No verão de 99/2000, foram
lançados três filmes nacionais dirigidos ao público
infantil. Como tem sido praxe desde o início dos anos 80, quando
os filmes lançados pela Embrafilme pararam de ter a presença
no mercado que tinham antes, estes filmes foram as grandes bilheterias
brasileiras do ano. Interessante notar que este filão parece
assegurado para o filme nacional brigar de igual para igual com o estrangeiro,
ao contrário de todos os outros. Mais interessante seria tentar
pensar brevemente porque isso se daria.
A verdade é que os três
filmes nacionais lançados neste ano possuem em comum o fato de
serem baseados em programas de televisão, ainda que a forma desta
ligação varie de filme a filme, como veremos. E a televisão
tem sido a grande educadora no mundo moderno, não há dúvidas.
Portanto, as crianças comparecem ao filme nacional infantil porque
ele representa para elas o familiar, seu universo educador. Claro que
há espaço (e muito) para os Pokemon e Toy Story,
mas eles entram numa briga focinho a focinho com o representante nacional.
Com certeza os filmes brasileiros voltados para o público adolescente
ou adulto adorariam poder dizer que tiveram essa chance, e especialmente,
os resultados mostrados pelos filmes infantis. No entanto, o espectador
que tem o olho "não educado" (citando o teórico americano
Stan Brakhage, que fala da perda da inocência do olhar infantil
a cada imagem que percebe), pode estar livre de preconceitos e sem um
modelo fixo fortemente presente. O que este texto vai tentar pensar
é justamente de que forma estes três filmes nacionais propõem
a formação deste imaginário da criança,
e os resultados visíveis. Afinal, os três filmes têm
propostas completamente diferentes de compreensão da criança
e dos tipos de resultados que se busca obter ao falar com ela.
Dissemos que os três filmes têm
origem na TV. No entanto, só um deles tem essa origem numa narrativa
específica previamente explorada. É o Castelo Rá-Tim-Bum.
Cao Hamburguer, diretor do filme, foi também o idealizador da
bem sucedida série da TV Cultura, que ganhou prêmios pelo
reconhecimento ao seu trabalho educativo com as crianças. A série
de TV tinha uma narrativa ficcional, a qual é reproduzida no
filme, demonstrando portanto uma unidade de proposta. Xuxa Requebra,
de Tizuka Yamasaki, é um caso diferente de influência da
televisão. Ao invés de reproduzir uma narrativa bem sucedida,
ela se utiliza das celebridades televisivas que têm participação
constante na TV, e em especial no programa de Xuxa, que há mais
de década dominava o filão dos programas matinais. Não
há portanto um apelo prévio por uma história específica,
mas sim por ver no cinema as estrelas do mundo televisivo. O Trapalhão
e a Luz Azul de Paulo Aragão e Alexandre Bhoury, propõe
uma terceira conexão com a TV. Didi é um personagem, não
uma personalidade, portanto tem seus pés no ficcional. No entanto,
não há uma narrativa ou um ambiente fixo a este personagem,
poderíamos dizer que ele é mais uma idéia de personagem
do que alguém que remeta a um universo particular e fechado.
Essa diferenciação nos
parece vital na compreensão das propostas dos três filmes.
Porque, antes mesmo de estudarmos as narrativas em si, percebemos como
eles se opõem na relação com a criança.
O primeiro busca um imaginário específico já criado,
da ordem do ficcional e portanto da fantasia. O segundo, fala de ídolos
e desejos da vida cotidiana, que só remetem ao imaginário
e ao sonho nos limites do "querer ser como eles" ou do "querer conhecê-los".
O terceiro é uma mistura menos clara entre faces cotidianas e
a criação de um mundo ficcional que supõe uma fantasia
pela parte da criança. A partir daí se estruturam todas
as outras diferenças, como veremos a seguir, caso a caso.
Xuxa Requebra foi o maior sucesso
de bilheteria da temporada, superando inclusive os concorrentes estrangeiros.
Neste filme, Xuxa interpreta uma pessoa que não ela mesma, uma
jornalista, Nena. Esta foi educada numa escola (que nunca fica claro
se é um internato, uma escola particular, uma escola de artes
apenas), que corre o risco de ser fechada pela ação vilanesca
de uma gangue, que também nunca se entende bem qual a relação
com a realidade (eles traficam drogas, mas constróem prédios,
e também são super poderosos e conhecidos publicamente,
uma combinação bizarra). Para impedir seu fechamento,
ex-alunas (inclusive Nena) são convocadas a ganhar um concurso
de dança, cujo prêmio em dinheiro permitiria pagar as dívidas
e ficar com o imóvel para a escola.
Somente a partir desta situação
inicial básica, uma série de pressupostos pode ser analisada.
Primeiro, a solução final contra o mal é o dinheiro.
Quando temos dinheiro podemos pagar mais caro que o mal e vencê-lo,
deixá-lo impotente. Assim todos os esforços são
direcionados para um prêmio ($ 200 mil), que trará a salvação.
A relação do filme com o dinheiro como valor maior é
sintomática de uma concepção de cinema. Xuxa
Requebra é um filme feito para lucrar antes de mais nada,
então nada mais justo que sua história seja essa. As relações
comerciais dentro do filme são inúmeras, algumas das quais
ofensivas. Num certo momento uma criança diz para outra sobre
um brinquedo: "Você quer??". O outro faz que sim com a cabeça.
"Compra!!", responde o primeiro. Isso não tem nenhuma função
narrativa no filme, é, digamos uma piada. Piada muito séria
essa. Em seguida uma outra personagem chega: "Galera, vem cá
ver o que eu comprei...", diz ela. No final, é claro, o personagem
do cantor Daniel chega para salvar o dia, e sua frase de redenção
é: "Olha o que eu trouxe para vocês: o nosso dinheiro"...
Então, o dinheiro é colocado como o objetivo de todos
os personagens, seja os vilões ou os mocinhos.
Claro que pensar que esta é
a única relação comercial do filme seria tolice.
Mas essa nos parece a mais perigosa pois a mais subliminar. Pode-se
nem perceber que o filme propõe o dinheiro como valor maior da
vida, mas quando dissecamos de fato a sua trama e momentos como estes
citados, vemos que abaixo da superfície, é o que se afirma
seguidamente.
Dissemos ainda que o filme tinha como
maior objetivo, o lucro. Isso não parece falso, afinal o filme
se insere na categoria do produto mais do que obra de arte ou educação.
Ele não parte de uma série de personagens ou situações
fascinantes e clássicas, ou da vontade de contar uma história
por ela mesma ser atraente ou importante para as crianças. O
filme é realizado para aproveitar a temporada de verão
e a visibilidade atual de estrelas da TV. Daqui há dois anos
já não tem nenhuma utilidade para as crianças,
porque estas personalidades não serão mais a moda. Portanto
é um filme que busca o lucro imediato, como seus personagens.
Que tenha sido bem sucedido nesta tentativa fala bastante dos tempos
modernos.
Claro que o merchandising absurdamente
excessivo é uma outra relação comercial do filme.
Planos são criados em torno de produtos a toda hora, trocas de
foco, situações dramáticas. A linguagem do filme
e sua narrativa estão a serviço da propaganda, e não
o contrário. Esperado, pois o mais importante merece ter prioridade.
No entanto, a forma mais subliminar de comercialismo do filme é,
sem dúvida, o seu elenco. Formado quase exclusivamente por figuras
da música e dos programas de TV, que representam o que de mais
nefasto estes segmentos podem ter, Xuxa Requebra estrutura sua
narrativa em torno de oportunidades para vender o produto de cada uma
destas aparições. Mais uma vez, elas não têm
nenhuma função dramática, nem narrativa, nem imaginária.
Elas praticamente interpretam a si mesmos. E aí temos Vinny,
Terrasamba, Claudinho e Bochecha, Fat Family, cantando suas músicas
em verdadeiros clipes que interrompem a narrativa a toda hora. Da mesma
forma, surgem a Tiazinha, Carla Perez, Feiticeira, apenas para reforçarem
suas imagens com as crianças e servirem de propaganda do filme.
Cada uma dessas aparições não ultrapassa dois minutos,
mas nos cartazes, comerciais e propaganda do filme em geral todos os
nomes são citados. Fica claro portanto que o filme se estrutura
como um programa de variedades televisivo, onde se propõe que
a criança vá ao cinema ver tudo aquilo que ela vê
todo domingo na TV.
Essa estrutura se reflete no suposto
roteiro e narrativa do filme. Que, na verdade, não existem. E
isso é óbvio, afinal precisando se dividir em tantas aparições
estelares e espaços para os comerciais, não há
como se pensar que havia uma preocupação com a imaginação
infantil. Como se fosse um programa de TV, as crianças na sala
ficam constantemente dispersas, saem para comprar pipoca, voltam, afinal
não se "perde" nada. Pode sair durante os "comerciais", pode
sair durante uma música que não se goste muito. O roteiro
em si é uma seqüência absurda de cenas praticamente
sem relação, montadas preguiçosamente e sem transição
dramática, filmadas e decupadas de forma quase amadora. Claro,
nada disso tem importância aqui. Xuxa Requebra representa
então a vitórias do pior formato televisivo no cinema.
É um show de variedades, neste sentido pode-se dizer que lembra
até os velhos filmes da Atlântida, uma sequência
de números musicais. Só que ao contrário destes,
se volta para a criança. E que hoje esta seja antes de mais nada
um consumidor é muito triste.
O oposto exato disso tudo está
no Castelo Rá-Tim-Bum. O filme de Cao Hamburguer se opõe
a esta objetificação da criança em todos os seus
aspectos. Ele vem de uma noção de televisão por
si só diferente, nas chamadas televisões educativas. Por
isso mesmo tem preocupações outras que não a venda.
E, mesmo sendo baseada num programa de TV consagrado, quer pensar um
formato que seja específico do cinema, e aí a diferença
em relação ao Xuxa Requebra é completa.
Não se repete um formato televisivo, mas sim uma concepção
de lidar com o público infantil. No entanto se compreende o fenômeno
do cinema como algo diverso da televisão, e se investe nisso.
Não por acaso os personagens do Castelo não têm
televisão em casa...
Por isso, o Castelo tem uma
direção de arte gigantesca e fantasiosa que cria seu próprio
mundo. Traz idéias do programa de TV, mas as desenvolve de forma
diferente e mais específica da utilização do cinema.
Usa a câmera do cinema, os elementos da linguagem, os movimentos,
o foco, os efeitos visuais, sabendo que ao fazê-lo não
se está lidando com valores que a criança não perceba.
Embora a criança não saiba o que é uma passagem
de foco, ela sofre os efeitos de percepção que cada um
destes expedientes cria. Porque eles pedem e criam uma impressão
especificamente ligada ao sonho, a imaginação, ao cinema.
O cinema sempre esteve ligado a estas áreas da mente infantil.
Portanto o Castelo pede esta imersão das crianças,
enquanto Xuxa fala de dispersão, o signo da TV. Castelo
tem uma trilha grandiosa, que ao invés de vender canções,
quer fazer com que a criança embarque com mais profundidade na
viagem.
Não por acaso o filme começa
com uma tela preta, em cima da qual ouvimos: "Meu nome é Nino,
e vou contar uma história...". O clássico formato do conto
de fadas, que já começa a incitar a fantasia infantil.
Nino assume o papel de personagem e de contador de história,
portanto. E a história é o que importa em Castelo.
Ao invés de se dispersarem, as crianças sonham e mergulham
naquele mundo proposto. Não por acaso, como veremos mais adiante,
é um filme muito ligado a literatura, ao ato de contar estórias
que sempre esteve profundamente ligado ao universo infantil. Enquanto
Xuxa renega isso tudo em busca da objetividade rápida
da TV, Castelo radicaliza a opção. Fala de seres
fantásticos (bruxos), de um mundo imaginário, de uma aventura.
Através de elementos como os figurinos, ou a estudada iluminação
que joga constantemente entre o claro e o escuro, e que usa muito as
luzes de baixo para cima nos rostos dos personagens, o que os dá
uma presença quase mágica, o filme busca sempre estimular
a criança a ampliar aquele sonho, a sonhar por si mesmo, a criar
suas histórias.
Os personagens são burilados
e têm vida própria. As cenas são decupadas com uma
sofisticação digna do melhor cinema que se faz no mundo.
Cenas como o momento em que a vilã Losângela retoma seus
poderes, ou o encontro entre esta e Morgana, a bruxa boa, ou ainda a
derrota final da vilã, são filmadas de forma vibrante,
assustadora, mágica, significativa. É um desrespeito achar
que a criança, mesmo que intuitivamente, não perceba a
diferença.
Quando o filme faz referências
a situações políticas, ou a brigas familiares que
os mais baixinhos podem não perceber, fica claro que ele se dirige
também a pais e jovens com mais idade. No filme de Xuxa
o pai só pode se divertir porque se supõe que o seu QI
se iguale ao do filme proposto, e que portanto ele goste de ver aquelas
mulheres sinuosas e artistas de terceira. Não se permite sequer
aos pais a possibilidade de querer sonhar junto com suas crianças.
Essa questão do cinema como
sonho é, afinal, o que nos parece central na concepção
do filme. O crítico paulista Luiz Carlos Merten, quando do lançamento
do Castelo disse que o jovem ator (Dhiego Kozievitch) que interpreta
Nino, tem olhos bem abertos, olhos de quem sonha. Sendo ele o alter-ego
da platéia, ela também é incentivada a sonhar.
Quando, no clímax final, Nino alcança a "pedra preta"
dentro do espelho, liberando seus latentes poderes feiticeiros, a câmera
fecha nos seus olhos gigantescos. O sonho vira verdade, a verdade vira
sonho, os olhos de Nino filtram tudo para os nossos.
Se os dois filmes analisados até
aqui representam opostos no que se entende como imaginário infantil
no cinema, e lidam com ele de forma absolutamente atual, ainda que no
nosso entendimento, uma atualidade positiva e outra negativa, O Trapalhão
e a Luz Azul é um filme ligado a uma idéia de infância
defasada da realidade de hoje. Não por acaso, o filme é
reflexo da concepção de infância de Renato Aragão,
o Didi, que domina o filme infantil brasileiro há mais de 25
anos, e que tem repetido sua fórmula de sucesso ao longo destes
anos.
Além de ator principal, Didi
é atualmente sempre o roteirista dos filmes, aquele que tem a
idéia, o que cria o ambiente. Sempre trabalha com diretores contratados,
mas seria justo dizer que os filmes (com poucas exceções,
como Os Trapalhões no Auto da Compadecida) são
na verdade seus. Ele é de fato o autor. E que visão de
infância traz Renato Aragão? Uma visão sem dúvida
pautada na fantasia, como achamos desejável, já que todos
os seus filmes têm o formato clássico do conto de fadas.
Em alguns deles ele explorou o Brasil (Trapalhões na Serra
Pelada, Mágico de Oroz, etc), em outros, como é
o caso deste novo filme, localiza seu conto de fadas num mundo imaginário
e fantasioso.
Embora esta ligação com
os clássicos formatos infantis seja o forte de Didi (e perceba-se
que seus filmes sempre contam uma história, e nasçam desta
motivação), a verdade é que o domínio da
narrativa cinematográfica não tem pautado sua produção
nos últimos filmes. Percebe-se, se compararmos o filme de Didi
com os outros dois, e com sua produção anterior, que Renato
Aragão como criador de filmes encontra-se numa encruzilhada:
ele sagazmente observa que o imaginário das crianças e
sua relação com a magia do cinema mudou muito nestes 20
anos, mas não consegue de fato propor uma atualização
do seu estilo que funcione a contendo.
Se olharmos os filmes do Trapalhões
da década de 70 e início de 80 hoje, percebemos neles
um doce anacronismo. Seu sucesso com as crianças era inegável,
até porque é só consultar a geração
que viu os filmes como criança na época, e perceber a
influência que tiveram no imaginário. Porém suas
narrativas ligadas aos cânones clássicos do cinema de fantasia,
misturando comédia pastelão com aventuras e ação,
estava ligado a um imaginário infantil ainda pouco exposto ao
excesso de opções e imagens de hoje. Era anterior ao videogame,
aos programas de TV mais modernos, ao filme de verão típico
que surge nos EUA e domina o cinema atual, aos desenhos animados mais
rápidos, violentos e referenciais. Eram filmes que lidavam com
um olhar infantil bem mais ingênuo (com tudo de bom e ruim que
esta noção traz) do que o olhar infantil de hoje.
E, quando Renato Aragão vem
propor filmes hoje, ele não percebe de fato o anacronismo destes
formatos. Seus contos de fadas são encenados e roteirizados ainda
hoje como se as crianças fossem as dos anos 70. Isso é
extremamente compreensível, pois sabemos que enquanto as crianças
vão se atualizando, os olhares dos seus pais e avós se
tornam obrigatoriamente datados. Como ainda hoje Renato Aragão
está no controle criativo quase total de seus filmes, ele não
consegue o distanciamento necessário para perceber seu anacronismo.
As cenas de ação e fantasias
são encenadas com uma falta de sofisticação que
era perfeitamente factível e charmosa mesmo em décadas
anteriores. Hoje, no entanto, dado o grau de modernização
das imagens com as quais as crianças se acostumaram, elas são
datadas. Suas tramas, suas situações, não apresentam
uma conexão atual com o imaginário novo das crianças.
Renato Aragão representa de uma certa forma um sonho perdido
de infância. Claro que ele e seus produtores não são
tolos ao ponto de não perceberem alguma necessidade de modificação.
No entanto, a rota que eles tomam para trazer esta modificação
é a do contato fácil, como a de Xuxa. Ou seja,
ao invés de repensar seus temas e linguagem cinematográfica
para a atualidade, os filmes de Didi buscam a contemporaneidade da TV.
Por isso, usa atores sem expressão que representam a juventude
de hoje, usa números musicais que tentam achar um contato com
o jovem (e mostra total desconhecimento deste pois coloca O Rappa e
Raimundos, bandas muito superiores em qualidade às do filme de
Xuxa, mas que se comunicam com um público mais velho que o alvo
dos filmes de Didi), em suma os artifícios mais preguiçosos
de atualização, e que entram em maior desacordo ainda
com a narrativa clássica quase ultrapassada do resto do filme.
A crença de Renato Aragão
ainda hoje na infância idealizada, na magia, no conto de fadas,
é louvável. E sua figura clownesca e escrachada continua
engraçada e mostrando um cômico fino como poucos que tivemos
no Brasil. Só que a concepção dos filmes não
funciona mais. Seria caso de torcer para que Didi colocasse suas histórias
e desejos na mão de, digamos, um Cao Hamburguer, que percebesse
como filmar estas histórias com a magia e a linguagem que a criança
de hoje aprecie, sem precisar para isso se voltar para as figuras carimbadas
da TV ou o formato televisivo do show de variedades que distorce todo
o significado do trabalho de Didi.
O que fica claro quando descrevemos
assim cada um dos filmes, é que as suas diferenças de
concepção trazem à mente um velho, porém
eternamente válido, conceito: o do idealizador. Isso, em última
instância é o que faz a diferença. Castelo Rá-Tim-Bum
tem um idealizador: Cao Hamburguer. O mesmo que dirigiu e deu as coordenadas
da série de televisão é quem dá os conceitos
do filme. Como acabamos de ver, O Trapalhão tem também
um idealizador, Renato Aragão, que por mais desatualizado que
possa ser considerado esteticamente, possui suas próprias idéias
sobre o que é o cinema e a criança. Já Xuxa
Requebra não tem um idealizador humano. Xuxa certamente não
idealiza nada, e a diretora Tizuka Yamasaki já demonstrou mais
de uma vez sua relação puramente comercial com o trabalho.
O idealizador de Xuxa Requebra não é uma pessoa,
é uma instituição: o mercado.
Dizer que não tem um idealizador
não que dizer, de jeito nenhum, uma ausência de ideologia.
Afinal, já ensinava a vovó, ideologia todos e tudo que
tiver seres humanos envolvidos, terão. O que a presença
ou não de um idealizador confere é uma coerência
artística, e isso Xuxa Requebra não tem. Já
ideologia, não falta. Mencionamos antes as diferenças
de concepção artística entre os filmes, que ficam
bem claras. Mas nos parece muito mais importante perceber as diferenças
de postura perante o que significa educar uma criança.
Se por um lado, Castelo é
um mundo de fantasia que incentiva o imaginário lúdico
das crianças, O Trapalhão representa o meio termo
entre a fantasia e o pragmatismo, e Xuxa Requebra é a
encarnação do Deus-mercado, isso não se dá
apenas na estrutura estética e artística que já
vimos. As temáticas abordadas são mais claras ainda, e
especialmente o que se idealiza como forma de tratar a criança
espectadora. É claro que tudo na vida de uma criança é
um processo de educação e formação. Diria
que tudo na vida de um ser humano o é, mas muito mais na criança
que nem ainda formou sua idéia de mundo. Assim, todo e qualquer
filme voltado para este público está, necessariamente,
propondo uma visão de mundo para esta criança. Vamos analisar
que visões os extremos de Xuxa e Castelo propõe.
Castelo Rá-Tim-Bum incentiva
a leitura, incentiva o estudo, a ciência, o interesse pelo mundo
que cerca a criança. Castelo Rá-Tim-Bum incentiva
ainda a brincadeira coletiva, os amigos, o jogo lúdico. Andar
de bicicleta e empinar papagaio, ainda hoje, ainda em São Paulo.
Xuxa Requebra incentiva o culto às estrelas, o comercialismo,
o dinheiro, o tentar ser igual aos modelos da TV (como aliás
estes novos e assustadores programas Gente Inocente e afins,
onde a criança é uma xerox miniaturizada de adultos).
Incentiva a sexualização infantil, e a violência
como parte do imaginário. Como exemplos, é só ver
a perturbadora sequência de Xuxa com uma cadeira, algo de bizarro.
Ou ainda, a presença "glamourizada" e autorizada de um grupo
de "bad boys" que faz a chamada "coreografia da porrada". Não
é preciso dizer que a solução final para buscar
o dinheiro é o espancamento da vilã Macedão, gráfico
e sonoro. Há ainda um tiroteio e uma cena de Xuxa sendo torturada
no filme. Incentiva ainda a eugenia da beleza malhada, dos modelos irreais
de beleza, rebolado e alegria.
Em Xuxa a vitória contra
o Mal vem pelo rebolado, em Castelo a vitória vem pela
engenhosidade e criatividade. Apesar de toda sua fantasia, Castelo
faz uma conexão direta com a realidade. São Paulo não
só aparece ao fundo como é personagem importante para
compreender o Castelo como símbolo da diferença a ser
compreendida. A relação com o espaço físico
da metrópole incita ainda mais a imaginação, insinuando
que ela faz parte do dia a dia. Em Xuxa, a paisagem do Rio de
Janeiro é usada como a plástica dos corpos: pela sua beleza.
Não faz a menor diferença o local onde se passa a história,
porque a história não existe. Não estabelece um
mundo fantástico, nem relação com a realidade.
Se passa mesmo é no mundo da televisão. O único
garotinho na história não tem amigos, vive rodeado de
adultos e pós-adolescentes que dançam o tempo todo.
Mas, talvez acima de tudo isso, são
dois fatores que mostram a diferença maior de concepção
de infância dos filmes. Castelo Rá-Tim-Bum tem uma
mensagem, uma "moral da história" clara, dita pelo próprio
Nino no fim do filme: "Ninguém é igual aos outros". Ou
seja, o filme celebra a diferença, mostra para a criança
que é normal ela se achar diferente, às vezes excluída,
e que o importante é respeitar a diferença e todos se
incluírem. Xuxa Requebra também tem uma moral:
fumar e se drogar fazem mal para você, você só vai
fazer besteiras, então o melhor é ser saudável.
Alguém percebe a diferença fundamental de conceitos de
educação?? Pois bem, Castelo é propositivo,
propõe um estilo de vida, incentiva não com palavras,
mas com ações, uma postura. Portanto, educa. Busca ampliar
os horizontes, diz que o estudo é legal, mas só se for
com brincadeiras e amigos também, que ler é legal, mas
só se for de forma lúdica. Incentiva a criança
a pensar por si, propondo posturas. Xuxa é proibitivo.
Nega as drogas, nega o fumo, diz que "não pode". Não propõe
nada no lugar, não educa. Não cria um jogo que leve a
criança a uma postura. Tranca ela no quarto e diz que "Não!!".
Em suma, ensina a temer enquanto incentiva comprar e copiar. Só
essa diferença já bastava para esclarecer como posições
diferentes podem ser propostas.
Mas, talvez a mais sutil diferença
esteja nas tramas dos filmes: em Castelo a solução
final, a vitória do Bem está nas mãos das crianças.
Elas têm de fato o poder para solucionar os problemas criativamente,
unidas, e com confiança enfrentar o mundo e libertar até
os adultos. Em Xuxa a solução vem dos adultos.
As crianças mal participam, o seu futuro está nas mãos
(e quadris e pernas) de outros, dos bondosos titios que vão arranjar
o dinheiro e garantir o futuro das criancinhas. Num filme, as crianças
são ativas e incentivadas. No outro, elas são passivas
e proibidas.
O que esse texto propõe é
uma leitura desses filmes infantis puramente pelo que eles apresentam
nas telas. É uma postura de respeito e crença nas crianças.
Saber que nelas está a semente de um humanismo necessário
de ser cultivado. Que Xuxa Requebra seja o recordista é
lamentável, e mostra que a TV e seus nefastos subterfúgios
estão anos-luz na frente. Mas que Castelo exista e faça
sucesso mostra que há horizontes, há possibilidades. Cabe
ver o que pensamos de nós mesmos e do futuro quando formos continuar
com essa história, que não termina nunca. Porque criança
é assunto sério, assim como cinema
Eduardo Valente