Esquema Cinema Novo!
A produção das gerações de 50, 60 e 70 nos anos 90





O Viajante de Paulo Cezar Saraceni

Dos veteranos do cinema brasileiro o que mais se ouviu nessa década foi a dificuldade de cada um em filmar, conseguir recursos, fazer pré-, pós- e produção, etc. Lembrança desagradável a de Rogério Sganzerla, tristeza nos olhos, dizendo que não conseguia juntar dinheiro pra filmar. Extinta a Embrafilme sem aviso prévio, um grande grupo de cineastas representativos e que constituíam o melhor do cinema brasileiro ficaram de mãos atadas, sem qualquer política institucional que lhes dessem subsídios para que continuassem trabalhando com cinema e fazendo evoluir suas obras. Os cineastas dos anos 60 e 70, que trabalharam muito para que fosse criado o órgão estatal de cinema, viram-se sem futuro claro no cinema, e isso influenciou na obra de mais de um cineasta.

Carlos Diegues, ao que parece, foi o mais privilegiado em buscar outras parcerias, outros meios de fazer cinema. Desde o contrato com a rede Globo para exibir Dias Melhores Virão ao acordo com a TV Cultura em Veja Essa Canção, ainda com o mal-sucedido Tieta do Agreste e com o blockbuster Orfeu, Diegues foi o cineasta do cinema novo que mais produziu. Estilisticamente, seu cinema manteve-se nas raias da linguagem popular, enfatizando a mestiçagem e o imaginário popular, à imagem de Xica da Silva, sua mais perfeita realização no estilo que preferiu seguir. Se todos os seus filmes nessa década têm problemas (de populismo, de estilo, de proposta), mesmo assim é possível vislumbrar belos momentos com Marília Pêra e Rita Lee em Dias Melhores Virão, Pedro Cardoso e Débora Bloch em Veja Essa Canção ou até entre Patrícia França e Toni Garrido em Orfeu.

Paulo Cezar Saraceni e Walter Lima Jr. não tiveram tanta sorte de realização, mas conseguiram fazer, em pouca obra, a melhor coisa de suas carreiras. Saraceni não filmava desde Natal da Portela, de 1988. Com Bahia de Todos os Sambas realizou um belo documentário (co-direção de Leon Hirszman), mas com O Viajante realizou um filme precioso, um fantástico trabalho de atores, um despojamento de atores (a divina Marília Pera, Nelson Dantas e Leandra Leal) numa poesia seca, cabralina, que quando se derrama (a polêmica cena dos balões vermelhos) assusta pela simplicidade.Walter Lima Jr., depois de um estilisticamente confuso O Monge e a Filha do Carrasco, realizou com A Ostra e o Vento uma obra também única, utilizando a mesma menina Leandra Leal, mas através de um estilo mais impressionista, aproveitando a música etérea e a beleza do imaginário de uma ilha-farol. Com A Ostra e o Vento, Walter Lima foi ao ápice de seu cinema de fabulação (Inocência, Ele o Boto), mas A Lira do Delírio continua sendo o realista insuperável.

Mas o cineasta do cinema novo que mais sofreu com o novo esquema do cinema brasileiro (ou a falta de esquema) foi Nelson Pereira dos Santos. Seu projeto sobre Castro Alves ainda não está completo, e permanecem sérias dúvidas se chegará ao final. Quanto aos fimes realizados, não conseguiram realizar um diálogo o público. Sem público e abandonado pela crítica, que repudiou seu Cinema de Lágrimas e não apreciou A Terceira Margem do Rio, Nélson Pereira dos Santos foi a figura mais injustiçada nos anos 90. Mesmo porque A Terceira Margem, filme baseado na obra de Guimarães Rosa mas extremamente (neo-)realista, é uma obra de porte em sua carreira, um dos poucos casos no cinema brasileiro em que uma adaptação literária emancipa-se da obra-base para constituir um próprio universo. Lição para Abranches e Bial.

Dois cineastas que foram mais discretos no cinema novo conseguiram obras vigorosas nesses últimos dez anos. Amores de Domingoa de Oliveira e Santo Forte de Eduardo Coutinho, mesmo não apresentando muitas mudanças em relação à obra anterior, consolidam — cada um à sua maneira — uma forte obra e uma visão-de-mundo fascinante. Coutinho acaba se saindo um pouco melhor: sua máquina cinematográfica já está toda montada, ela sabe funcionar perfeitamente, à sua clássica maneira: ele retira poesia do mínimo, da pobre faxineira que se declara atéia à senhora que canta "Caminho Certo" do Trio de Ouro. Esse traço límpido e indefectível, foi o que Amores só realizou em parte. A despeito de ser uma notável realização e uma reatualização honesta e rica da problemática existencial cara a Oliveira — e um trabalho de interpretação digno de nota — estilisticamente o filme revela um certo descontrole, um "gap" na passagem para uma nova estética, mais corrida e descontínua como os dias de hoje (ressente-se a mesma coisa em Woody Allen, que aliás tem um universo semelhante a DO).

Estéticas vigorosas têm também dois mestres do cinema sujo: Neville d'Almeida e Ozualdo Candeias. O primeiro teve duas realizações na década: Matou a Família e Foi ao Cinema, re-make do filme homônimo de Júlio Bressane e sua pior obra, e Navalha na Carne. Quanto a Navalha na Carne, atribuiu-se de primeira o filme ao comercialismo explícito, à estética de "mau-gosto" das pornochanchadas. Não sabemos por quê, preferiu-se não avaliar o filme em função de sua carreira, e de uma mesma proposta que permeia todos os seus filmes: realizar uma estética da bandalha, uma ontologia do caos, do pus e da porra, sem o mnor verniz intelectual. Claro, sob esse aspecto o cinema de Neville d'Almeida é o filho feio do cinema brasileiro: na década em que se buscou o inofensivo bonitinho, o ofensivo horrível repugna. E esse é o grande valor de Navalha na Carne e dos filmes de d'Almeida. Quanto ao cinema de Ozualdo Candeias, nada poderia ser mais triste. Um dos realizadores mais importantes do cinema brasileiro é hoje um ilustre desconhecido, há gerações inteiras que não viram um único filme seu, e sua única realização na década, O Vigilante, nem chegou a ser exibido comercialmente. Seu cinema, entretanto, continua afiado, divino e maravilhoso como poucos no mundo.

Carlos Reichenbach e Júlio Bressane, dois dos pilares do cinema "pós-novo", mantiveram a continuidade de sua produção. Reichenbach, cineasta precioso, veio com duas gemas, Alma Corsária e Dois Córregos, e apresenta-se, pela sistemática de produção e qualidade na realização, como o mais importante realizador brasileiro da década. Já Júlio Bressane começou os 90 com um cinema já de formato estabelecido a partir de Tabu, de pesquisa de cultura brasileira e de trucagens de cinema primitivo (O Mandarim). Com Miramar realizou o que alguns consideram como o filme mais fraco de sua carreira, um filme que, tematizando a descoberta (da criação, do cinema), pode muito bem se situar como um divisor de águas, muito porque São Jerônimo é uma obra ímpar, resplandescente de sua carreira. A refereicnalidade do cinema está de fora para dar lugar à Luz, à grande luz que é a base do cinema. Ela e Everaldo Pontes nos surpreendem com um filme instigante como feito por um renascido, talvez um verdadeiro "segundo primeiro filme".

Se começamos com uma citação triste de Sganzerla, terminemos falando alegremente de seu filme: Tudo É Brasil é talvez o melhor filme dessa década, certamente o melhor filme de Sganzerla em trinta anos e talvez seu filme mais perfeito, mais abrangente, Claro, não podemos esquecer do verdadeiro tratado que é Bandido da Luz Vermelha nem da peça rara que é sua Mulher de Todos. Mas todo o frescor, todo o som e a fúria do cinema estão muito bem apresentadas nesse Tudo É Brasil: mais que um hino a Orson Welles, um hino ao cinema, um hino ao Brasil, um hino à vida. É com filmes como esse que a década foi ótima de se viver. Muito obrigado, cinema.

Ruy Gardnier