Marcelo Ikeda
Mantém o blog Cinecasulofilia

Quantos filmes você vê por ano ou por mês? O que pensa desta quantidade? Qual a sua relação com o circuito comercial?

Perdi a conta. Não faço “contabilidade” dos filmes que vejo. Creio que um crítico deva ver o maior número e tipos de filmes possíveis. Mas a qualidade de um crítico não se mede pelo número de filmes a que assistiu, mas sim por como se relaciona com os filmes que assistiu. Não acho que uma enquete sobre a crítica começando pelo “número de filmes que o crítico assiste” seja um bom começo. Além disso, o que são “filmes”? Contam curtas, séries de TV, comerciais, obras instalativas, jogos de futebol, trechos do youtube, cenas do xvideos?

Minha relação com o “circuito comercial” hoje é ínfima, pois moro numa cidade chamada Fortaleza. A internet não é um substituto perfeito para a sala de cinema, especialmente para alguns casos de filmes. Mas cumpre seu papel. Sem a internet hoje, não haveria crítica de cinema no Brasil.

Que qualidades você valoriza em um crítico?

Valorizo as qualidades, mas também os defeitos. Ou seja, o seu lado humano, sua ética. Assim a principal “qualidade” de um crítico é o quanto ele desconfia. Desconfia da imagem, desconfia do mundo, desconfia de si mesmo, desconfia da crítica, desconfia do texto. Desconfia das suas certezas. A crítica está para plantar dúvidas, e não para colher certezas. O crítico serve para que o espectador/leitor não saiba mais qual é o filme que ele pensou ter visto, e não para “explicar” para o leitor qual é o filme que ele deveria ter visto. A dúvida. Pois só a dúvida é o motor da mudança.

Acredito também que só pode haver crítica se o crítico se senta na mesma poltrona do “público espectador”, e não se senta nos camarotes palacianos. Senão a crítica acaba virando um fútil exercício de poder.

Enquanto crítico, você pensa no que ficará de um filme daqui a 10 anos?

Não. Pois acredito que o crítico não é cartomante, nem tem bola de cristal. E que a crítica de cinema não é bolsa de valores, nem corrida de cavalos. Ao mesmo tempo, é claro que muitas críticas são um gesto do crítico, uma aposta. Elas não devem ser prescritivas, mas interagem nos modos de fazer. Mas entra aqui uma questão ética. Esta aposta de que falo não pode ser exercício de futurologia. Não é corrida de cavalo, mas é um gesto no ar, uma garrafa lançada ao mar. Senão a crítica acaba virando um fútil exercício de poder.

Como você avalia a influência da crítica no meio cinematográfico (realização, distribuição, público etc.)?

A crítica não é meramente passiva, ela também influencia. O crítico não é meramente aquele que “julga” se “um filme é ou não é bom”. Ele tem que se posicionar diante do mundo. Os filmes são obras abertas. O crítico deve entender a responsabilidade da sua posição, de abrir caminhos, de se posicionar politicamente diante do filme, do cinema e do mundo. Mas sem vaidade, senão a crítica acaba virando um fútil exercício de poder. O crítico precisa colocar em crise, tirar das zonas de conforto, propor um debate. Isso vai muito além de “promover o filme”.

De outro lado, uma crítica também é um filme. O crítico é um realizador, assim como um realizador também é um crítico. Por isso, as relações entre crítica, curadoria e realização sempre estiveram próximas.

Quem é o público leitor de crítica? Você pensa de que maneira serão recebidos seus textos?

Não faço a menor ideia de quem seja o “público leitor de crítica”. Nunca penso em como meus textos serão recebidos. De novo, não faço exercícios de futurologia. Nem faço crítica por vaidade ou como meio de assumir o poder. Penso que a crítica é como um bilhete dentro de uma garrafa jogada ao mar. Nunca se sabe para onde vai ou quem ou quando vai alcançá-la. É um ato de amor, um gesto de desespero, uma carta de suicídio. Apenas tenho a esperança de que esses bilhetes cheguem a pessoas famintas, e que, uma vez bebendo um pouquinho desse líquido, fiquem ainda mais famintas, ao invés de saciar sua sede.

Você considera que a crítica é influenciada pela visão política e por valores pessoais? Como você avalia isso?

Claro. Não existe crítica neutra. Robôs ainda não escrevem críticas. E, mesmo que escrevessem, não somos ingênuos e sabemos que os robôs são programados, e a linguagem de programação não é neutra, pois a técnica nunca é neutra. O crítico no fundo sempre fala de si. Mas quando digo que o crítico no fundo fala de si – ou ainda, que escreve para si – com isso de modo algum quero dizer que se faz crítica por autoanálise, por mero exercício narcisista. Entender dessa forma é tão absurdo quanto alguém dizer que os filmes-diários de Jonas Mekas são meros exercícios exibicionistas, que não interessam a ninguém a não ser o seu círculo de amigos. No entanto, o crítico deve estar atento para que seus valores pessoais não contaminem seu olhar de tal forma que ele não consiga ver o que o filme traz e ele não quer ver. O crítico nunca deixa de ser si mesmo, mas precisa se abrir para o mundo, para o outro, para a diferença. Ele deve ser generoso, mas precisa ser rigoroso.

O que o leva a ler/escrever uma crítica?

Escrevo para tentar entender que filme é esse que eu pensei ter visto. Para tentar entender esse filme, para tentar entender a mim mesmo, para tentar entender o mundo. E para desconfiar de tudo isso. Para mim, escrever é sempre me lançar a uma aventura na folha de papel em branco, guiada pelos sentimentos que o filme trouxe, mas como ponto de partida, e não como destino de chegada. Não me interessa a crítica como um porto seguro, e sim como um barco à deriva. Eu escrevo sobre o filme, mas no fundo eu não sei bem como ele é. Eu escrevo para tentar decifrar. Procuro então dividir com o leitor as minhas dúvidas, as minhas angústias. Eu no fundo escrevo sobre mim. Eu no fundo escrevo para mim. Eu escrevo para tentar entender, mas sempre fracasso. O filme diz “decifra-me ou te devoro”, e sou sempre carcomido, por cada um dos filmes que vejo. A boa crítica é aquela que fracassa diante da esfinge fílmica.

Considera que, no seu trabalho crítico, há uma diferença de abordagem para os filmes brasileiros?

Claro que sim. Como disse Paulo Emílio, para entender o cinema brasileiro, não bastam os filmes. O cinema brasileiro vai além dos filmes. E conhecemos melhor esse entorno, as repercussões desse entorno do que em relação aos filmes estrangeiros. O que não nos impede de ver e escrever sobre filmes estrangeiros, mas há diferenças aí.

Diga honestamente o que você pensa do panorama da crítica de cinema no Brasil hoje. É positivo ou negativo?

Não entendi, pois em todas as respostas anteriores procurei “dizer honestamente”, e não apenas nesta. Mais uma vez vou citar Paulo Emílio. A crítica no Brasil não é melhor nem pior que o Brasil, ou que o cinema brasileiro. Ela é subdesenvolvida, como nosso país. Ela reflete e se reflete na “dor e na delícia” de ser brasileiro. Há diversos críticos colonizados, como nosso país o é. Muito do que se escreve no Brasil é copiado de um modelo de crítica que vem de fora, seja qual for o lado da moeda (é como os realizadores brasileiros que, ou copiam Hollywood, ou copiam Apichatpong). E isso não é só no Brasil, é no mundo.


 Abril de 2013