Coração Iluminado
de Hector Babenco
Coração Iluminado
é um filme raro. É para ser guardado, visto e revisto.
Não ganhou prêmio nenhum, parece que nem foi muito percebido.
O filme foi um fracasso de público, e foi vaiado em Cannes, por
um público ávido por Schwarzenegger e seus arrasa-quarteirões.
Também no Brasil passou incólume por algumas festividades.
É pena. Repito, não é um filme qualquer.
Coração Iluminado
me pareceu um filme que se torna maior que seu criador, que tem dentro
de si muito mais do que quem o criou esperava dizer, de início.
Uma pessoa que fala de si acaba por dizer muito mais coisas que gostaria
ou imaginava, ao falar de si fala de todos, e é isso que acontece
no filme. Como já disse um amigo querido, o filme parece sair
das tripas do Babenco. Mais do que isso, o filme parece ter adquirido
corpo próprio, olhos, cheiros, coração, o filme
parece pulsar vida. De quantas obras se pode dizer o mesmo?
A partir da primeira parte, clássica,
melancólica, limpa, romantizada,
linda, vemos o ritual de passagem à idade adulta de um jovem,
através de seus contatos com grupos e idéias e com seu
primeiro amor. Em todos os filmes do mundo isso teria se bastado, mas
não na vida real, e o passado nos marca, nós o carregamos
conosco, ele nos conduz. E por isso uma segunda parte, tosca, violenta,
amargurada, uma vida marcada por fantasmas passados,
dos quais fugiu e que agora volta a encarar, um primeiro amor marcante
e traumático.
Isso, na minha modesta opinião,
é parte da vida, dos sentimentos humanos, essa busca do perdido,
do não-conquistado. Esse é o cinema dos sentimentos, e
por conseqüência das tripas. Não por acaso, surgem
as histórias sobre os problemas do realizador durante as filmagens,
a somatização de todas essas questões, num filme
que se amplia e passa a encarar seu realizador e, por tabela, a nós,
espectadores.
É isso. O Babenco sempre fez
um cinema que olha para o outro, que tenha o olhar atento para questões
emergentes que o cercam (como já fazia, de maneira diversa, Nelson
Pereira dos Santos), isso somado a um estilo clássico e intencionalmente
comunicativo. Com isso, fez o grande público discutir esquadrões
da morte e corrupção policial (Lúcio Flávio),
o abandono de menores na nossa sociedade (Pixote), prisões
políticas e homossexualismo (O Beijo da Mulher Aranha),
a marginália do sistema capitalista (Ironweed). Quis discutir
também o sufocamento de culturas no Brincando nos campos do
senhor. No Coração Iluminado, assumidamente
influenciado por seus problemas de saúde, esqueceu-se da sua
sociedade e virou-se para si. Fez então seu filme mais pessoal
e universal. Talvez por ser essencialmente um auto-exilado, como notou
Ricardo Piglia, fez um filme que transcende nacionalidades e épocas,
e fala de sentimentos engasgados e personagens atormentados.
O final é evidente e ainda assim
instigante. Para ele, as duas personagens femininas são uma só,
e ele precisa se livrar dela. Babenco usa então a magia do cinema,
o fantástico, para evidenciar relações palpáveis
da narrativa. Eu não tenho dúvida, aquela mulher realmente
brilha para ele, dentro daquela história é assim que as
coisas são.
Daniel Caetano