Tudo É Brasil
de Rogério Sganzerla





Tudo É Brasil de Rogério Sganzerla

Em sua época de lançamento, Tudo É Brasil foi mais creditado a uma possível louca mania de Rogério Sganzerla por Orson Welles do que por qualquer outra coisa. Vendo mais de perto, o filme se transforma completamente: Tudo É Brasil é o filme mais político, mais emocionante, mais bonito e mais perfeito que o Brasil deu na década de 90, uma comovente saga de um estrangeiro por um país exótico, perigoso, divino e maravilhoso.

A palavra saga não é aqui uma metáfora. Na década em que se mais apelou para o extrerior, em que o Brasil mais olhou para fora para tentar se encontrar, Sganzerla fez um filme em que o estrangeiro é que olha para o Brasil para ver as belezas que ele tem. Claro, a intriga é mais complexa: envolve a posição do artista com os grandes estúdios, a questão da liberdade artística, a vida de um gênio, mas Tudo É Brasil é acima de tudo uma antropologia da antropologia do Brasil. Radicalizando o processo de deglutição de tudo que é estrangeiro caro a Oswald de Andrade & os concretos (os Campos e Pignatari), Sganzerla filma o olhar que deita Orson Welles sobre um Brasil comovente e vivo, feito mais de pessoas e costumes do que de paisagens e lugares-comuns.

É apenas dessa forma que o cinema brasileiro dos anos 90 pode filmar o Brasil. Com o clamor nacional por um "papel mundial", pela relação do Brasil com o mundo globalizado, redescobrir o Brasil era a coisa mais impossível. É isso o que permite Sganzerla traçar a estratégia de olhar o país a partir dos olhos de um outro, de um estrangeiro privilegiado que é Orson Welles. A partir do olhar do "gênio", do gigante que mudou a história do cinema com seu primeiro filme e acabava de terminar o segundo, Sganzerla pinta na tela a mais bonita Aquarela do Brasil que já foi filmada no país — música que, por acaso, ele já havia filmado nas gravações do disco Brasil de João GIlberto em companhia de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

A saga do nosso estrangeiro Welles pelo Brasil é cheia de problemas interopretativas, altos, baixos, filmes interompidos (Tudo É Verdade), problemas com autoridades, insinuações, amores e amizades. Sganzerla filma essa saga como um grande mosaico, onde passam pelo table-top detalhes de fotografias, desenhos, pinturas, desenho animado, imagens de Welles, de documentaristas e pouquíssimas imagens da lavra do próprio Sganzerla (carnaval e algumas imagens do anterior Nem Tudo É Verdade).

Se a dupla dinâmica do cinema marginal, Bressane e Sganzerla, estava desde os anos 80 à procura de uma nova interpretação e recuperação da cultura brasileira, Tudo É Brasil é um tipo de fim de pesquisa e de recomeço. Primeiramente por seu personagem: Babo, Mário Reis, Noel Rosa. Oswald traziam uma parte do Brasil, mas não o Brasil como um todo: restava a captura de um olhar de fora, de um olhar de antropólogo extasiado, de um degustador selvagem em busca de um paraíso. O olhar de Welles sobre o Brasil procura englobá-lo todo nessa Ítaca simbólica: Brasil é tudo, tudo é Brasil. Em segundo lugar pelo encaminhamento do filme, pelas escolhas estéticas e narrativas do filme (que afinal, com todas as aspas do mundo, é um documentário): Welles sendo apresentado aos instrumentos do samba por Carmen Miranda dura muito mais do que os problemas que teve o filme Tudo É Verdade ou os cortes do filme Soberba pelo estúdio. Em terceiro lugar, pelo próprio estilo de Sganzerla: Tudo É Brasil realiza um curto-circuito de referências, de formatos de imagem em movimento, e investe esteticamente em tudo, inclusive nas legendas do filme (as traduções dos depoimentos e das falas de Welles).

Tudo É Brasil tem uma imagem central: o marinheiro que afunda num barquinho de papel. Em todo momento de decepção, de ameaça externa ou de um perigo qualquer, aparece o marinheiro (na superfície de um desenho). Esse marinheiro pode representar diversas coisas: a tentativa frustrada de fazer cinema no Brasil (o filme de Welles que ficou inacabado), a luta do artista contra a cultura que ele preza mas que quer acabar com ele, a tênue luta para manter-se à frente num front cultural em favor de novos experimentos, de novos discursos. Mas, no meio desse difícil caminho, aprender sempre a olhar para os lados, ver as coisas belas e viver sem amargura a despeito dos problemas. Olhando o olho de Welles, fazendo a antropologia da antropologia que Welles faz do Brasil, é permitido a Sganzerla fazer do Brasil e do cinema um território único de desejo e de amor, um canto à terra e à profissão (de fé) que é tão belo quanto ardoroso. Tão inebriado e tão lúcido quanto o cancioneiro ao fazer cantar a merencória luz da lua.

Ruy Gardnier