocar-se totalmente do formato
roliudiano, mas que, com certeza não precisará adestrar
sua imagem, e sim, criá-la. Assim, o modo de produção
determina uma nova consciência e o cineasta passa a apresentar
a experiência formal como dado político. É claro
que esta "nova consciência" não tem nada de nova. Toda
a história do cinema brasileiro deve a esta consciência
(melhor seria contingência) sua originalidade, mas, que logo se
entenda: proponho um "pensamento para a prática do cinema", como
tão bem formulou Cacá Diegues. E isto é um dado
da atualidade que não pode escapar de nossa análise.
Todas as experiências relatadas
fazem referência aos mais variados momentos da produção
cinematográfica: a produção, a experimentação
formal, a adequação à condição econômica,
a precisão do roteiro, o cumprimento do prazo, organização
interna e, sobretudo, os dois fatores primordiais: o amadorismo e a
exibição democrática como forma de inserção
social, na fruição cinematográfica, na manipulação
e criação da imagem. Antes, Andréa Tonacci, autor
da obra prima Bang Bang, realizava experiências com índios,
a partir do formato Beta. Atualmente, Eduardo Coutinho é o contundente
teórico que conduz no Cecip (Centro de Criação
da Imagem Popular) uma turma afiada nas técnicas, realizando
algumas das obras-primas desta década que já vai, jóias
de reflexão e sensibilidade.
Obs.: Ivana Bentes merece menção
porque conduz um dos melhores ¾
e únicos ¾
programas da tv: o Curta Brasil, que mostra tanto trabalhos antigos
quanto recentíssimos e entrevista seus diretores ou críticos
especializados. Projeto louvável apesar do horário pesado.
Bernardo Oliveira