A Hora mais Escura
Dark Zero Thirty, Kathryn Bigelow, EUA, 2012

O que é desconcertante em A hora mais escura é a ausência de um olhar. As imagens estão lá, mas Kathryn Bigelow faz tudo o que pode para não olhá-las. Será preciso então retornar à velha máxima de que não existem fatos brutos no cinema, como também não há olhar neutro possível sobre uma cena. De maneira que restam duas possibilidades ao olhar empreendido pelo filme: ou ele é omisso, ou dissimulado. Acreditamos fortemente se tratar da segunda opção, pois Bigelow tem absoluta consciência do material espinhoso com que trabalha. Seu filme não se omite diante das imagens. Ele as olha, porém não vê nada.

O filme aparentemente trabalha numa lógica compensatória: compra-se o ponto-de-vista americano/republicano da situação, mas não se furta em mostrar as barbáries cometidas pelo exército americano. Somos contagiados pela obstinação da personagem de Jessica Chastain, porém todo o cenário passa longe da idealização (a própria intervenção militar do fim, talvez o melhor trecho do filme, é mostrada como uma tremenda “bagunça”, como diz espirituosamente um dos soldados). Há um estranho pudor do filme em se aprofundar nos personagens: Maya é um trapo humano que vive em função de seu trabalho na CIA. Não possui um passado, uma família ou amigos. O filme quer se colocar nessa superfície do “puro presente” dos fatos, evitando levantar o olhar para além deles.

Não é um escopo mais amplo, no entanto, o que falta ao filme de Bigelow. Falta-lhe simplesmente aderir aos fatos que apresenta, dotando-os de um olhar. Estamos muito longe do que de melhor o cinema americano já produziu ao defrontar-se com o conservadorismo, de Samuel Fuller a Rastros de ódio. Em Fuller ou Ford, há um sentimento conflituoso nas imagens; as coisas possuem um peso – dramático – do qual não se sai impunemente e que cabe aos homens carregar. Tag Gallagher, não à toa, verá em Ford um cineasta dialético. No filme de Bigelow, ao contrário, testemunhamos tão somente um aplainamento das imagens sob a placidez de um ponto-de-vista oco. Imagens contraditórias convivem pacificamente, sem que sejam dramaticamente confrontadas. Caberia ao olhar da diretora dramatizar os eventos, mas uma vez que este olhar se mantém em cima do muro, recusando-se a ligar os pontos da narrativa, o próprio conteúdo esvazia-se. Essa recusa da contradição e da dialética é a manifestação de um reacionarismo típico dos nossos tempos, aquele que dilui todo o poder fogo político em potencial das imagens em troca do engodo pretensamente documental.

O filme se pretende menos uma obra de ficção do que uma reconstituição, onde o ritmo é dado pela progressão dos eventos no tempo, pontuada por cartelas e datas. Os personagens, por sua vez, entram e saem da trama indiferentemente – torturam, investigam, discutem, morrem, bebem vinho, pouco importa. São apenas guias condutores dos fatos narrados. Quando o ponto de vista é transferido de Maya para soldados na etapa final, temos um prolongamento natural dessa dinâmica. E resulta daí que uma cena como aquela de Maya solitária no avião, no final, perca toda a sua força dramática: durante o filme, ficamos vidrados na investigação, que é conduzida pela personagem, mas é exterior a ela. Dirão que compartilhamos, nesta cena final, o mesmo vazio experimentado pela personagem após o fim de uma tarefa épica. Mas são vazios de natureza diferente que enganosamente se sobrepõem: o vazio que experimentamos é aquele da indiferença para com a personagem. É o vazio das imagens que não se prolongam em nós, que se limitam a reconstituir os fatos e cujo interesse é mantido unicamente durante a projeção do filme. Sem que um olhar que se direcione a nós, as imagens permanecem na tela, indiferentes, e nós aqui. O que pensa Kathryn Bigelow daqueles eventos? O que ela sente? Não sabemos, uma vez que a diretora dissimula seu olhar e recusa-se a enfrentar as imagens. O resultado é inócuo. As imagens estão lá, e no entanto não vemos nada.

Calac Nogueira


 Abril de 2013