"Brasil Brasileiro", Cinema
Internacional e Resignação...
Anos 90 — Quem vai ter saudade ou o que estará por vir?





Central do Brasil de Walter Salles

(Atenção: este artigo faz especulações sobre a década possíveis apenas de um ponto de vista retrospectivo. Não há aqui a intenção de revelar qualquer tipo de complô firmado previamente contra ou a favor do cinema brasileiro!!!)

Pela maneira como começou, a década de noventa prometia ser a mais difícil de toda a história para o cinema brasileiro, um período negro para realizadores e profissionais da área, durante o qual estes teriam que enfrentar as piores condições de produção de todos os tempos. Mas, afinal, não foi bem assim, ainda mais no que diz respeito, por incrível que pareça, a exatamente esse último ponto: as condições de produção foram talvez as melhores de todos os tempos, os maiores orçamentos, as maiores equipes, os maiores gastos, inaugurou-se a era das super produções brasileiras.

Uma manobra rápida por parte da maioria de nossos cineastas (e de nosso governo também, porque não...) foi a responsável pela mudança de perspectiva ao longo da década e pela salvação (?) do cinema e de seus bons profissionais do completo desemprego. Essa manobra vultuosa consistiu, no entanto, numa operação simples e nada controversa, ou seja, na resignação quase total de nossa produção aos ditames do mercado. Não que a busca de uma aproximação com este seja algo inédito, ou não tivesse sido tentada antes (mesmo na década anterior), ou não tivesse existido efetivamente durante alguns ciclos... Mas a maior parte dos cineastas brasileiros vinha exercendo suas atividades sem grandes preocupações com o retorno financeiro de seus filmes – eram, antes de tudo, "livres para criar" às custas da Embrafilme.

Para realizar tal intento – conquistar espaço no mercado – dois artifícios iniciais básicos: "melhorar" as produções (encarecimento sobretudo necessário) e arejar (por assim dizer) os temas, os roteiros, buscar uma inspiração hollywoodiana ou "folhetinesca" para os filmes. "Contar bem boas estórias" – essa poderia ser a máxima da década, já que não saiu da boca de muitos diretores. Mas que boas estórias seriam estas? O cinema brasileiro não dispunha efetivamente de uma fórmula comercial garantida na época. Seria necessário criá-la, "pesquisá-la" com a ajuda de um método de "tentativas e erros". Uma primeira suspeita, no entanto, (que mais tarde se confirmaria) recaiu sobre a utilização de temáticas brasileiras nos filmes ("o brasileiro gosta de se ver na tela"): episódios e temas da nossa história, crônica da vida nas nossas cidades, regionalismos, adaptações de clássicos de nossa literatura... Para o momento, melhor fonte, impossível.

Mas, infelizmente, chamar a atenção do público não seria tão fácil. Não bastava que ele se identificasse com a temática dos filmes, não se poderia mudar a atitude negativa da maior parte do público em relação ao cinema nacional por decreto – mesmo uma campanha, como foram feitas várias, teria efeitos mínimos. Não bastava melhorar as produções e adotar modelos de narração e interpretação consagrados e conhecidos da maior parte do público. Foram precisos alguns filmes, alguns "fracassos" e alguns "sucessos", para que se chegasse a uma fórmula mais acabada. Essa fórmula, ou esse modelo ideal de promoção do cinema brasileiro, ditava que seria melhor, antes, conquistar o reconhecimento internacional, através de prêmios e festivais, para depois chegar ao público brasileiro – pelo menos quando se tratasse do público brasileiro adulto.

Um subterfúgio a mais seria, então, necessário para alcançar o concorrido mercado internacional de cinema: copiar o modelo das recentemente bem sucedidas cinematografias nacionais, como a chinesa ou a iraniana. Era preciso fazer do cinema brasileiro uma "cinematografia nacional" também. O mercado estrangeiro deveria ver os filmes brasileiros como parte de uma cinematografia emergente, tal como havia feito com uma leva de filmes chineses e iranianos. A "brasilidade" como temática primordial dos filmes recebe o aval que faltava. Afinal uma cinematografia precisa ter a mesma cara "exótica" de seu país.

O Quatrilho, feito sob medida para o mercado externo, foi talvez o primeiro sucesso neste sentido. A indicação ao Oscar chamou a atenção do mercado internacional e possibilitou, como se pensava, uma volta luxuosa do filme ao circuito nacional. O público interno passou, então, a respeitar mais o seu próprio cinema, que mostrava mais produções mais caras e mais premiações (mais indicações para o Oscar). O caminho parecia definido: tema brasileiro, mas em padrão didático e multinacional de intelecção, produção bem cuidada, de nível internacional – se possível alguns atores e personagens estrangeiros para aumentar o interesse dos gringos.

Esse modelo de realização e promoção veio consagrar a "seriedade" das produções como saída para o cinema brasileiro e criar aquilo que chamamos acima de "as melhores condições de produção de todos os tempos". Neste sentido, o grande sucesso e paradigma da década foi Central do Brasil.

Walter Salles, como outros cineastas brasileiros do período, demorou para "acertar a mão"... Seu primeiro filme talvez represente hoje o que há de mais condenável para quem defende o cinema brasileiro: um filme brasileiro que não se parece com um filme brasileiro. Rebento de uma vertente malograda de modelo para produção de cinema dos primórdios da década – o Brasil como filial das montadoras multinacionais de entretenimento – A Grande Arte, apesar do nível internacional (o que quer que isso signifique), fracassou na sua absoluta falta de interesse e carisma.

Seu segundo filme já é o reflexo da pesquisa que os cineastas vinham fazendo, nos últimos anos, a cerca de um modelo comercial para o cinema brasileiro. Terra Estrangeira aponta, como outros filmes brasileiros da época, para a busca da temática nacional como elemento de identificação com o público e para a criação de uma cinematografia brasileira uniformizada e de alcance internacional.

Com Central do Brasil a fórmula se aprimora e atinge seu maior sucesso até o momento. O cinema nacional consegue um legítimo ponta de lança para as intenções de formação de uma cinematografia brasileira, de um "selo de qualidade" brasileiro no mercado externo. Essa fórmula contém não só elementos abundantes de brasilidade ("turística", bem ao gosto do olhar estrangeiro), um modelo amplamente inteligível de narração, interpretação e produção esmerada, como também uma série de dados novos tirados de uma pesquisa realizada também em torno de filmes das cinematografias minoritárias que mais sucesso vinham fazendo no mercado internacional de cinema nos últimos anos. Entre estes novos dados um se sobressai: um certo humanismo, um gosto pelo "humano" (na maior parte das vezes, pelo clichê do "humano"), um tanto inspirado no neo-realismo italiano, que procurava mostrar, principalmente, as dificuldades da vida no chamado terceiro mundo, a pobreza das periferias do capitalismo, mas sempre ressaltando o aspecto "humano" presente no tema.

Não que os filmes que "tematizavam" a pobreza ou o "exotismo" característico de seus países de origem tenham obtido as maiores bilheterias da época, mas eles (os iranianos principalmente) conseguiram uma abertura e um lugar num mercado muito concorrido que interessava aos brasileiros. Essa demanda que passou a haver (ou voltou a haver) por filmes que retratavam, grosso modo, a vida difícil de seus personagens – ou este precedente aberto então – indicou um caminho possível para os nossos realizadores e produtores.

Caminho que Central do Brasil inaugurou – e também, num certo sentido, encerrou (alguém mais ousaria copiá-lo?) – inspirando-se em filmes iranianos, chineses e, muito curiosamente, no indiano Salaam Bombay, de 1988. Este filme obteve boa carreira comercial, para um filme não falado em inglês, nos Estados Unidos, foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro, recebeu a Câmera de Ouro em Cannes e lançou sua diretora, Mira Nair, em carreira internacional. Ele mostra as "aventuras" de um menor abandonado nas ruas de Bombaim, sempre ressaltando o lado humano na narrativa, e com, inclusive, um curiosa cena em que o garoto, personagem principal, pede a um "escrevedor" de cartas que lhe escreva para seus pais. O "escrevedor", no entanto, acaba apenas ficando com o dinheiro do garoto, sem ajudá-lo. Mas, obviamente, isso só pode ser apontado como uma curiosidade, ou uma mera coincidência, já que "escrevedores" de carta são tão comuns no Brasil quanto na Índia.

O sucesso de Central do Brasil no exterior pode ou não ter sido devido a esta abertura de mercado ou a esta demanda (se é que ela realmente existe) a que o filme teria correspondido perfeitamente, isso não importa muito aqui. O que importa, no entanto, é salientar como o filme é o produto acabado de toda uma busca do mainstream do cinema brasileiro por uma fórmula de mercado – o cinema infantil já encontrara essa fórmula, mas se voltando exclusivamente para o mercado interno – que represente a sobrevivência (e por enquanto é só isso) da atividade no país. Central do Brasil não é, em certo sentido, um produto espontâneo da cultura brasileira, nem reflete sobre qualquer realidade que, por acaso, nos pertença. Ele é um produto de entretenimento criado segundo modelos – a divisão em três atos à la Syd Field pode ser encontrada no roteiro, por exemplo – e necessidades de mercado, para o mercado, e, prioritariamente, para o mercado estrangeiro. É um engano colocá-lo ao lado de filmes do cinema novo, que expressam outros anseios (Central do Brasil está para o cinema novo assim como A Vida é Bela para o neo-realismo). Mas, por outro lado, o filme é extremamente representativo do momento cultural e estético pelo qual o cinema brasileiro passou na década de noventa: um momento de quase completa resignação ao mercado e de pouca variedade de discursos.

É claro que, no entanto, houve exceções, principalmente por parte de cineastas muito comprometidos com a continuidade de seus trabalhos, como Júlio Bressane, com pelo menos dois grandes filmes, Miramar e São Jerônimo, e Ugo Giorgetti, com Boleiros. Poderíamos citar ainda Carlos Reichenbach, com Alma Corsária, e Rogério Sganzerla, com Tudo é Brasil. Diretores como estes optaram por orçamentos mais baixos e propostas estéticas mais consistentes, sem mirar diretamente o mercado ou adotar o modelo mais consensual da época, e foram eles que melhor contribuíram para a boa memória da década.

O final dos anos noventa parece apontar, felizmente, para uma diversificação maior da produção, um certo abandono da insistência na brasilidade, um pequeno "surto" de documentários chegando aos circuitos (ainda que a maior parte destes não permita falar em uma escola de qualidade), e uma pequena multiplicação das produções médias e pequenas (ainda que a mania das "super" produções nacionais – Chatô, O Guarani – continue a assombrar e a emperrar todo o resto).

Resta saber o que ficou desta década e se teremos que, necessariamente, apontá-la como uma década perdida, dada a pouca expressividade e a pequena quantidade de filmes realmente bons e importantes. Fora os "sucessos" dos indicados ao Oscar e das produções infantis, a maior parte das produções que visavam o mercado (inclusive as super produções) naufragaram nos habituais entraves do mercado brasileiro de cinema e na falta de interesse do grande público por filmes, em geral, sem carisma. A opção pelo mercado é realmente válida se o próprio mercado absorve mal o filme brasileiro? Valeria, então, a pena gastar tanto dinheiro (de isenções fiscais, em sua maior parte) em tantas produções que o mercado praticamente ignora, a que o público brasileiro não assiste mesmo, e que não são, falando abertamente, bons filmes, mas antes de tudo desculpas para manter o "estado de coisas" que beneficia a elite do cinema brasileiro com o privilégio de exercer a atividade cinematográfica, com bom salário, e de se auto intitular "cineasta" ou "artista"?

Por via das dúvidas é melhor procurar acreditar – para que não se postule o desaparecimento da produção de cinema no Brasil – que a década não foi perdida e que ela representou um ajuste (uma espécie de plano real cinematográfico?) necessário para um futuro mais promissor, e que um certo tempo é necessário para que o público volte a assistir seus filmes, a ter confiança nos seus produtores, etc... Mas, francamente, enquanto o mercado for a única opção, as perspectivas não serão nada animadoras e ser otimista, neste caso, parece ser quase o mesmo que ser demagogo.

Luiz Rezende Filho