Fé e Santo Forte
e as caras do documentário brasileiro





Santo Forte de Eduardo Coutinho

É raro quando no mesmo país se produzem dois documentários que tratam do mesmo tema. Além de raro, é inevitavelmente muito rico para que se possa analisar não só os filmes em questão, mas a partir do olhar de seus diretores traçar-se um painel geral das possibilidades do documental como um gênero, e quanto as opções exercidas. Nos extertores do milênio (segundo alguns, é claro) surgiram , de Ricardo Dias e Santo Forte, de Eduardo Coutinho, dando margem à discussão acima.

Talvez a primeira questão seja: são realmente dois documentários sobre o mesmo tema? Isso porque a definição de tema é muito vasta. Pode-se dizer que em ambos se fala principalmente de fé, e mais especificamente da fé como fenômeno popular no Brasil atual. Ainda assim, se poderia discutir que os enfoques dos diretores é tão completamente diverso que não chegam a ser dois documentários sobre o mesmo tema.

A segunda questão da qual não se pode fugir é: como abordar estes dois filmes. Claro, se poderia tentar uma aproximação fria e descritiva. Mas essa não é a palavra de ordem neste site, e muito menos deste escritor. Portanto, a abordagem a partir deste momento será claramente subjetiva, e portanto tendenciosa, e mais ainda, não se pretende como verdade final na análise dos filmes. Isso porque reflete exclusivamente uma forma de se pensar cinema, o que implica num posicionamento claro. Então, que fique claro desde já: Santo Forte é um filme superior a . Ao resto do texto caberá tentar explicar porque.

é um filme do documentarista paulista Ricardo Dias, que ainda na década de 90 lançou o filme No Rio das Amazonas. Santo Forte é um filme de Eduardo Coutinho, um dos mais experientes diretores de documentário no Brasil, autor do clássico Cabra Marcado para Morrer, realizador ativo desde o Cinema Novo. tenta traçar um painel da fé no Brasil de hoje, englobando todos os tipos de crença, geograficamente amplo. Santo Forte é um filme de câmara, que trata da relação com a fé e a religiosidade dos moradores de uma favela carioca.

A partir desta sinopse uma série de diferenças já são estabelecidas quanto aos projetos dos cineastas. pretende partir dos fenômenos (procissões, cultos, romarias), dos eventos, e a partir deles construir um painel explicativo de um país. Santo Forte quer partir das pessoas e ver dentro delas o reflexo de um país. Essa diferenciação é vital na compreensão dos filmes. A missão de é quase um calvário em si, enquanto a de Santo Forte se constrói naturalmente. Com , quando se parte a campo em busca dos eventos, há uma agenda prévia de imagens e sons a serem colhidos. Em Santo Forte a surpresa está no componente humano dos depoimentos que o guiam. E é nesta relação mais ou menos direta com o ser humano como assunto que vemos a grande separação que há entre os filmes.

, é interessante notar, cobre muito mais tempo, lugares, eventos. Ainda assim foi filmado com película, que é um processo mais caro. Essa opção é determinante no documentário hoje. Porque o preço da película é um laço em torno do pescoço do documentarista. Ao invés de estar aberto a tudo e todos que apareçam, ele precisa ser seletivo. Quando ele começa a ser seletivo, é claro, as escolhas que faz vão denotar uma opção entre tantas, que talvez ele não fosse forçado a fazer se estivesse gravando em vídeo. Localizamos aí um dos paradoxos do cinema moderno. Ao filmar com sua câmera essencialmente de cinema, o documentarista está perdendo parte da espontaneidade que o devia marcar. O resultado quase sempre é o mesmo: o espectador espera por mais imagens, mais detalhes, e sente que falta algo para complementar as idéias rascunhadas.

No filme de Ricardo Dias, o resultado imediato disto é sua opção por retirar o caráter humano no nível pessoal, para resolver tratar o humano no geral como massa. Ou seja, quando vemos o Círio de Nazaré, a festa de Iemanjá ou a lavagem de Senhor do Bonfim, o ser humano é tratado como parte de um todo. Embora isso certamente tenha repercussões, é inevitável o sentimento de que não se está aprendendo nada de fato novo. Afinal, quantas vezes já não vimos as imagens de uma procissão religiosa, seja no cinema brasileiro ou no estrangeiro, no documentário ou na ficção, no cinema ou na TV? Que força podem ainda hoje ter essas imagens distanciadas? Mesmo se fixando em eventuais closes, são os closes catárticos tradicionais e impessoais de um evento religioso. Não podemos ficar de fato com aquelas pessoas mais tempo para descobrir quem elas são e o que as leva ali. A sequência do centro espírita acaba sendo a mais forte do filme (disparada) justamente por isso, pelo fato de que comporta um número menor de pessoas e obriga o diretor a tratá-las como indivíduos, explicar-nos o que eles sentem e qual tipo de conforto eles tiram da fé.

Talvez ainda mais notável seja o efeito que isso tem nos depoimentos. Porque, claro, não se poderia fazer um filme sem as entrevistas contextualizadoras. Só que no filme de Ricardo Dias os entrevistados não falam, eles pregam ou explicam. Um professor nos explica como funcionam certos ritos, uma evangélica nos prega a salvação da sua igreja. Eles não falam de si mesmos e do que sentem, do que gostam. Eles estão lá, mais uma vez, não como indivíduos, e sim como representantes de diferentes crenças.

Todas essas opções são discutíveis, mas compreensíveis num tipo de aproximação. Mais difícil de entender é a opção de montar como eventos separados cada manifestação religiosa. Pois se o povo brasileiro é conhecido acima de tudo pelo seu tal sincretismo, parece no mínimo estranho tratar cada religião como estanque e separada. Quando falamos do Vale do Amanhecer, falamos só dele até esgotá-lo. Aí vemos os evangélicos. Antes, os espíritas. É mais uma opção, talvez em busca da clareza, mas falta ousadia nesta concepção, de buscar pelo mosaico de fato (já que não se optou pelo pessoal) um retrato tão múltiplo quanto o seja a fé do brasileiro.

Por isso tudo é que fica a impressão de que é um verdadeiro "tour de force" de filmagem, um grande trabalho de montagem (destaque para a inteligente edição de som), que revela algumas imagens preciosas, mas que nunca passa de um olhar distanciado e frio do fenômeno religioso. Não que se pedisse necessariamente a intervenção direta da equipe, mas pelo menos uma proximidade maior com os seus objetos. O olhar de racionaliza o religioso, o que é em si um paradoxo. Ademais, cada evento mostrado parece "fora do tempo", ou seja, existem por si só. Parece que a fé se manifesta apenas naquelas ocasiões, e não no dia a dia. Talvez o mais simbólico elemento de sejam as legendas usadas em alguns depoimentos. É uma preocupação excessiva e desnecessária em ser entendido. Certamente não havia má fé neste expediente, mas uma vez que tudo que se fala é perfeitamente compreensível (e se uma ou duas palavras não fossem, o discurso era) fica bastante estranho o resultado. Pessoas falam em português, legendados. Nos parece uma metáfora bastante clara e involuntária do olhar quase estrangeiro e distante que o filme propõe.

O filme de Eduardo Coutinho, Santo Forte, opta pela radicalização do discurso no sentido contrário de . É um filme sobre as pessoas e como elas lidam com sua fé. As pessoas têm nome, têm endereço, têm cara, têm personalidade. As pessoas conversam com o diretor sobre os mais variados assuntos, as mais diferentes formas como a fé está presente no seu cotidiano. Como resultado, um painel tão mais particular e fechado revela muito mais que o filme-mosaico de Ricardo Dias. Talvez isso tenha a ver com a velha máxima de Alberto Cavalcanti. O grande cineasta (e documentarista) certa vez afirmou que quem quisesse fazer um filme sobre os Correios deveria contar a história de uma carta. Seria muito mais interessante ao espectador, e por contaminação, se estaria contando a história dos Correios. A parte pelo todo. Buscar o interesse humano para falar de um assunto maior.

E é esta a lição que Coutinho aplica tão bem. Tão bem, que não se pode dizer que o tema do seu filme seja só a fé. O tema deste filme (como de todos seus outros) é a vida de exclusão de parte da sociedade brasileira. Seu filme fala de uma favela, e ao falar dela fala de todos os pobres brasileiros, e dos seus pensamentos e sentimentos. Ao falarem de fé, eles acabam falando de muito, muito mais. Revelam suas relações com a elite, sua auto-imagem, as relações entre si, a visão de futuro, passado e muito presente. Refletem o rosto de um país, hoje.

O filme de Coutinho foi gravado em vídeo. Talvez por isso possa passar tanto tempo com cada pessoa, tantas horas de conversa sobre tudo, que levam a momentos raros de revelação que não se consegue em minutos. Claro que não se deve menosprezar o poder de Coutinho como entrevistador, pois ele quase hipnotiza o entrevistado e o espectador com sua fala mansa, suas perguntas bem colocadas. Por tudo isso, Santo Forte acaba revelando um paradoxo típico dos novos tempos. A liberdade de aprofundar-se que o vídeo lhe dá faz de Santo Forte um produto muito mais cinematográfico do que . Estamos opondo cinematográfico à idéia de televisão, que é quase sempre corrida e superficial. Com isso, somos pegos de surpresa nos limites de suporte dos filmes de hoje. Vemos que o ser "cinematográfico" já não fala mais de bitolas nem de estilos (enquanto tem inúmeras cenas de multidão em exterior, Santo Forte passa-se quase todo entre 4 paredes), mas de aproximação com o assunto.

Além do suporte, existe algo mais do formato de Santo Forte que revela sua proposta. Nele, a interação da equipe de filmagem com os entrevistados é explicitada. Não só ouvimos as perguntas, mas vemos a equipe chegando, sua recepção, o pagamento do cachê aos entrevistados. Com isso, Coutinho quer quebrar a tal barreira do distanciamento. Deixar claro ao espectador que aquelas pessoas estão se expondo a uma câmera, conscientemente. Isso tem efeitos nos entrevistados, claro. Quais são, não se pode concluir, mas é tolo achar que as pessoas agem da mesma maneira em frente a uma câmera. Por isso o diretor gosta de dizer que o filme não é sobre a fé, mas sobre uma equipe de filmagem gravando um documentário sobre a fé. O reconhecimento desta reflexividade é básico no mundo de hoje.

O filme de Coutinho tem uma espontaneidade inegável, não a de algo que acontece apesar de uma equipe de filmagem estar ali, que é impossível. Mas a de que acontece quando se sabe que a equipe está ali. Não há dúvida de que há pesquisa por trás do filme, que há horas de montagem na opção por este recorte. Mas, ainda assim, o filme de Coutinho se fez nas filmagens, pelas pessoas envolvidas. O filme todo está no que se fala, e quem tem a voz são as pessoas. Ao mostrar a equipe, Coutinho faz dos entrevistados o verdadeiro centro do filme. Ao escondê-la e distanciar-se, paradoxalmente, Ricardo Dias faz do documentarista o assunto de .

A relação não racional de Coutinho com a fé faz muito mais sentido do que a de . Ela chega ao ponto em que não vemos nenhuma cena das descritas pelas pessoas. Num golpe de mestre final, mais do que não ver as ações, ele nos mostra cômodos vazios. Nestes, que poderiam passar quase desapercebidos, está toda a ideologia do filme: a fé não se pode filmar. Ela está dentor das pessoas, e é vivida por elas. Mostrar os ritos tem valor sim, quiçá antropológico. No entanto, não se pode passar o sentimento da fé. Este está em cada palavra dita em Santo Forte. E em cada cômodo vazio, onde o espectador pode inserir sua própria fé. Coutinho soluciona a velha dúvida: se a câmera não pode acreditar que vai "retratar o mundo", qual a função do documental?? Simples: introduzir, aceitando sua limitação, e deixar o resto para a consciência e imaginação de cada um.

Por isso tudo é que Santo Forte mostra um potencial ainda gigantesco do documental hoje, enquanto sinaliza um esgotamento. No primeiro, nossas expectativas são completamente viradas a cada palavra, e por isso o filme se justifica, traz em si um fato novo. No segundo, tudo que vemos parece confirmar os clichês esperados. Há novas imagens, nenhuma nova conclusão.

Claro que se poderia (e deveria) tematizar qual o retrato do país que sai de ambos os filmes, mas com este texto se quis falar de formas de cinema brasileiro, formatos do documental. Eles refletem diretamente nos seus temas, mas estes são ainda mais complexos em estudo. Agora, resta saber qual o caminho que seguiremos no ano 2000. Por que filmes como Os Carvoeiros (seria brasileiro??) e Nós que Aqui Estamos por vós Esperamos indicam caminhos ainda mais perturbadores que . E aí?? Brasil, qual a sua cara??

Eduardo Valente