A Morte do Cinema Melancólico




A Aventura, de Michelangelo Antonioni

Talvez seja possível dizer que o cinema melancólico é, em nossos dias, um gênero virtualmente extinto. De quando em quando, ainda podemos encontrar algum razoável filme triste, mas também isto é cada vez mais raro; filmes desesperados, decerto, ainda são produzidos a mancheias; invariavelmente péssimos, no entanto. Mas a beleza do cinema melancólico, todavia, é um deleite que hoje cada vez menos nos é facultado.

Entendo que a melancolia é sem dúvida uma variante da tristeza; variante, todavia, infinitamente mais sofisticada, sutil e perigosa... A característica central da melancolia é sua total ausência de um conteúdo perceptível; é um sentimento desprovido de carga dramática, que não exprime conteúdos palpáveis e nem tampouco se exerce claramente sobre qualquer objeto. Fazendo uma analogia por certo imprecisa, podemos dizer que a melancolia é um moderado vazio desdramatizado. Um moderado vazio, reparem, distinto do pungente vazio do desespero, que na verdade possui um fortíssimo conteúdo, e mesmo da discreta, porém evidente, materialidade da tristeza. Trata-se, todavia, de uma ausência que insiste na demonstração de seu vazio informe. A melancolia é o desalento silencioso de algo que não pode ser definido; uma sombra discreta, mas inquietante.

O cinema melancólico é a difícil tentativa de retratar este inefável estado de espírito. É preciso celebrar, por exemplo, a façanha levada a cabo por Peter Bogdanovich em The Last Picture Show (1971), onde que o poderia ser risível dramalhão se converte em sinuoso e sedutor desassossego; de fato, uma proeza admirável no panorama do cinema norte-americano, em geral avesso às filigranas da arte melancólica, como bem o demonstra o próprio Bogdanovich em seus filmes posteriores. Cria Cuervos (1976), de Carlas Saura, uma das obras capitais do cinema melancólico, também foi realizado em ambiente pouco afeito ao gênero. Além da delicadeza de Saura na carpintaria narrativa, sublinhemos a magnífica interpretação da menina Anna Torrent (quem poderá esquecer a intensidade excruciante de seu olhar?) e, sobretudo, o desempenho magistral da refulgente Geraldine Chaplin, atriz cuja relevância infelizmente é ofuscada pelo peso histórico de seu pai; a ela, pois, presto aqui meu mais sincero tributo.

O grande artífice da melancolia fílmica talvez, contudo, tenha sido o cineasta italiano Michelangelo Antonioni, especialmente na trilogia formada por L’Avventura (1960), La Notte (1961) e L’Eclisse (1962), onde a melancolia assumiu os contornos de um requintado e hipnótico ballet de sombras deslizantes e agonias sublimadas, e em Blow-up (1966), síntese irônica da languidez elegante como visão de mundo. Jean-Luc Godard, por sua vez, em Une Femme est une Femme (1960), Vivre sa Vie (1963) e Alphaville (1965), revelou grande mestria num sutil jogo de artifícios, ocultando a melancolia sob gêneros estrategicamente insuspeitos: o cinema musical no primeiro caso, o cine-documentário de corte sociológico no segundo e a paródia de ficção científica no terceiro. Não pode ser subestimada, vale dizer, tanto nos filmes de Antonioni quanto nos de Godard, a contribuição inestimável de três grandes damas do desalento etéreo e sofisticado: Monica Vitti, Jeanne Moreau e Anna Karina.

O primus inter pares do gênero é, entretanto, Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Resnais. O que poderia falar diante sobre este imperecível monumento, a respeito do qual, aliás, já escrevi para as páginas de Contracampo? William Faulkner disse certa vez que "o artista está um degrau acima do crítico, pois está escrevendo alguma coisa que porá o crítico em movimento. O crítico está escrevendo alguma coisa que porá todo mundo em movimento, menos o artista". Creio que Faulkner foi feliz nesta observação, pois a crítica é, de fato, sempre caudatária da obra de arte; caudatária e talvez, o que é mais grave, cruelmente inútil quando pretende interpretar uma obra-prima, como é o caso de Hiroshima. De qualquer modo, gostaria de registrar a seguinte consideração: penso que este filme conseguiu algo de extraordinário ao transfigurar a densidade do trágico através da sutileza da melancolia. Os eventos narrados em Hiroshima se impõem não pela fatuidade de gestos exaltados ou palavras bombásticas, mas através de uma epifania de requintados milagres consubstanciados na direção de Resnais, na interpretação de Emmanuelle Riva (a meu ver, a melhor em toda a história do Cinema), na música de Giovanni Fusco e na fotografia de Sacha Vierny.

O traço distintivo do cinema melancólico, como fica patente nas obras acima mencionadas, é a ausência de envolvimento. Enquanto o cinema trágico nos consente participar do sofrimento das personagens, dissolver nossas inquietações na iridescência volátil da tela, o cinema melancólico nega ao espectador tal lenitivo. O dilaceramento espiritual que a Tragédia nos propicia pode ser doloroso, mas assim o são todos os rituais de expiação, que no entanto nos purificam; a melancolia, ao contrário, miasma insidioso, alui silente todas as certezas e esperanças, mas não permite o retorno, porque sutilmente nos oculta o exílio. A melancolia não possui, vale dizer, a intensidade da tristeza, ou o vigor estimulante do ódio, e nem tampouco os evidentes encantos de sentimentos como o amor, a alegria e a paixão; talvez seja, portanto, um estado d’alma inacessível à vulgaridade do senso comum, que vaga sem rumo pelos orcos cinéreos da terra devastada... What is that sound high in the air, Murmur of maternal lamentation, hooded hordes swarming Over endless plains, stumbling in cracked earth Ringed by the flat horizon only...

O silêncio, a sensibilidade e a delicadeza estão agonizando no histérico e estéril desvario do admirável mundo novo em que vivemos; e sem o concurso do silêncio, da sensibilidade e da delicadeza, a arte melancólica também desaparece de nosso já parco horizonte de possibilidades...

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity...

Alfredo Rubinato