O Voo
Flight, Robert Zemeckis, EUA, 2013

No travelling mais impactante de O voo, vemos Denzel Washington abaixado diante de um criado mudo de hotel, na posição análoga a um devoto, cheirando uma carreira de cocaína. A câmera avança descontroladamente no curto espaço que vai do início do móvel até às narinas do ator e, de maneira inesperada, ergue-se, enquadrando de cima o rosto de Washington. Neste pequeno gesto virtuoso assumido pela câmera de Zemeckis, podemos identificar a metáfora visual que sintetiza toda a questão religiosa presente no longa-metragem. Em meio ao sexo e às drogas, há espaço para a devoção. Para colocar-se de joelhos e levantar os olhos ao céu e, em troca, receber, de cima, o olhar misericordioso da câmera que assume o ponto de vista de Deus (não à maneira hitchcockiana, já que a culpa, aqui, tem outro caráter: não é metafísica, é química). O personagem ainda não sabe, evidentemente, que a devoção demonstrada diante do criado mudo será, ao fim de O voo, resignificada. O piloto de aviões drogado e bêbado encontrará Deus. Das cinzas às cinzas, do pó ao pó.

Filmar a redenção tem sempre algo de banal, dada a recorrência do tema no cinema americano. Por isso, é louvável que Zemeckis encare a vitória moral do capitão Whip de modo tão frontal e, em tempos cínicos como os atuais, tenha coragem de posicionar seu protagonista ao fim do filme diante de um grupo multiétnico de presidiários tatuados, discursando, em close, sobre como mentir é errado. O mundo precisa de homens com o caráter de Zemeckis, que acreditam na bondade e na vitória? Se a vitória e a bondade forem expressas pela mise en scène, com precisão e domínio, por quê não?

Toda a sequência da queda do avião, além do primor técnico, demonstra uma vontade por parte do cineasta que vai além de organizar um espetáculo da ação. A ação, ou a queda propriamente dita, não é a do avião, mas a do capitão Whip. Ao virar de ponta cabeça, a aeronave serve como metáfora da amoralidade do piloto: céu e inferno, para este personagem, é apenas uma questão de ponto de vista (outra vez, mais tarde, isto será resignificado: o piloto, dando uma guinada na vida, saiu do inferno e alçou voo ao céu). Ou seja, o que Zemeckis faz é utilizar todo o aparato hollywoodiano que lhe possibilita criar “efeitos especiais” como elemento motor da mise en scène, ao invés de ilustração protocolar de evento necessário para fazer andar a narrativa.

A narrativa, aliás, é conduzida com bastante serenidade – o tipo de serenidade alcançada pela mão do artesão experiente. Tal qualidade permite que, em dado momento, abandone-se a verossimilhança na qual o desenrolar da trama vinha se fiando até então, sem que o gesto pareça um sobressalto. É mais uma cena que traduz em imagens, com uma simplicidade quase didática (no bom sentido), os movimentos interiores do personagem: Whip, um dia antes do julgamento decisivo sobre o acidente, é colocado em um quarto de hotel. Sóbrio há semanas, o personagem estará sozinho e precisa apenas repousar até a manhã seguinte, quando seu destino será decidido. Para garantir que o homem não caia em tentação, há um segurança no lado de fora do quarto, e o frigobar está preenchido com bebidas não alcoólicas. Tudo corre bem, até que, subitamente, Whip ouve leves batidas na porta. Toc, toc, toc. O piloto, que estava na cama, se levanta e vai até o outro lado do quarto, onde percebe que as batidas estão sendo provocadas pelo vento que atravessa uma porta semiaberta. Lentamente, Whip passa pela porta e descobre um quarto contíguo. O cômodo está vazio. A única presença são os feixes de luz com cor de ouro, que é recortada pela persiana na janela e dá ao ambiente um tom sinistro. O personagem caminha até a janela e vê um avião no céu. No exato momento em que a máquina desaparece de quadro, e junto com ela desaparece o som das turbinas, outra máquina imediatamente ressoa na banda sonora: bzzzzzzzzz, sussurra e hipnotiza o pequeno motor do frigobar. Ao abri-lo, Whip tem o rosto banhado pela fantasmagórica luz branca que emana do objeto que contém o soro do diabo, engarrafado em vidros atraentes e coloridos: o alcoólatra é possuído pelo fantasma da bebida.

Depois disso, só resta o exorcismo e acâmera, gradativamente, passa a olhar Washington na altura dos olhos, e é assim que ele capta o momento da revelação, quando o piloto, testa suada e olheiras, diz, de uma vez por todas: eu estou bêbado. Ao fim, já não há mais devoção, nem cabeças voltadas para o céu. Apenas um singelo plano/contraplano entre pai e filho. É a vitória da bondade.

Wellington Sari


 Abril de 2013