Cinderela Bahiana
de Conrado Sanchez
Poucas vezes houve uma detonação
tão frontal de um filme quanto a deste Cinderela Bahiana.
Há motivos: o caráter caça-níqueis da produção,
a pouquíssima competência de Karla Perez para atuar, e
sobretudo a aparente ausência de roteiro, incapaz de nos desligar
do descuido da realização. Mas parece haver também
um sem-número de motivos para que o filme agrade: a forma quase
documentária como a Bahia e suas organizações musicais
são apresentadas, a simpatia dos atores não-profissionais
e dos dançarinos (incluindo Karla Perez), o elogio da pobreza
e a extrema simplicidade com que tudo é apresentado no filme.
Mas na verdade a discussão ficou
alhures. Baseou-se, sobretudo, no grande preconceito que a imprensa
"cultural" tem com os produtos populares, de massa. Porque certamente
houve filmes mais repugnantes, mais mal-intencionados, mais caça-níqueis,
mais mal realizados do que Cinderela Bahiana. Percebe-se que
toda a imprensa cultural, que pretensamente deseja um cinema popular,
deseja na realidade um cinema burguesóide, popular só
na pretensão.
Cinderela Bahiana, queira-se ou
não, pertence a um filão tradicional do cinema brasileiro,
qual seja, a comédia musical sem compromissos, feita sem maiores
preocupações formais e sem grandes cuidados com certos
aspectos da realização. Tais foram as comédias
carnavalescas (também conhecidas como chanchadas) da Cinédia
e alguns filmes da companhia Maristela. Tem características,
antes de tudo, de divulgação de artistas e, através
de algumas gags, passa de um número musical a outro.
Se Cinderela Bahiana simplesmente
se inscrevesse no gênero, não seria motivo suficiente para
um destaque. Mas, por toda a importância documental, realçada
pelo "primitivismo" da realização, esse filme de Conrado
Sanchez merece alguma atenção: a) no cuidado em apresentar
o panorama musical da Bahia; b) por mostrar como a música na
Bahia é uma importante forma de agregação social,
onde as classes se misturam; c) por mostrar como funciona o comércio
musical, mesmo que o vilão seja pintado, a comédia pede,
com cores fortes demais para ser verossímil; d) por filmar em
locação, evitando a "poesia" do estúdio para nuançar
os problemas sociais, por exemplo, da favela; e e) por tentar estabelecer
contato artístico principalmente através da música.
Cinderela Bahiana em poucos anos será considerado peça
importante.
Pouco importa a risível cena em
que Alexandre Pires e Karla Perez declaram amor um pelo outro, como
pouco importam também as péssimas atuações
de Karla e da atriz que disputa com ela um lugar como dançarina.
Importa em alguns momentos a simplicidade das soluções:
notadamente a ascendência de Perry Salles, pai de Karla, que é
mostrada apenas por uma placa pendurada na parede; nas cenas de nomeação,
se o texto é ridículo, as imagens ao menos fazem pensar
no cinema japonês, inclusive pela tola obediência à
autoridade do chefe.
Cinderela Bahiana não é
uma obra-prima. Tampouco um excelente filme. Mas há de se fazer
um segundo julgamento, uma nova visão do filme, fora do preconceito
musical e social, para que o filme tome seu lugar de direito. Muita
chanchada já sofreu desse preconceito, e hoje ela está
revigorada, em alta conta até. E, afinal, por que não
honrar esse Cinderela, uma vez que vivemos rodeados de abacaxis
como Bella Donna, Até Que a Vida Nos Separe e Mauá,
que jamais terão qualquer valor reconhecido, senão o técnico?
Cinderela Bahiana já faz muito nem em existir, e em tentar
ser um equivalente cinematográfico da música de lá.
Ele ao menos incorpora um perfil de sociedade, de comunidade, e coloca
a música lá dentro. Só por isso ele já vale.
Ruy Gardnier