Sertão das Memórias
de José Araújo.





O Sertão das Memórias de José Araújo

O Sertão das Memórias, filme do estreante José Araújo, veio como um sopro de renovação no cinema brasileiro no momento de sua exibição. Afinal, poucos eram os filmes que não se esquivavam da questão social, da relação metrópole-vilarejos, e de uma questão fundamental nos anos 90 como um todo (filosofia, artes, ciências sociais): a relação entre o local e o universal. Enquanto quase todos os filmes da nova geração partiam para a antropologia do outro (Baile Perfumado, Os Matadores) ou para o naturalismo do mesmo (Como Ser Solteiro, Pequeno Dicionário Amoroso, Traição), José Araújo veio com um filme que ficcionaliza o seu mundo, realiza uma fábula real para demonstrar uma situação real. É esse o grande poder da ficção que é negado por toda uma geração (herdeira do neon-realismo dos anos 80 e da publicidade dos anos 90) que pede à ficção o que é ficção e ao documentário o que é documentário. Esses dois eixos se imbricam em O Sertão das Memórias e não podemos mais pensar a ficção sem o documentário e vice-versa. Com o filme de José Araújo, estamos perto de realizações como La Terra Trema ou Stromboli, que reafirmam com vigor a artificialidade do documentário e a realidade da ficção.

Daí uma fruição tão intensa e diferente desse filme, de escolhas tão radicais (nem sempre felizes, é certo), mas em todo caso de uma relevância acima do normal. As cenas comovem pela dureza da poesia: as beatas rezando sempre a mesma ladainha; os grãos jogados à mesa depois de feita a feira; os depoimentos dos anônimos moradores de Miraíma. Mas o filme transcende a escala pessoal: a política é colocada (mesmo que um tanto esquematicamente): a luta do povo contra o 'dragão' (metáfora mais infeliz do filme, herdada do imaginário do Cinema Novo, mas que aqui perde o vigor diante do realismo do tratamento) e tem a Igreja e um líder de esquerda para ajudá-los. A assembléia, a passeata e o abaixo-assinado são utilizados para diminuir o poder do dragão na região, mas nada dá muito certo, ainda mais quando o líder de esquerda resolve partir para a capital deixando um amargo e mentiroso 'eu voltarei'. Do lado do poder, do dragão, a água escassa é desperdiçada, o uso da força física e psicológica é costumeiro, a prostituição aparece a olhos nus: imaginaria-se o filme ainda mais perfeito fossem os vilões menos arquetípicos.

Mas tudo isso vale na estrutura do filme, todo com som montado, com a foto em branco e sépia, que dão ao filme um misto bem-vindo de estranhamento fabular e realismo documental: os registros documentais (vozes sobretudo) são tomados como tal, enquanto a trilha sonora caminha de par, fazendo irromper a ficção. E vale resssaltar que poucas trilhas foram tão bem sucedidas em sua realização e tão excelentes fora delas. Pois se a maioria das trilhas dos 90 foram feitas para reiterar o que estava na tela (A Ostra e o Vento, Orfeu) ou apenas para acompanhar a ficção e não deixar o espectador se entediar (O Homem Nu, O Mistério de Sanpaku), em O Sertão das Memórias a concepção de José Araújo e a realização de Naná Vasconcellos caminham juntos, expressivamente, em relação a tudo que se vê na tela. Entre a sofisticação harmônica clichezada de Ed Motta em Pequeno Dicionário Amoroso e a composição "Só o Mie" de Sirano em O Sertão das Memórias reside a diferença básica entre uma produção estetizante que tem em vista certos pressupostos da imagem (a linguagem da propaganda, da eficácia técnica, do "diálogo com o público") e uma produção que tenta fazer um cinema com uma imagem sem pressupostos: Araújo, mas também Bressane, Sganzerla, Reichenbach — realizar imagens-conceitos. Tal é a natureza da maior parte das imagens de O Sertão das Memórias, um filme-acontecimento, uma estética própria a serviço de um firme querer-dizer.

O fim do filme é, a esse ponto, exemplar: a imagem do céu sai do sépia para o colorido. Estamos nos dias de hoje, não mais nos tempos mitológicos e fabulatórios do sépia e da ficção. Antes, víamos Antero e Maria sentados ao sol, numa última imagem em sépia, ambientados à paisagem, depois de todas as agruras de uma luta política onde nada foi resolvido. Agora, o filme em cor sai do céu e vai para o casal, que anda. Vemos que Antero carrega uma enxada, e vai cavucando a terra, à frente de Da. Maria, que coloca as sementes. Não faz sentido aí uma crítica de "conformista" ao filme. depois de uma aventura política, voltemos ao trabalho usual, back to basics. Melhor se compreender esse fim como os filmes de Kiarostami ou como o belo Kanzo Sensei de Shohei Imamura: deve-se ir o mais longe desde que não se perca o que está perto; pois o que está perto é a sua vida, é onde você se sente em casa, é o lugar que, sem o qual, nem a política nem o poder fazem qualquer sentido. O Sertão das Memórias, filme político? Sim, filme político que se quer político (outra coisa rara nos 90!), mas micropolítico antes de tudo.

Ruy Gardnier