Cinema Esquema Novo?
A produção da geração dos anos 90





Baile Perfumado de Lírio Ferreira e Paulo Caldas

Muito se falou ao longo da década de uma nova onda brasileira, se questionou sobre a possibilidade de uma nova escola, de um novo grupo de cineastas, com novas visões, etc. Se quisermos com uma "onda" representar cineastas com a mesma visão cinematográfica e de mundo, com os mesmos pressupostos estéticos e juntos por relações interpessoais e manifestos, então no Brasil não houve nenhuma nova "onda". Contudo, se quisermos entender como "nova onda" um grupo fragmentado de cineastas que, malgrado as inúmeras diferenças estéticas, começou a filmar longas na década de 90 e que trouxe para a tela algumas qustões éticas e estéticas semelhantes, então se pode dizer que o Brasil viveu nos anos 90 a chegada de uma nova onda de cineastas, com linguagens diferenciadas daquilo que o cinema brasileiro apresentou no passado (cinema novo, cinema comercialzão anos 80, cinema industrial) e que forma razoavelmente bem-sucedidos em termos de estética e, uns muito diferentes de outros, na esfera da exibição e dos custos de produção.

A maior parte dos filmes dessa nova geração é composta de filmes baratos e criativos, com apostas estéticas firmes e muita vontade de dizer alguma coisa. A maior parte já vinha de algum trabalho anterior no audio-visual, a maioria da grande escola do curta-metragem, alguns outros vindos da publicidade em nome de uma imagem mais "autoral". Resta que, se é impossível dizer que as estéticas são semelhantes, ao menos o vigor de realizar filmes parece o mesmo para toda essa geração, ou ao menos para a maioria, embora isso não implique indiscriminadamente que todos os fimes dessa geração tenham realizado seu intento (ético, estético, de exibição).

Do ponto de vista da discussão sobre um novo cinema no Brasil, é impossível deixar de destacar um filme em especial: Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, foi um dos maiores acontecimentos da década, e certamente o filme de diretor novo sobre o qual mais se discutiu, seja sobre a possível renovação dos temas clássicos do cinema novo, seja sobre a "nova" linguagem de um novo cinema brasileiro, seja enfim como um correspondente cinematográfico da Manguebit capitaneada por Chico Science e Mundo Livre S.A. (na verdade, o segundo é realizador da trilha sonora e o primeiro tem uma música, "Sangue de Bairro", que virou como que a música símbolo do novo cinema). Mesmo que seja inegável admitir que se trata de um marco da década, Baile Perfumado não consegue escapar de um dilema que povou a cabeça de grande parte dos novos diretores: a criação de uma nova linguagem associada aos esteticismos da publicidade e do videoclip. Mesmo digno e belo, é difícil deixar de ver no filme uma transposição do imaginário do cinema novo para um outro imaginário, o regime de imagens vindo do audio-visual voltado para a mídia jovem, ou seja, MTV, publicidade jovem, etc. - forma de filmar desvinculada do conteúdo, pinturas hiperrealistas, por exemplo. Mas todas as qualidades - que afinal já foram destacadas por meio mundo - estão lá e pede-se urgentemente um segundo filme para que os atores possam maturar sua forma especial de filmar.

Falando em publicidade, esse foi um terreno que deu muito o que falar nos 90. Beto Brant, Consipração Filmes... Beto Brant, publicitário fazia tempo, realizou dois longas em que deixou de forma muito da estética do comercial e preferiu fazer um cinema mais realista, de gênero, com uma linguagem seca que lhe rendeu diversos elogios a seus dois filmes, Os Matadores e Ação Entre Amigos. Brant revelou-se como um dos principais nomes do novo cinema brasileiro, sobretudo pelo modo de dirigir os atores e pela concisão dos roteiros. Já da Conspiração Filmes não se pode falar a mesma coisa. O filme Traição, direção conjunta de três diretores vindos da publicidade, apresenta uma estética muito assemelhada ao cinema de Tony Scott e aos maneirismos corrente do jargão publicitário. Da reunião disso com a obra de Nelson Rodrigues, saiu um filho confuso, de psicologia barata, direção óbvia e esteticismo reativo. Se o primeiro episódio ainda agrada na interpretação dos atores, os seguintes acrescem mais e mais a decepção com o filme.

Um outro caso de publicidade, só que dessa vez muito mais complexo, vem de Walter Salles. Salles é certamente o diretor mais controvertido da década do cinema brasileiro, pelo prêmio em Berlim de Central do Brasil, pela nominação ao Oscar e pelo fato de o filme ter rodado o mundo. Com uma carreira iniciada no cinema com A Grande Arte, filme bastante influenciado pela estética dos comerciais e pelo auteurismo de movimentos de câmara e planos arrebatadores, seun primeiro filme mais decepcionou pela indefinição a respeito de uma estética do que agradou. Se Terra Estrangeira já demonstra uma enorme evolução estilística e dramática - sobretudo por um maior despojamento e um menor esquematismo em relação à Grande Arte -, com seu segundo longa (em parceria com Daniela Thomas) Walter Salles assumiu um amor pelo cinema de Wim Wenders e passou a defender uma clara postura humanista, o que coloca alguns problemas que merecem ser (e realmente foram, numa certa medida) levantados. Pois em toda sua obra paira uma ideologia propriamente ingênua à Rousseau, uma certa idéia de que "se todos agirmos corretamente, tudo dá certo". A política é esvaziada dos filmes, mas isso só será mais possível de vislumbrar em seus filmes seguintes. Em Central do Brasil, filme menos de autor mas possivelmente sua melhor realização, foi muito premiado, conseguiu diversos detratores e um sem número de admiradores. Com O Primeiro Dia (também em parceria com Daniela Thomas), Salles fez outro filme que alterna um conflito interessante sobre a relação entre a favela e o asfalto, mas que acaba ressoando com o mesmo misto de ingenuidade-esperança-pessimismo onde os jogos políticos e as tramas sociais são como que jogadas para baixo do tapete. Resta, entretanto, a esperança através de seus personagens, anjos caídos à procura de uma nova redenção - que nunca chega.

Nos anos 90, diversas mulheres tomaram a direção: Carla Camurati, Tata Amaral (embora veterana do curta), Sandra Kogut, Sandra Werneck, Rosane Svartman, Susana Moraes, Mara Mourão, Lúcia Murat (apesar de ter estreado em longa em 89 com Que Bom te Ver Viva), entre outras, fizeram suas estréias no longa-metragem. A maioria decidiu partir para a crônica social, com fins e resultados diferenciados. Rosane Svartman e Sandra Werneck preferiram a comédia de costumes amorosos. Como Ser Solteiro (No Rio de Janeiro), através de um fraco painel da vida amorosa carioca, dificilmente consegue deixar de ser superficial e vazio. Consegue, entretanto, momentos de humor que fizeram o filme continuar sob o modelo de série em TV a cabo. Sandra Werneck saiu-se um pouco melhor em Pequeno Dicionário Amoroso, filme que tenta mostrar os altos e baixos de um relacionamento amoroso. Alô?!, de Mara Mourão, apesar de não tratar exatamente de uma relação amorosa, usa a caricatura para construir uma obra sem muitas perspectivas ou visões de mundo.

Melhor fizeram Sandra Kogut, Lúcia Murat e principalmente Tata Amaral. Kogut, inicialmente trabalhando com o vídeo para realizar videoarte (com a qual até hoje trabalha) com o projeto Parabolic People, fez um dos filmes mais instigantes da década com o média metragem Lá e Cá, sobre a relação interior-metrópole, embora mantenha um certo fascínio romântico pela estética de subúrbio que nos programas televisivos de Regina Casé não deu os melhores resultados. Lúcia Murat veio com o simpático Doces Poderes, crônica política claramente influenciada por aquilo que representou o episódio mais importante do audivisual do final dos 80: o tape do debate presidencial em 89 entre Lula e Collor veiculado pela Globo.O aspecto mais interessante do filme é saber mesclar a vida pessoal com a vida profissional, impedindo o fime de ser analisado apenas como filme militante. Já Tata Amaral fez um dos filmes mais impressionantes da década com Um Céu de Estrelas. Uma história simples, numa única locação, que mexe com muito do imaginário brasileiro na década: violência, intrusão da televisão na vida pessoal, emigração para os EUA, etc. Uma atuação calorosa dos atores, uma estética da emergência fazem um dos momentos mais bonitos da década.

Caso estranho é o de Carla Camurati: seu filme Carlota Joaquina foi um acontecimento de público no cinema brasileiro, e considerado inclusive um marco na história do cinema brasileiro. Apesar de todos os seus méritos de divulgação e exibição, Carlota Joaquina apresenta uma estética ambígua e uma ética idem, uma estratégia muito comum, aliás, nos filmes brasileiros da década, que foi recorrer aos estrangeiros para fazer pouco do patropi. Realizou um segundo filme, La Serva Padrona, onde preferiu filmar uma ópera, com algum sucesso de encenação mas sem algum incremento especial.

Voltando ao cinema dos varões, o fim da década trouxe duas revelações: Aluízio Abranches com Um Copo de Cólera e Marcelo Masagão com Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos. O filme de Abranches adapta com algum fervor a obra homônima seminal de Raduan Nassar, revelando mais talento no silencioso êxtase amoroso do que na parte falada, em parte propiciada pelo baixo rendimento do ator masculino. Já o filme de Masagão é uma bela maneira alternativa de fazer cinema, alternativa na produção (um custo muito pequeno, realização inteiramente feita no computador), mas uma proposta boa que não parece ter sido metodicamente bem realizada ou, em todo caso, com pressupostos que desmerecem um pouco o produto final: a concepção um pouco apressada da psicanálise, mas sobretudo a tola idéia de que violência está sumariamente ligada a regimes não-democráticos, o que compromete uma das partes cabais do filme, em que Masagão tenta dar nome aos "bois" mais violentos do século. Mesmo com belos momentos, o filme de Masagão apresenta alguns problemas no tocante à natureza da imagem, mais uma homenagem ao século do que uma "reportagem" do século.

Um aspecto da realização de filmes muito discutido na década foi o roteiro: inúmeros grupos de estudos, cursos com chefões da estilística oficial (leia-se Hollywood), filmes que se apresentaram mais como potfólio de roteirista do que filmes propriamente. Nesse ponto é bom ressaltar o trabalho de um roteirista que esteve meio avesso a todo esse bafafá e produziu algumas das coisas mais interessantes em longa e curta: Fernando Bonassi. Além de ter realizado o romance do qual saiu Um Céu de Estrelas, ainda realizou um interessante curta-metragem, O Trabalho dos Homens. O trabalho de roteiro dele pede mais inteligência que erudição, mais respeito pelas situações singulares do que pelos efeitos gerais de compsoição (trama, pot, subplot). Em suma, uma contramão nessa via de mão única que foi pensar o roteiro em termos mais de fôrma que de forma nos anos 90.

Por fim, um dos nomes mais importantes dessa renovação do cinema brasileiro é José Araújo. Com seu Sertão das Memórias, fez um dos filmes mais despojados da década, e possivelmente a melhor realização de um diretor estreante. Misturando parábola, documentário, ficção, filme de família e cinema poético para realizar um mosaico da existência nas pequenas cidades do Nordeste — a escolhida foi Miraíma, berço natal do diretor e cidade em que até hoje moram seus pais, protagonistas do filme —, O Sertão das Memórias é político, estético, social, mas acima de tudo é encantador. Um canto de homenagem à terra como poucos filmes brasileiros souberam até hoje ser.

O mais interessante, do ponto de vista da próxima década (00), é que todos esses esforços parecem ser aproveitados e que os aficcionados na arte cinematográfica voltam finalmente a respirar cinema, a buscá-lo das mais diversas maneiras e possibilidades. Diversos realizadores de curtas partirão para o longa, e diversos realizadores promissores farão seus segundos, terceiros e quartos filmes. Esperemos, então, pelo que 00 vai nos trazer.

Ruy Gardnier