Arraial, cinema novo e câmara na mão




Arraial do Cabo
de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro

I

Cinema novo em marcha: volta da Europa Paulo César Saraceni, após um ano e meio de trabalho com os jovens realizadores italianos, contato técnico e vivência com o moderno cinema europeu, sucesso de três prêmios importantes para Arraial do Cabo, criação conjunta com Mário Carneiro.

O cinema brasileiro ganha este nome: Lima Barreto com seus documentários e O Cangaceiro, Nélson Pereira dos Santos com Rio 40 Graus e Walter Hugo Khoury com Na Garganta do Diabo são três nomes ativos que romperam as barreiras tímidas do colonialismo cultural, arrancaram prêmios e despertaram atenções da crítica. Antes, um documentário de Gérson Tavares, O Grande Rio, também desviou olhares para o selvagem Brasil. Agora, a dupla Saraceni e Mário Carneiro. Em três testes diferentes — Bilbao, Firensi e Santa Margherita — Arraial do Cabo, antes até mesmo menosprezado no Brasil, venceu com facilidade. Na Cinemateca Francesa — diante do grand monde — cinco minutos de aplausos. No famoso Centro (Academia de Cinema da Itália) é distinguido pela professora Rosada, como exemplo, e vai a aulas práticas. E Saraceni não estuda, dá aulas.

II

A descompostura intelectual do cinema brasileiro — sua falta de prestígio, seu abandono político e econômico, sua trágica destinação à demagogia, aventureirismo, teoria de algibeira — subitamente levanta a cabeça. O furo de Arraial do Cabo é mais importante para o cinema nacional do que tudo que se faz agora: as briguinhas, a euforia industrialista, o culto do ouro corrompido que virá com a co-produção. Incrível, como apenas dois ou três nomes de nossa crítica — quando possuímos uma grande equipe — se detiveram na análise deste pequeno filme. Alguns dos nossos maiores nomes não viram, inclusive, Arraial do Cabo. Há muito silêncio duvidoso no ar. Já disse, em artigo passado, que este documentário — reconhecido na Europa pela crítica (não é mentira, que até se falou em nomes como os de John Ford e Luis Buñuel...) — poderia atemorizar certos tabus humanos e profissionais do mal iluminado palco cinematográfico de nossa terra, desde quando provava — na insistência de três prêmios — que não se necessita de milhões para um bom filme; que cinema moderno é um problema de inteligência, coragem, vivência, sobretudo sentido de profissionalismo; que cinema moderno é o cinema de autor, por isto é o cinema independente e para ser isto preciso ser digno (em todas as direções) e somente os jovens (que é uma questão de verdade e não de idade) podem e estão aptos para esta revolução que se anuncia no País e já começa a despertar as ironias iniciais da geração que teve uma oportunidade e não soube aproveitá-la; desta mesma geração que, diante de outra chance (vide o crédito do BB), já tem uma concorrência de sangue vibrante, de sangue que não se quer diluir, mas ser derramado na obsessão de libertar o cinema nacional do colonialismo econômico e intelectual.

III

Não tem a menor importância a reação. É débil e basicamente não propõe um debate em termos de inteligência. As provocações de certa dupla crítica não suportam argumentações lógicas. E uma briga em termos de desaforos não é o modelo mais corajoso, pois seria mesmo uma falta de piedade, caso voz junta de todos os cinenovos investisse contra os dominadores fictícios deste ainda mais fictício cinema nacional. Se adotamos o nome de cinemanovo, não foi por imitação. É porque — certos ou errados — envergonha dizer que fazemos ou vamos fazer cinema brasileiro ombro a ombro com aqueles que, até agora, apenas gastaram dinheiro com imponências fracassadas.

É bom que agora se diga a verdade: os chamados filmes sérios fracassaram nas bilheterias porque eram provincianos, mal feitos, culturalmente desligados de nossa realidade, covardes nos argumentos e na realização quadradinha da imitação de cinemateca ou de Hollywood. E é bom, também, que os estrangeiros dinamitadores da Vera Cruz, o bloco profissional dos coquetéis, das delegações e dos prêmios fabricados e produtores que estouram orçamentos em pés-de-meia, e diretores improvisados e funcionários de comissões saibam do seguinte: só existe ilusão neste cinema brasileiro e, salvo o nome daqueles diretores de trinta já citados, Carlos Manga é o único artesão respeitável, porque mesmo na chanchada, realizou uma comunicação com o grande público dentro de uma linguagem insegura, às vezes vulgar, mas reveladora de momentos respeitáveis (e pessoais) nunca antes acontecidos nas famosas produções de equipe da Vera Cruz, Multifilmes, Maristela — oportunidades industriais assassinadas pela auto-suficiência e diletantismo dos alunos formados no IDHEC.

O cinenovo brasileiro não quer co-produção, não quer empréstimos caudalosos, não quer distribuição compulsória. Se a boa-fé de Flávio Tambellini deseja ajudar os novos cineastas brasileiros, pense no seguinte:

a) documentários para os jovens, com inteira liberdade de criação;

b) prestígio para os jovens na carreira do ouro, ou seja, na disputa de financiamento bancário; o jovem vai entrar sem títulos, sem o brilhante passado dos veteranos e com roteiros de idéias (o que pode ser perigoso, caso se deseje, apenas, fomentar a fabricação de filmes...);

c) abrir o INCE aos jovens produtores — fornecendo o material disponível; fazer com que laboratórios paralisados, como o do Ministério da Agriculutura, entrem em funcionamento, para servir aos jovens; desencavar as várias câmaras de filmagem que estão enferrujando em pratileiras de várias repartições federais (já estamos fazendo um levantamento) e colocá-las à disposição dos jovens.

Queremos um crédito de confiança, ainda que não seja movido pela crença no talento, pelo menos o seja pela simpatia original que cada homem civilizado possa ter por esta verdade desmoralizada pelo romantismo: a juventude acesa para o trabalho.

Não desejamos nada mais. E caso não apareçam imediatamente estas ajudas — de elementos que existem e não precisam ser importados —, vamos fazer nossos filmes de qualquer jeito: de câmara na mão, de câmara 16mm (se não houver 35mm), improvisando nas ruas, montando material já existente. Desde Caminhos, de Paulo Saraceni, e O Maquinista, de Marcos Farias, estamos produzindo, e, agora, já temos dois longa-metragem, inclusive. Os documentários individuais continuarão. Couro de Gato, de Joaquim Pedro, já foi vendido em Paris; Mário Carneiro vai lançar outro curto, sobre gravadores; Diegues e Davi Neves terminam O Domingo; Leon Hirschmann e Marcos Farias preparam já um longo, em episódios, para este ano. Favela, com Miguel Borges e Sílvio Pereira de Melo, enquanto Saraceni prepara um longo.

Não, senhores temerosos de perder a coroa, não é para rir. É pra chorar!

Glauber Rocha
(publicado originalmente no Suplemento Literário do Jornal do Brasil)