Noções de Infância e Educação
Xuxa Requebra, Castelo Rá-Tim-Bum e O Trapalhão e a Luz Azul




No verão de 99/2000, foram lançados três filmes nacionais dirigidos ao público infantil. Como tem sido praxe desde o início dos anos 80, quando os filmes lançados pela Embrafilme pararam de ter a presença no mercado que tinham antes, estes filmes foram as grandes bilheterias brasileiras do ano. Interessante notar que este filão parece assegurado para o filme nacional brigar de igual para igual com o estrangeiro, ao contrário de todos os outros. Mais interessante seria tentar pensar brevemente porque isso se daria.

A verdade é que os três filmes nacionais lançados neste ano possuem em comum o fato de serem baseados em programas de televisão, ainda que a forma desta ligação varie de filme a filme, como veremos. E a televisão tem sido a grande educadora no mundo moderno, não há dúvidas. Portanto, as crianças comparecem ao filme nacional infantil porque ele representa para elas o familiar, seu universo educador. Claro que há espaço (e muito) para os Pokemon e Toy Story, mas eles entram numa briga focinho a focinho com o representante nacional. Com certeza os filmes brasileiros voltados para o público adolescente ou adulto adorariam poder dizer que tiveram essa chance, e especialmente, os resultados mostrados pelos filmes infantis. No entanto, o espectador que tem o olho "não educado" (citando o teórico americano Stan Brakhage, que fala da perda da inocência do olhar infantil a cada imagem que percebe), pode estar livre de preconceitos e sem um modelo fixo fortemente presente. O que este texto vai tentar pensar é justamente de que forma estes três filmes nacionais propõem a formação deste imaginário da criança, e os resultados visíveis. Afinal, os três filmes têm propostas completamente diferentes de compreensão da criança e dos tipos de resultados que se busca obter ao falar com ela.

Dissemos que os três filmes têm origem na TV. No entanto, só um deles tem essa origem numa narrativa específica previamente explorada. É o Castelo Rá-Tim-Bum. Cao Hamburguer, diretor do filme, foi também o idealizador da bem sucedida série da TV Cultura, que ganhou prêmios pelo reconhecimento ao seu trabalho educativo com as crianças. A série de TV tinha uma narrativa ficcional, a qual é reproduzida no filme, demonstrando portanto uma unidade de proposta. Xuxa Requebra, de Tizuka Yamasaki, é um caso diferente de influência da televisão. Ao invés de reproduzir uma narrativa bem sucedida, ela se utiliza das celebridades televisivas que têm participação constante na TV, e em especial no programa de Xuxa, que há mais de década dominava o filão dos programas matinais. Não há portanto um apelo prévio por uma história específica, mas sim por ver no cinema as estrelas do mundo televisivo. O Trapalhão e a Luz Azul de Paulo Aragão e Alexandre Bhoury, propõe uma terceira conexão com a TV. Didi é um personagem, não uma personalidade, portanto tem seus pés no ficcional. No entanto, não há uma narrativa ou um ambiente fixo a este personagem, poderíamos dizer que ele é mais uma idéia de personagem do que alguém que remeta a um universo particular e fechado.

Essa diferenciação nos parece vital na compreensão das propostas dos três filmes. Porque, antes mesmo de estudarmos as narrativas em si, percebemos como eles se opõem na relação com a criança. O primeiro busca um imaginário específico já criado, da ordem do ficcional e portanto da fantasia. O segundo, fala de ídolos e desejos da vida cotidiana, que só remetem ao imaginário e ao sonho nos limites do "querer ser como eles" ou do "querer conhecê-los". O terceiro é uma mistura menos clara entre faces cotidianas e a criação de um mundo ficcional que supõe uma fantasia pela parte da criança. A partir daí se estruturam todas as outras diferenças, como veremos a seguir, caso a caso.

Xuxa Requebra foi o maior sucesso de bilheteria da temporada, superando inclusive os concorrentes estrangeiros. Neste filme, Xuxa interpreta uma pessoa que não ela mesma, uma jornalista, Nena. Esta foi educada numa escola (que nunca fica claro se é um internato, uma escola particular, uma escola de artes apenas), que corre o risco de ser fechada pela ação vilanesca de uma gangue, que também nunca se entende bem qual a relação com a realidade (eles traficam drogas, mas constróem prédios, e também são super poderosos e conhecidos publicamente, uma combinação bizarra). Para impedir seu fechamento, ex-alunas (inclusive Nena) são convocadas a ganhar um concurso de dança, cujo prêmio em dinheiro permitiria pagar as dívidas e ficar com o imóvel para a escola.

Somente a partir desta situação inicial básica, uma série de pressupostos pode ser analisada. Primeiro, a solução final contra o mal é o dinheiro. Quando temos dinheiro podemos pagar mais caro que o mal e vencê-lo, deixá-lo impotente. Assim todos os esforços são direcionados para um prêmio ($ 200 mil), que trará a salvação. A relação do filme com o dinheiro como valor maior é sintomática de uma concepção de cinema. Xuxa Requebra é um filme feito para lucrar antes de mais nada, então nada mais justo que sua história seja essa. As relações comerciais dentro do filme são inúmeras, algumas das quais ofensivas. Num certo momento uma criança diz para outra sobre um brinquedo: "Você quer??". O outro faz que sim com a cabeça. "Compra!!", responde o primeiro. Isso não tem nenhuma função narrativa no filme, é, digamos uma piada. Piada muito séria essa. Em seguida uma outra personagem chega: "Galera, vem cá ver o que eu comprei...", diz ela. No final, é claro, o personagem do cantor Daniel chega para salvar o dia, e sua frase de redenção é: "Olha o que eu trouxe para vocês: o nosso dinheiro"... Então, o dinheiro é colocado como o objetivo de todos os personagens, seja os vilões ou os mocinhos.

Claro que pensar que esta é a única relação comercial do filme seria tolice. Mas essa nos parece a mais perigosa pois a mais subliminar. Pode-se nem perceber que o filme propõe o dinheiro como valor maior da vida, mas quando dissecamos de fato a sua trama e momentos como estes citados, vemos que abaixo da superfície, é o que se afirma seguidamente.

Dissemos ainda que o filme tinha como maior objetivo, o lucro. Isso não parece falso, afinal o filme se insere na categoria do produto mais do que obra de arte ou educação. Ele não parte de uma série de personagens ou situações fascinantes e clássicas, ou da vontade de contar uma história por ela mesma ser atraente ou importante para as crianças. O filme é realizado para aproveitar a temporada de verão e a visibilidade atual de estrelas da TV. Daqui há dois anos já não tem nenhuma utilidade para as crianças, porque estas personalidades não serão mais a moda. Portanto é um filme que busca o lucro imediato, como seus personagens. Que tenha sido bem sucedido nesta tentativa fala bastante dos tempos modernos.

Claro que o merchandising absurdamente excessivo é uma outra relação comercial do filme. Planos são criados em torno de produtos a toda hora, trocas de foco, situações dramáticas. A linguagem do filme e sua narrativa estão a serviço da propaganda, e não o contrário. Esperado, pois o mais importante merece ter prioridade. No entanto, a forma mais subliminar de comercialismo do filme é, sem dúvida, o seu elenco. Formado quase exclusivamente por figuras da música e dos programas de TV, que representam o que de mais nefasto estes segmentos podem ter, Xuxa Requebra estrutura sua narrativa em torno de oportunidades para vender o produto de cada uma destas aparições. Mais uma vez, elas não têm nenhuma função dramática, nem narrativa, nem imaginária. Elas praticamente interpretam a si mesmos. E aí temos Vinny, Terrasamba, Claudinho e Bochecha, Fat Family, cantando suas músicas em verdadeiros clipes que interrompem a narrativa a toda hora. Da mesma forma, surgem a Tiazinha, Carla Perez, Feiticeira, apenas para reforçarem suas imagens com as crianças e servirem de propaganda do filme. Cada uma dessas aparições não ultrapassa dois minutos, mas nos cartazes, comerciais e propaganda do filme em geral todos os nomes são citados. Fica claro portanto que o filme se estrutura como um programa de variedades televisivo, onde se propõe que a criança vá ao cinema ver tudo aquilo que ela vê todo domingo na TV.

Essa estrutura se reflete no suposto roteiro e narrativa do filme. Que, na verdade, não existem. E isso é óbvio, afinal precisando se dividir em tantas aparições estelares e espaços para os comerciais, não há como se pensar que havia uma preocupação com a imaginação infantil. Como se fosse um programa de TV, as crianças na sala ficam constantemente dispersas, saem para comprar pipoca, voltam, afinal não se "perde" nada. Pode sair durante os "comerciais", pode sair durante uma música que não se goste muito. O roteiro em si é uma seqüência absurda de cenas praticamente sem relação, montadas preguiçosamente e sem transição dramática, filmadas e decupadas de forma quase amadora. Claro, nada disso tem importância aqui. Xuxa Requebra representa então a vitórias do pior formato televisivo no cinema. É um show de variedades, neste sentido pode-se dizer que lembra até os velhos filmes da Atlântida, uma sequência de números musicais. Só que ao contrário destes, se volta para a criança. E que hoje esta seja antes de mais nada um consumidor é muito triste.

O oposto exato disso tudo está no Castelo Rá-Tim-Bum. O filme de Cao Hamburguer se opõe a esta objetificação da criança em todos os seus aspectos. Ele vem de uma noção de televisão por si só diferente, nas chamadas televisões educativas. Por isso mesmo tem preocupações outras que não a venda. E, mesmo sendo baseada num programa de TV consagrado, quer pensar um formato que seja específico do cinema, e aí a diferença em relação ao Xuxa Requebra é completa. Não se repete um formato televisivo, mas sim uma concepção de lidar com o público infantil. No entanto se compreende o fenômeno do cinema como algo diverso da televisão, e se investe nisso. Não por acaso os personagens do Castelo não têm televisão em casa...

Por isso, o Castelo tem uma direção de arte gigantesca e fantasiosa que cria seu próprio mundo. Traz idéias do programa de TV, mas as desenvolve de forma diferente e mais específica da utilização do cinema. Usa a câmera do cinema, os elementos da linguagem, os movimentos, o foco, os efeitos visuais, sabendo que ao fazê-lo não se está lidando com valores que a criança não perceba. Embora a criança não saiba o que é uma passagem de foco, ela sofre os efeitos de percepção que cada um destes expedientes cria. Porque eles pedem e criam uma impressão especificamente ligada ao sonho, a imaginação, ao cinema. O cinema sempre esteve ligado a estas áreas da mente infantil. Portanto o Castelo pede esta imersão das crianças, enquanto Xuxa fala de dispersão, o signo da TV. Castelo tem uma trilha grandiosa, que ao invés de vender canções, quer fazer com que a criança embarque com mais profundidade na viagem.

Não por acaso o filme começa com uma tela preta, em cima da qual ouvimos: "Meu nome é Nino, e vou contar uma história...". O clássico formato do conto de fadas, que já começa a incitar a fantasia infantil. Nino assume o papel de personagem e de contador de história, portanto. E a história é o que importa em Castelo. Ao invés de se dispersarem, as crianças sonham e mergulham naquele mundo proposto. Não por acaso, como veremos mais adiante, é um filme muito ligado a literatura, ao ato de contar estórias que sempre esteve profundamente ligado ao universo infantil. Enquanto Xuxa renega isso tudo em busca da objetividade rápida da TV, Castelo radicaliza a opção. Fala de seres fantásticos (bruxos), de um mundo imaginário, de uma aventura. Através de elementos como os figurinos, ou a estudada iluminação que joga constantemente entre o claro e o escuro, e que usa muito as luzes de baixo para cima nos rostos dos personagens, o que os dá uma presença quase mágica, o filme busca sempre estimular a criança a ampliar aquele sonho, a sonhar por si mesmo, a criar suas histórias.

Os personagens são burilados e têm vida própria. As cenas são decupadas com uma sofisticação digna do melhor cinema que se faz no mundo. Cenas como o momento em que a vilã Losângela retoma seus poderes, ou o encontro entre esta e Morgana, a bruxa boa, ou ainda a derrota final da vilã, são filmadas de forma vibrante, assustadora, mágica, significativa. É um desrespeito achar que a criança, mesmo que intuitivamente, não perceba a diferença.

Quando o filme faz referências a situações políticas, ou a brigas familiares que os mais baixinhos podem não perceber, fica claro que ele se dirige também a pais e jovens com mais idade. No filme de Xuxa o pai só pode se divertir porque se supõe que o seu QI se iguale ao do filme proposto, e que portanto ele goste de ver aquelas mulheres sinuosas e artistas de terceira. Não se permite sequer aos pais a possibilidade de querer sonhar junto com suas crianças.

Essa questão do cinema como sonho é, afinal, o que nos parece central na concepção do filme. O crítico paulista Luiz Carlos Merten, quando do lançamento do Castelo disse que o jovem ator (Dhiego Kozievitch) que interpreta Nino, tem olhos bem abertos, olhos de quem sonha. Sendo ele o alter-ego da platéia, ela também é incentivada a sonhar. Quando, no clímax final, Nino alcança a "pedra preta" dentro do espelho, liberando seus latentes poderes feiticeiros, a câmera fecha nos seus olhos gigantescos. O sonho vira verdade, a verdade vira sonho, os olhos de Nino filtram tudo para os nossos.

Se os dois filmes analisados até aqui representam opostos no que se entende como imaginário infantil no cinema, e lidam com ele de forma absolutamente atual, ainda que no nosso entendimento, uma atualidade positiva e outra negativa, O Trapalhão e a Luz Azul é um filme ligado a uma idéia de infância defasada da realidade de hoje. Não por acaso, o filme é reflexo da concepção de infância de Renato Aragão, o Didi, que domina o filme infantil brasileiro há mais de 25 anos, e que tem repetido sua fórmula de sucesso ao longo destes anos.

Além de ator principal, Didi é atualmente sempre o roteirista dos filmes, aquele que tem a idéia, o que cria o ambiente. Sempre trabalha com diretores contratados, mas seria justo dizer que os filmes (com poucas exceções, como Os Trapalhões no Auto da Compadecida) são na verdade seus. Ele é de fato o autor. E que visão de infância traz Renato Aragão? Uma visão sem dúvida pautada na fantasia, como achamos desejável, já que todos os seus filmes têm o formato clássico do conto de fadas. Em alguns deles ele explorou o Brasil (Trapalhões na Serra Pelada, Mágico de Oroz, etc), em outros, como é o caso deste novo filme, localiza seu conto de fadas num mundo imaginário e fantasioso.

Embora esta ligação com os clássicos formatos infantis seja o forte de Didi (e perceba-se que seus filmes sempre contam uma história, e nasçam desta motivação), a verdade é que o domínio da narrativa cinematográfica não tem pautado sua produção nos últimos filmes. Percebe-se, se compararmos o filme de Didi com os outros dois, e com sua produção anterior, que Renato Aragão como criador de filmes encontra-se numa encruzilhada: ele sagazmente observa que o imaginário das crianças e sua relação com a magia do cinema mudou muito nestes 20 anos, mas não consegue de fato propor uma atualização do seu estilo que funcione a contendo.

Se olharmos os filmes do Trapalhões da década de 70 e início de 80 hoje, percebemos neles um doce anacronismo. Seu sucesso com as crianças era inegável, até porque é só consultar a geração que viu os filmes como criança na época, e perceber a influência que tiveram no imaginário. Porém suas narrativas ligadas aos cânones clássicos do cinema de fantasia, misturando comédia pastelão com aventuras e ação, estava ligado a um imaginário infantil ainda pouco exposto ao excesso de opções e imagens de hoje. Era anterior ao videogame, aos programas de TV mais modernos, ao filme de verão típico que surge nos EUA e domina o cinema atual, aos desenhos animados mais rápidos, violentos e referenciais. Eram filmes que lidavam com um olhar infantil bem mais ingênuo (com tudo de bom e ruim que esta noção traz) do que o olhar infantil de hoje.

E, quando Renato Aragão vem propor filmes hoje, ele não percebe de fato o anacronismo destes formatos. Seus contos de fadas são encenados e roteirizados ainda hoje como se as crianças fossem as dos anos 70. Isso é extremamente compreensível, pois sabemos que enquanto as crianças vão se atualizando, os olhares dos seus pais e avós se tornam obrigatoriamente datados. Como ainda hoje Renato Aragão está no controle criativo quase total de seus filmes, ele não consegue o distanciamento necessário para perceber seu anacronismo.

As cenas de ação e fantasias são encenadas com uma falta de sofisticação que era perfeitamente factível e charmosa mesmo em décadas anteriores. Hoje, no entanto, dado o grau de modernização das imagens com as quais as crianças se acostumaram, elas são datadas. Suas tramas, suas situações, não apresentam uma conexão atual com o imaginário novo das crianças. Renato Aragão representa de uma certa forma um sonho perdido de infância. Claro que ele e seus produtores não são tolos ao ponto de não perceberem alguma necessidade de modificação. No entanto, a rota que eles tomam para trazer esta modificação é a do contato fácil, como a de Xuxa. Ou seja, ao invés de repensar seus temas e linguagem cinematográfica para a atualidade, os filmes de Didi buscam a contemporaneidade da TV. Por isso, usa atores sem expressão que representam a juventude de hoje, usa números musicais que tentam achar um contato com o jovem (e mostra total desconhecimento deste pois coloca O Rappa e Raimundos, bandas muito superiores em qualidade às do filme de Xuxa, mas que se comunicam com um público mais velho que o alvo dos filmes de Didi), em suma os artifícios mais preguiçosos de atualização, e que entram em maior desacordo ainda com a narrativa clássica quase ultrapassada do resto do filme.

A crença de Renato Aragão ainda hoje na infância idealizada, na magia, no conto de fadas, é louvável. E sua figura clownesca e escrachada continua engraçada e mostrando um cômico fino como poucos que tivemos no Brasil. Só que a concepção dos filmes não funciona mais. Seria caso de torcer para que Didi colocasse suas histórias e desejos na mão de, digamos, um Cao Hamburguer, que percebesse como filmar estas histórias com a magia e a linguagem que a criança de hoje aprecie, sem precisar para isso se voltar para as figuras carimbadas da TV ou o formato televisivo do show de variedades que distorce todo o significado do trabalho de Didi.

O que fica claro quando descrevemos assim cada um dos filmes, é que as suas diferenças de concepção trazem à mente um velho, porém eternamente válido, conceito: o do idealizador. Isso, em última instância é o que faz a diferença. Castelo Rá-Tim-Bum tem um idealizador: Cao Hamburguer. O mesmo que dirigiu e deu as coordenadas da série de televisão é quem dá os conceitos do filme. Como acabamos de ver, O Trapalhão tem também um idealizador, Renato Aragão, que por mais desatualizado que possa ser considerado esteticamente, possui suas próprias idéias sobre o que é o cinema e a criança. Já Xuxa Requebra não tem um idealizador humano. Xuxa certamente não idealiza nada, e a diretora Tizuka Yamasaki já demonstrou mais de uma vez sua relação puramente comercial com o trabalho. O idealizador de Xuxa Requebra não é uma pessoa, é uma instituição: o mercado.

Dizer que não tem um idealizador não que dizer, de jeito nenhum, uma ausência de ideologia. Afinal, já ensinava a vovó, ideologia todos e tudo que tiver seres humanos envolvidos, terão. O que a presença ou não de um idealizador confere é uma coerência artística, e isso Xuxa Requebra não tem. Já ideologia, não falta. Mencionamos antes as diferenças de concepção artística entre os filmes, que ficam bem claras. Mas nos parece muito mais importante perceber as diferenças de postura perante o que significa educar uma criança.

Se por um lado, Castelo é um mundo de fantasia que incentiva o imaginário lúdico das crianças, O Trapalhão representa o meio termo entre a fantasia e o pragmatismo, e Xuxa Requebra é a encarnação do Deus-mercado, isso não se dá apenas na estrutura estética e artística que já vimos. As temáticas abordadas são mais claras ainda, e especialmente o que se idealiza como forma de tratar a criança espectadora. É claro que tudo na vida de uma criança é um processo de educação e formação. Diria que tudo na vida de um ser humano o é, mas muito mais na criança que nem ainda formou sua idéia de mundo. Assim, todo e qualquer filme voltado para este público está, necessariamente, propondo uma visão de mundo para esta criança. Vamos analisar que visões os extremos de Xuxa e Castelo propõe.

Castelo Rá-Tim-Bum incentiva a leitura, incentiva o estudo, a ciência, o interesse pelo mundo que cerca a criança. Castelo Rá-Tim-Bum incentiva ainda a brincadeira coletiva, os amigos, o jogo lúdico. Andar de bicicleta e empinar papagaio, ainda hoje, ainda em São Paulo. Xuxa Requebra incentiva o culto às estrelas, o comercialismo, o dinheiro, o tentar ser igual aos modelos da TV (como aliás estes novos e assustadores programas Gente Inocente e afins, onde a criança é uma xerox miniaturizada de adultos). Incentiva a sexualização infantil, e a violência como parte do imaginário. Como exemplos, é só ver a perturbadora sequência de Xuxa com uma cadeira, algo de bizarro. Ou ainda, a presença "glamourizada" e autorizada de um grupo de "bad boys" que faz a chamada "coreografia da porrada". Não é preciso dizer que a solução final para buscar o dinheiro é o espancamento da vilã Macedão, gráfico e sonoro. Há ainda um tiroteio e uma cena de Xuxa sendo torturada no filme. Incentiva ainda a eugenia da beleza malhada, dos modelos irreais de beleza, rebolado e alegria.

Em Xuxa a vitória contra o Mal vem pelo rebolado, em Castelo a vitória vem pela engenhosidade e criatividade. Apesar de toda sua fantasia, Castelo faz uma conexão direta com a realidade. São Paulo não só aparece ao fundo como é personagem importante para compreender o Castelo como símbolo da diferença a ser compreendida. A relação com o espaço físico da metrópole incita ainda mais a imaginação, insinuando que ela faz parte do dia a dia. Em Xuxa, a paisagem do Rio de Janeiro é usada como a plástica dos corpos: pela sua beleza. Não faz a menor diferença o local onde se passa a história, porque a história não existe. Não estabelece um mundo fantástico, nem relação com a realidade. Se passa mesmo é no mundo da televisão. O único garotinho na história não tem amigos, vive rodeado de adultos e pós-adolescentes que dançam o tempo todo.

Mas, talvez acima de tudo isso, são dois fatores que mostram a diferença maior de concepção de infância dos filmes. Castelo Rá-Tim-Bum tem uma mensagem, uma "moral da história" clara, dita pelo próprio Nino no fim do filme: "Ninguém é igual aos outros". Ou seja, o filme celebra a diferença, mostra para a criança que é normal ela se achar diferente, às vezes excluída, e que o importante é respeitar a diferença e todos se incluírem. Xuxa Requebra também tem uma moral: fumar e se drogar fazem mal para você, você só vai fazer besteiras, então o melhor é ser saudável. Alguém percebe a diferença fundamental de conceitos de educação?? Pois bem, Castelo é propositivo, propõe um estilo de vida, incentiva não com palavras, mas com ações, uma postura. Portanto, educa. Busca ampliar os horizontes, diz que o estudo é legal, mas só se for com brincadeiras e amigos também, que ler é legal, mas só se for de forma lúdica. Incentiva a criança a pensar por si, propondo posturas. Xuxa é proibitivo. Nega as drogas, nega o fumo, diz que "não pode". Não propõe nada no lugar, não educa. Não cria um jogo que leve a criança a uma postura. Tranca ela no quarto e diz que "Não!!". Em suma, ensina a temer enquanto incentiva comprar e copiar. Só essa diferença já bastava para esclarecer como posições diferentes podem ser propostas.

Mas, talvez a mais sutil diferença esteja nas tramas dos filmes: em Castelo a solução final, a vitória do Bem está nas mãos das crianças. Elas têm de fato o poder para solucionar os problemas criativamente, unidas, e com confiança enfrentar o mundo e libertar até os adultos. Em Xuxa a solução vem dos adultos. As crianças mal participam, o seu futuro está nas mãos (e quadris e pernas) de outros, dos bondosos titios que vão arranjar o dinheiro e garantir o futuro das criancinhas. Num filme, as crianças são ativas e incentivadas. No outro, elas são passivas e proibidas.

O que esse texto propõe é uma leitura desses filmes infantis puramente pelo que eles apresentam nas telas. É uma postura de respeito e crença nas crianças. Saber que nelas está a semente de um humanismo necessário de ser cultivado. Que Xuxa Requebra seja o recordista é lamentável, e mostra que a TV e seus nefastos subterfúgios estão anos-luz na frente. Mas que Castelo exista e faça sucesso mostra que há horizontes, há possibilidades. Cabe ver o que pensamos de nós mesmos e do futuro quando formos continuar com essa história, que não termina nunca. Porque criança é assunto sério, assim como cinema

Eduardo Valente