O Viajante de Paulo
Cezar Saraceni
Dos veteranos do cinema brasileiro
o que mais se ouviu nessa década foi a dificuldade de cada um
em filmar, conseguir recursos, fazer pré-, pós- e produção,
etc. Lembrança desagradável a de Rogério Sganzerla,
tristeza nos olhos, dizendo que não conseguia juntar dinheiro
pra filmar. Extinta a Embrafilme sem aviso prévio, um grande
grupo de cineastas representativos e que constituíam o melhor
do cinema brasileiro ficaram de mãos atadas, sem qualquer política
institucional que lhes dessem subsídios para que continuassem
trabalhando com cinema e fazendo evoluir suas obras. Os cineastas dos
anos 60 e 70, que trabalharam muito para que fosse criado o órgão
estatal de cinema, viram-se sem futuro claro no cinema, e isso influenciou
na obra de mais de um cineasta.
Carlos Diegues, ao que parece,
foi o mais privilegiado em buscar outras parcerias, outros meios de
fazer cinema. Desde o contrato com a rede Globo para exibir Dias
Melhores Virão ao acordo com a TV Cultura em Veja Essa
Canção, ainda com o mal-sucedido Tieta do Agreste
e com o blockbuster Orfeu, Diegues foi o cineasta do cinema
novo que mais produziu. Estilisticamente, seu cinema manteve-se nas
raias da linguagem popular, enfatizando a mestiçagem e o imaginário
popular, à imagem de Xica da Silva, sua mais perfeita
realização no estilo que preferiu seguir. Se todos os
seus filmes nessa década têm problemas (de populismo, de
estilo, de proposta), mesmo assim é possível vislumbrar
belos momentos com Marília Pêra e Rita Lee em Dias Melhores
Virão, Pedro Cardoso e Débora Bloch em Veja Essa
Canção ou até entre Patrícia França
e Toni Garrido em Orfeu.
Paulo Cezar Saraceni e Walter
Lima Jr. não tiveram tanta sorte de realização,
mas conseguiram fazer, em pouca obra, a melhor coisa de suas carreiras.
Saraceni não filmava desde Natal da Portela, de 1988.
Com Bahia de Todos os Sambas realizou um belo documentário
(co-direção de Leon Hirszman), mas com O Viajante
realizou um filme precioso, um fantástico trabalho de atores,
um despojamento de atores (a divina Marília Pera, Nelson Dantas
e Leandra Leal) numa poesia seca, cabralina, que quando se derrama (a
polêmica cena dos balões vermelhos) assusta pela simplicidade.Walter
Lima Jr., depois de um estilisticamente confuso O Monge e a Filha
do Carrasco, realizou com A Ostra e o Vento uma obra também
única, utilizando a mesma menina Leandra Leal, mas através
de um estilo mais impressionista, aproveitando a música etérea
e a beleza do imaginário de uma ilha-farol. Com A Ostra e
o Vento, Walter Lima foi ao ápice de seu cinema de fabulação
(Inocência, Ele o Boto), mas A Lira do Delírio
continua sendo o realista insuperável.
Mas o cineasta do cinema novo
que mais sofreu com o novo esquema do cinema brasileiro (ou a falta
de esquema) foi Nelson Pereira dos Santos. Seu projeto sobre Castro
Alves ainda não está completo, e permanecem sérias
dúvidas se chegará ao final. Quanto aos fimes realizados,
não conseguiram realizar um diálogo o público.
Sem público e abandonado pela crítica, que repudiou seu
Cinema de Lágrimas e não apreciou A Terceira
Margem do Rio, Nélson Pereira dos Santos foi a figura mais
injustiçada nos anos 90. Mesmo porque A Terceira Margem,
filme baseado na obra de Guimarães Rosa mas extremamente (neo-)realista,
é uma obra de porte em sua carreira, um dos poucos casos no cinema
brasileiro em que uma adaptação literária emancipa-se
da obra-base para constituir um próprio universo. Lição
para Abranches e Bial.
Dois cineastas que foram mais
discretos no cinema novo conseguiram obras vigorosas nesses últimos
dez anos. Amores de Domingoa de Oliveira e Santo Forte de
Eduardo Coutinho, mesmo não apresentando muitas mudanças
em relação à obra anterior, consolidam — cada um
à sua maneira — uma forte obra e uma visão-de-mundo fascinante.
Coutinho acaba se saindo um pouco melhor: sua máquina cinematográfica
já está toda montada, ela sabe funcionar perfeitamente,
à sua clássica maneira: ele retira poesia do mínimo,
da pobre faxineira que se declara atéia à senhora que
canta "Caminho Certo" do Trio de Ouro. Esse traço límpido
e indefectível, foi o que Amores só realizou em
parte. A despeito de ser uma notável realização
e uma reatualização honesta e rica da problemática
existencial cara a Oliveira — e um trabalho de interpretação
digno de nota — estilisticamente o filme revela um certo descontrole,
um "gap" na passagem para uma nova estética, mais corrida e descontínua
como os dias de hoje (ressente-se a mesma coisa em Woody Allen, que
aliás tem um universo semelhante a DO).
Estéticas vigorosas
têm também dois mestres do cinema sujo: Neville d'Almeida
e Ozualdo Candeias. O primeiro teve duas realizações na
década: Matou a Família e Foi ao Cinema, re-make
do filme homônimo de Júlio Bressane e sua pior obra, e
Navalha na Carne. Quanto a Navalha na Carne, atribuiu-se
de primeira o filme ao comercialismo explícito, à estética
de "mau-gosto" das pornochanchadas. Não sabemos por quê,
preferiu-se não avaliar o filme em função de sua
carreira, e de uma mesma proposta que permeia todos os seus filmes:
realizar uma estética da bandalha, uma ontologia do caos,
do pus e da porra, sem o mnor verniz intelectual. Claro, sob esse aspecto
o cinema de Neville d'Almeida é o filho feio do cinema brasileiro:
na década em que se buscou o inofensivo bonitinho, o ofensivo
horrível repugna. E esse é o grande valor de Navalha
na Carne e dos filmes de d'Almeida. Quanto ao cinema de Ozualdo
Candeias, nada poderia ser mais triste. Um dos realizadores mais importantes
do cinema brasileiro é hoje um ilustre desconhecido, há
gerações inteiras que não viram um único
filme seu, e sua única realização na década,
O Vigilante, nem chegou a ser exibido comercialmente. Seu cinema,
entretanto, continua afiado, divino e maravilhoso como poucos no mundo.
Carlos Reichenbach e Júlio
Bressane, dois dos pilares do cinema "pós-novo", mantiveram a
continuidade de sua produção. Reichenbach, cineasta precioso,
veio com duas gemas, Alma Corsária e Dois Córregos,
e apresenta-se, pela sistemática de produção e
qualidade na realização, como o mais importante realizador
brasileiro da década. Já Júlio Bressane começou
os 90 com um cinema já de formato estabelecido a partir de Tabu,
de pesquisa de cultura brasileira e de trucagens de cinema primitivo
(O Mandarim). Com Miramar realizou o que alguns consideram
como o filme mais fraco de sua carreira, um filme que, tematizando a
descoberta (da criação, do cinema), pode muito bem se
situar como um divisor de águas, muito porque São Jerônimo
é uma obra ímpar, resplandescente de sua carreira.
A refereicnalidade do cinema está de fora para dar lugar à
Luz, à grande luz que é a base do cinema. Ela e Everaldo
Pontes nos surpreendem com um filme instigante como feito por um renascido,
talvez um verdadeiro "segundo primeiro filme".
Se começamos com uma
citação triste de Sganzerla, terminemos falando alegremente
de seu filme: Tudo É Brasil é talvez o melhor filme dessa
década, certamente o melhor filme de Sganzerla em trinta anos
e talvez seu filme mais perfeito, mais abrangente, Claro, não
podemos esquecer do verdadeiro tratado que é Bandido da Luz
Vermelha nem da peça rara que é sua Mulher de Todos.
Mas todo o frescor, todo o som e a fúria do cinema estão
muito bem apresentadas nesse Tudo É Brasil: mais que um
hino a Orson Welles, um hino ao cinema, um hino ao Brasil, um hino à
vida. É com filmes como esse que a década foi ótima
de se viver. Muito obrigado, cinema.
Ruy Gardnier